Secretário-geral do Médicos Sem Fronteiras denuncia diante do Conselho de Segurança da ONU crimes de Israel. Ajuda humanitária é sabotada. Comboios são atacados. Médicos, alvejados.“Não há como salvar pacientes nas cinzas de hospitais”, diz
por Christopher Lockyear, em Outras Palavras
Senhora presidente, excelências, colegas,
No momento em que pronuncio estas palavras, mais de 1,5 milhão de pessoas estão encurraladas em Rafah. Pessoas que foram violentamente forçadas a irem para esta faixa de terra no sul de Gaza estão arcando com as consequências da campanha militar de Israel.
Vivemos sob o medo de uma invasão terrestre.
Nossos temores são baseados na nossa própria experiência. Há apenas 48 horas, quando uma família estava ao redor de uma mesa de cozinha em uma casa que abrigava funcionários de MSF e suas famílias em Khan Younis, um projétil de 120mm disparado por um tanque rompeu as paredes do local e explodiu, iniciando um incêndio, matando duas pessoas e deixando outras seis com queimaduras severas. Cinco dos seis feridos são mulheres e crianças.
Havíamos tomado todas as precauções possíveis para proteger os 64 trabalhadores humanitários e membros de suas famílias de um ataque desse tipo, notificando as partes em conflito sobre a localização e marcando claramente o edifício com uma bandeira de MSF. Apesar das nossas precauções, nosso prédio foi atingido não apenas por um disparo de tanque, mas por tiros intensos. Algumas pessoas ficaram presas no prédio em chamas enquanto os disparos contínuos atrasavam a chegada de ambulâncias ao local. Hoje pela manhã, olho para fotos que mostram a extensão catastrófica dos danos e vejo vídeos de equipes de resgate retirando corpos carbonizados dos escombros.
Isto tudo é extremamente familiar – forças israelenses atacaram nossos comboios, detiveram nossos funcionários e destruíram nossos veículos com tratores, e hospitais foram bombardeados e invadidos. Agora, pela segunda vez, um dos abrigos onde estavam nossos funcionários foi atingido. Ou este padrão de ataques é intencional ou é um indicativo de incompetência negligente.
Nossos colegas em Gaza têm medo de que, conforme eu pronuncio hoje essas palavras, eles sejam punidos amanhã.
Senhora Presidente, todos os dias nós testemunhamos o horror inimaginável.
Nós, assim como tantos outros, ficamos horrorizados pelo massacre praticado pelo Hamas em Israel em 7 de outubro, e ficamos horrorizados pela reação de Israel. Sentimos a angústia das famílias cujos entes queridos foram feitos reféns em 7 de outubro. Sentimos a angústia das famílias daqueles detidos arbitrariamente de Gaza e da Cisjordânia.
Como humanitários, ficamos perplexos com a violência contra civis.
Estas mortes, destruição e deslocamentos forçados são o resultado de escolhas políticas e militares que desrespeitam flagrantemente as vidas de civis.
Estas escolhas poderiam ter sido feitas, e ainda podem ser feitas, de maneira muito diferente.
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Por 138 dias, testemunhamos o sofrimento inimaginável da população de Gaza.
Por 138 dias, temos feito tudo que é possível para efetuar uma resposta humanitária relevante.
Por 138 dias, temos assistido à destruição sistemática de um sistema de saúde que apoiamos há décadas. Temos assistido aos nossos colegas e pacientes serem mortos e mutilados.
Esta situação é o ponto culminante de uma guerra travada por Israel contra toda a população da Faixa de Gaza — uma guerra de punição coletiva, uma guerra sem regras, uma guerra a qualquer preço.
As leis e os princípios dos quais dependemos coletivamente para permitir a assistência humanitária estão agora corroídos ao ponto de perderem seu significado.
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Senhora Presidente, a resposta humanitária em Gaza é uma ilusão — uma ilusão conveniente que perpetua a narrativa de que esta guerra está sendo travada em linha com leis internacionais.
Apelos por mais assistência humanitária ecoaram nesta sala.
Ainda assim, em Gaza temos cada vez menos a cada dia — menos espaço, menos medicamentos, menos comida, menos água, menos segurança.
Já não falamos mais de intensificar a ação humanitária; falamos de sobreviver mesmo sem o mínimo necessário.
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Hoje, em Gaza, os esforços para prover assistência são irregulares, episódicos e totalmente inadequados.
Como podemos oferecer ajuda que salva vidas em um ambiente onde a diferença entre combatentes e civis não é levada em conta?
Como podemos manter qualquer tipo de resposta quando trabalhadores médicos são alvejados, atacados e demonizados por atender aos feridos?
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Senhora Presidente, ataques a serviços de saúde são ataques à humanidade
Não restou nada que possa ser chamado de um sistema de saúde em Gaza. Os militares de Israel desmantelaram hospitais, um após o outro. O que restou é tão pouco diante de tamanha carnificina que é simplesmente absurdo.
A desculpa dada é a de que as instalações médicas foram usadas para fins militares, embora não tenhamos visto qualquer prova verificada de maneira independente de que isso tenha ocorrido.
Em circunstâncias excepcionais nas quais um hospital perde seu status de local protegido, qualquer ataque deve atender aos pricípios de proporcionalidade e cautela.
Ao invés da aderência à lei internacional, vemos a inutilização sistemática de hospitais. Isto tem deixado inviáveis as operações de todo o sistema médico.
Desde 7 de outubro, fomos forçados a evacuar nove instalações de saúde distintas.
Há uma semana, o hospital Nasser foi invadido. O pessoal médico foi forçado a sair apesar de ter recebido garantias reiteradas de que poderia ficar para continuar atendendo aos pacientes.
Estes ataques indiscriminados, assim como os tipos de armas e munições utilizadas em áreas densamente povoadas, mataram dezenas de milhares de pessoas e mutilaram outros milhares.
Nossos pacientes têm ferimentos catastróficos, amputações, membros esmagados e queimaduras graves. Eles precisam de atendimento especializado. Precisam de reabilitação longa e intensiva.
Médicos não podem tratar estes ferimentos em um campo de batalha ou nas cinzas de hospitais destruídos.
Não há leitos, medicamentos e suprimentos suficientes.
Cirurgiões não tiveram escolha a não ser realizar amputações sem anestesia em crianças.
Nossos cirurgiões estão ficando até sem gaze para impedir que seus pacientes sangrem. Eles usam uma vez, espremem o sangue, lavam, esterilizam e reutilizam para o próximo paciente.
A crise humanitária em Gaza deixou grávidas sem cuidados médicos por meses. Mulheres em trabalho de parto não podem aceder a salas de parto. Estão dando à luz em barracas de plástico ou edifícios públicos.
Equipes médicas agregaram um novo acrônimo ao seu vocabulário: WCNSF — sigla em inglês para criança ferida sem familiar sobrevivente.
As crianças que sobreviverem a esta guerra não vão carregar apenas os ferimentos visíveis das lesões traumáticas, mas também os invisíveis—aqueles causados pelos reiterados deslocamentos, medo constante e por testemunhar membros da família serem literalmente despedaçados diante de seus olhos. Essas feridas psicológicas têm levado crianças tão pequenas como de 5 anos nos dizer que preferiam estar mortas.
Os riscos para o pessoal médico são enormes. Todos os dias, temos feito a escolha de prosseguir com o nosso trabalho diante do perigo cada vez maior.
Estamos apavorados. Nossas equipes estão mais do que exaustas.
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Senhora Presidente, isso tem de parar.
Nós, junto com o resto do mundo, temos acompanhado de perto o modo como este Conselho e seus membros têm abordado o conflito em Gaza.
Reunião após reunião, resolução após resolução, este órgão não conseguiu endereçar de maneira efetiva este conflito. Vimos membros deste Conselho deliberarem e agirem com atraso enquanto civis morrem.
Estamos perplexos com a disposição dos Estados Unidos de usar seus poderes como membro permanente do Conselho para obstruir os esforços para a adoção da mais evidente das resoluções: uma pedindo um cessar-fogo imediato e sustentado.
Por três vezes este Conselho teve a oportunidade de votar por um cessar-fogo que é tão desesperadamente necessário, e por três vezes os Estados Unidos usaram seu poder de veto, mais recentemente na última terça-feira.
Uma nova proposta de resolução feita pelos Estados Unidos pede de maneira ostensiva por um cessar-fogo. Apesar disso, ela é no mínimo falaciosa.
Este Conselho deveria rejeitar qualquer resolução que obstrua ainda mais os esforços humanitários no terreno e leve este Conselho a endossar de maneira tácita a violência contínua e as atrocidades em massa em Gaza.
A população de Gaza precisa de um cessar-fogo não quando seja “viável” mas agora. Eles precisam de um cessar-fogo sustentado, não “um período temporário de calma”. Qualquer coisa que fique aquém disso é negligência grosseira.
A proteção de civis em Gaza não pode estar condicionada a resoluções deste Conselho que instrumentalizem o humanitarismo para ocultar objetivos políticos.
A proteção de civis, de infraestrutura civil, de trabalhadores da saúde e de instalações de saúde recai, antes de mais nada, sobre as partes envolvidas no conflito.
Mas é também uma responsabilidade coletiva, uma responsabilidade que recai sobre este Conselho e seus membros individuais, como aderentes à Convenção de Genebra.
As consequências de deixar que o Direito Humanitário Internacional torne-se letra morta repercutirão muito além de Gaza. Isto será um fardo duradouro em nossa consciência coletiva. Não se trata apenas de inação política, tornou-se cumplicidade política.
Há dois dias, uma equipe de MSF e suas famílias foram atacados e pessoas morreram em um lugar onde havia sido dito a elas que estaria protegido.
Hoje, nosso pessoal está de volta ao trabalho, arriscando mais uma vez a vida pelos pacientes.
O que vocês estão dispostos a arriscar?
Nós exigimos as proteções prometidas sob o Direito Humanitário Internacional.
Exigimos um cessar-fogo de ambas as partes.
Exigimos que haja espaço para transformar a ilusão da assistência em assistência realmente significativa.
O que vocês farão para que isso seja possível?
Muito obrigado, Senhora Presidente.
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