Tadeo Kulina, do município de Envira, Amazonas, foi assassinado em Manaus, durante seu acompanhamento à esposa internada na maternidade
“Esse é mais um crime e mais uma marca dos aspectos da perversidade com que indígenas ainda são tratados em Manaus, a capital com maior população indígena do Brasil”. Assim conclui o editorial do jornal online A Crítica, do dia 20 de fevereiro, de Manaus, no Amazonas.
A denúncia se refere ao espancamento até a morte do indígena Tadeo Madiha Kulina, encontrado pelos parentes indígenas no Instituto Médico Legal (IML), dias depois do seu desaparecimento anunciado no dia 14 de fevereiro em um grupo de WhatsApp. Tadeo veio a Manaus acompanhando sua esposa grávida, encaminhada para ganhar o bebê na Maternidade Ana Braga. O casal Kulina é do município de Envira, região sudoeste do Amazonas, e morava na aldeia Foz do Akurawá, Terra Indígena do Médio Rio Juruá. Nenhum dos dois conhecia a cidade de Manaus e não falavam nem entendiam português.
Impactada, a sociedade civil do Amazonas e a imprensa local colocam em evidência uma das maiores tragédias cometidas contra indígenas e que exigem não só investigações e punições, mas mais que isso, “definição de regras que garantam segurança aos indígenas em situação de vulnerabilidade que são enviados [para tratamento de saúde ou outra necessidade] a Manaus ou a qualquer outra cidade”, afirma o Editorial.
Nenhum dos dois conhecia a cidade de Manaus e não falavam nem entendiam português
A barbárie cometida contra o indígena recebeu atenção a partir da denúncia feita pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), organização da sociedade civil que reúne diferentes instituições indígenas e indigenistas do Amazonas.
Com tristeza e revolta, a nota lembra o assassinato de Humberto Peixoto Tuiuca, em 2019, que ocorreu com os mesmos requintes de crueldade. “Quatro anos e dois meses depois do assassinato por espancamento de Humberto Peixoto, do povo Tuiuca, em Manaus, em dezembro de 2019, mais um indígena é espancado até a morte na capital amazonense”.
As organizações, ao mesmo tempo que apresentam solidariedade à família de Tadeo e ao povo Kulina, reafirmam o despropósito da situação e evocam a necessidade de cuidados redobrados na transferência e acolhimento de indígenas na capital do Amazonas, bem como no caso de Tadeo, a necessidade de resolução rápida e punição dos responsáveis.
“A Famddi presta solidariedade ao povo Madiha Kulina, aos parentes e todos os povos indígenas vítimas das mais diferentes violências. Reafirma o absurdo e o inaceitável que envolvem desde os cuidados necessários na transferência de indígenas para Manaus, como no caso de Tadeo e sua esposa, as condições em que permaneceram na maternidade ‘Ana Braga’, no desaparecimento e localização do corpo de Tadeo”.
“Exigimos das autoridades responsáveis a investigação deste bárbaro crime e a devida punição dos autores”
Reivindica, também, que cesse a impunidade histórica diante de fatos como esse. “Que o assassinato de Tadeo Kulina seja devidamente investigado, os responsáveis diretos e por omissão de suas responsabilidades sejam identificados e a Justiça se realize diante da impunidade histórica que marca o ato de justiça sobre crimes cometidos contra os povos indígenas neste país”.
A Associação de Docentes da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) encaminhou ao governo do estado do Amazonas, ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Ministério da Justiça, no dia 26 de fevereiro, Moção de Repúdio pela barbárie cometida contra Tadeo Kulina, e reivindica punição. “A Adua manifesta INDIGNAÇÃO e REPÚDIO diante do inominável assassinato do indígena Tadeo Kulina. Exigimos das autoridades responsáveis a investigação deste bárbaro crime e a devida punição dos autores. Basta de impunidade e omissão do Estado brasileiro diante do racismo estrutural, das agressões sistemáticas e da permanente política de morte de nossos parentes indígenas. Vidas indígenas importam”, conclui a Moção.
Denúncias chegaram à ONU
O assassinato de Tadeo Kulina reacende a denúncia feita por organizações da sociedade civil e da Procuradoria da República do Amazonas (MPF/AM), em 2023, à subsecretária-geral da ONU Alice Wairimu Nderitu, assessora especial para prevenção de genocídio.
“O procurador da República Fernando Merloto Soave enviou [à subsecretária Aline] um Relatório Antropológico concluído em abril de 2022, a cargo do MPF, e um conjunto de fotos, validadas por lideranças indígenas da região”, relata matéria de Vinicius Sassine, na Folha de São Paulo, em setembro de 2023, denunciando a gravidade da situação que sofrem os Madiha Kulina e demais povos da região sudoeste do Amazonas.
“A iniciativa de denunciar a realidade dos Madiha Kulina à ONU foi de um grupo de entidades, [Universidade Estadual do Amazonas, Operação Amazônia Nativa (Opan), Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Acre, organizações de povos indígenas e tradutores da língua madiha kulina], com a participação do MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas, diante da gravidade do problema, da escalada dessa gravidade a partir de 2010 e da ausência de solução por parte do poder público”, explica a matéria.
Ainda de acordo com a reportagem de Vinicius, o relatório, documentos e as imagens apresentam uma realidade de abandono e violências sofridas por aqueles povos.
“Relatórios e imagens compartilhados com o escritório da ONU para prevenção de genocídio apontam uma realidade de desnutrição infantil, insegurança alimentar, abandono, estupro, suicídio e mortes violentas de indígenas Madiha Kulina, no sudoeste da Amazônia”, relata, denunciando que as violações de direitos “incluem retenção de cartões de benefícios sociais e uma rede de dívidas contraídas por quem vai às cidades mais próximas dos territórios tradicionais para acessar o Bolsa Família”, denuncia.
Ações do MPF
Dada essa situação de violências e violações de direitos extremas na região, o MPF recomendou a implantação de uma Rede Interinstitucional de Apoio e Atendimento aos Povos Indígenas, conforme publica em seu site em julho de 2022.
“O Ministério Público Federal (MPF) está articulando, junto a órgãos públicos dos estados do Amazonas e do Acre, a implantação de uma rede interinstitucional de apoio e atendimento aos povos indígenas, em especial aos Madija Kulina, em situação de grave vulnerabilidade”, comunica, explicando que o objetivo da rede é alcançar 10 municípios.
“A atuação conjunta deverá abranger os dez municípios que compõem a área tradicional desta população, nas calhas dos rios Juruá e Alto Purus. O MPF já emitiu recomendação aos municípios de Tefé, Juruá, Carauari, Itamarati, Eirunepé, Envira e Ipixuna, no Amazonas; além de Feijó, Santa Rosa do Purus e Manoel Urbano, no Acre”, elenca o MPF, dizendo que a recomendação foi encaminhada para prefeitos e secretários municipais de Assistência Social, Produção, Saúde e Educação de cada município, bem como para órgãos federais e estaduais.
Os Madiha Kulina continuam sofrendo violências e violações de direitos
Em 2023, conhecendo a realidade dos Madiha Kulina, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) criou um Grupo de Trabalho (GT) “para que sejam estabelecidas ações de combate à desnutrição, ao abandono e à violência que os Madiha Kulina enfrentam no sudoeste do Amazonas”, diz o MPI em nota, conforme matéria no site Correio Braziliense, em setembro do ano passado.
“O GT está em fase de elaboração e será composto por organizações da sociedade civil, do governo federal e prefeituras locais, para implementar ações de combate à desassistência que os povos vêm enfrentando e, assim, garantir a efetiva presença do Estado na região”.
A mesma reportagem publica que “em agosto [2023], o MPI, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) assinaram termos de compromisso com o Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas e com as prefeituras de Eirunepé (AM) e Ipixuna (AM) para apoiar uma rede de atenção aos Madiha Kulina e aos demais povos da região”.
Em 2024, o MPF volta a chamar a atenção do poder público e da sociedade para dizer que os Madiha Kulina continuam sofrendo violências e violações de direitos e a imprensa também volta a repercutir a situação em janeiro desse ano.
“As notícias de mortes violentas, suicídios e afins entre os Madiha continuam a se multiplicar, inclusive entre menores de idade, sem a efetiva e urgente resposta do poder público ao tema”, diz o procurador Fernando Merloto Soave, que convocou reunião, em janeiro, entre o MPI, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a Casa Civil da Presidência e a presidente da Funai, Joenia Wapichana.
Como resultado, MPI e Funai, em nota, afirmam “que tem dialogado com as organizações da área, com respostas às demandas encaminhadas e articulações institucionais para enfrentar os desafios que impedem os povos da calha do Juruá de gozarem de seus plenos direitos”.
O assassinato de Tadeo Kulina mostra que os órgãos federais, estaduais e municipais precisam concretizar com urgência as ações que planejam para organizar e efetivar as políticas públicas indigenistas e a proteção dos povos indígenas.
Os dados da violência
A Nota da Famddi é incisiva ao revelar que “há impunidade histórica de crimes cometidos contra os povos indígenas neste país”, trazendo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): “Os assassinatos de indígenas têm sido uma das respostas do Estado brasileiro, com aumento de 21.6%. No ano de 2020, foram mortos 216 indígenas, informa o Atlas da Violência de 2021”.
Em relação aos homicídios contra indígenas, o relatório Violência Contra os Povos Indígenas – dados de 2022, do Cimi, traz, um quadro bastante aterrador. Foram 416 casos de violência contra a pessoa indígena, sendo 180 assassinatos, 17 homicídios culposos, 17 lesões corporais dolosas, 28 tentativas de assassinato e 27 ameaças de morte.
“Em 2022, assim como nos três anos anteriores, os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas foram Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30), segundo dados da Sesai, do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) e de secretarias estaduais de saúde”, registra o Relatório do Cimi.
Para as organizações que compõe a Famddi, os assassinatos e o ranking do Brasil e do Amazonas nos relatórios do Ipea e do Cimi mostram um estado “hostil e racista” e que “minimizar crimes nos moldes de como foi contra Tadeo é ‘banalizar’ a violência contra indígenas e naturalizar a negligência do Estado”.
“A cidade de Manaus, onde vive a maior população indígena do Brasil revela-se hostil e racista para com os indígenas que nela habitam. Minimizar crimes como o de espancamento até à morte de indígenas, arrastar processos de investigação ou nem os realizar compõem o quadro da banalização e da omissão enraizados no Estado do Amazonas”, conclui a nota.
Sem impunidade
Ao ser acionado pelo assassinato de Tadeo Kulina, o MPF reuniu organizações e lideranças indígenas e deu encaminhamento para as diferentes frentes que o caso exige. De acordo com a Assessoria de Comunicação do MPF (Ascom-MPF), os processos serão “acompanhados pelo 15º Ofício do MPF, que atua em Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, nas questões de saúde, e o 11º Ofício, que é criminal”.
“Em relação ao acompanhamento do caso na parte cível foram despachadas as primeiras diligências para apuração, pedindo informações aos órgãos de saúde que atenderam os indígenas. Também estão previstas oitivas para apurações necessárias. A Organização dos Povos Indígenas do Juruá (Opiju) está sendo informada para acompanhar o caso. Já a apuração das circunstâncias envolvendo a morte do indígena Tadeo Kulina foi declinada para o Ministério Público do Amazonas (MP-AM)”, explica a Ascom-MPF.
A Opiju acompanhará o caso de Tadeo e é firme ao dizer que o crime não ficará impune, e conclama às lideranças indígenas, “tanto as que assumiram órgãos públicos, como as que continuam nas organizações sociais indígenas, a se unirem e trabalharem juntos para a resolução do caso e pela proteção dos povos indígenas”.
O Cimi Regional Acre acompanha os povos do sudoeste do Amazonas, principalmente os Madiha Kulina, pela sua aproximação geográfica desde os 1980, e sua equipe de missionários testemunham a força e a determinação do povo Madiha na proteção de suas vidas e território.
A missionária Rosenilda Nunes Padilha conta que os Madija Kulina fizeram a autodemarcação de sua Terra Indígena do Médio Rio Juruá, mas ainda ela se encontra “sem providências”, esperando a Funai realizar os procedimentos de demarcação.
O assassinato de Tadeo, para a missionária, é um retrato da triste história de descaso, ataques e omissão que os povos indígenas sofrem. No entanto, acredita em mudanças dessa realidade e que o crime cometido contra Tadeo não ficará impune.
“Somos a favor de que sejam apurados os fatos do caso Tadeo e que a justiça da Terra e a Justiça de Tamaco e Kira, os dois irmãos criadores do povo Madiha Kulina, sejam feitam devidamente em defesa da vida do povo Madiha”, diz com esperança, alertando para que as lideranças percebam quem são os verdadeiros inimigos.
“Os indígenas não são inimigos entre si, os inimigos são outros. São os grandes projetos que vão contra a lógica da vida, do povo que passa por esse momento de tanta dificuldade, tanta dor, tanto massacre e desequilíbrio no Amazonas e no Acre”. Ela também manda um recado para os Madiha: “não se sintam sozinhos, nós estamos juntos nessa luta. Os órgãos de governo, Ministério dos Povos Indígenas, Funai, Sesai e Dseis, eles vão devagar, mas vão se organizando e se estruturando para promover ações conjuntas”.
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Tadeo Kulina. Foto: Aldeia Foz do Akurawá