TRF-1 reverte redução da Terra Indígena Taego Ãwa, dos Avá-Canoeiro do Araguaia

Em importante vitória do povo Avá-Canoeiro do Araguaia, Tribunal revogou parte da sentença que reduzia arbitrariamente terra de povo quase dizimado na década de 1970 no Tocantins

POR TIAGO MIOTTO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

O povo Avá-Canoeiro do Araguaia obteve uma importante vitória no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Por unanimidade, a quinta turma do tribunal decidiu reverter uma decisão da Justiça Federal de Gurupi (TO) que havia reduzido em cerca de 30% a Terra Indígena (TI) Taego Ãwa, que se encontra em processo avançado de demarcação.

Além de reverter a redução da TI, o Tribunal determinou um prazo de 15 meses para que a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluam a demarcação da terra indígena. A TI Taego Ãwa teve seu relatório de identificação e delimitação publicado pela Funai em 2012 e, em 2016, o Ministério da Justiça publicou a portaria declaratória reconhecendo-a como terra de ocupação tradicional dos Avá-Canoeiro.

Os passos seguintes para a demarcação são a homologação e a desintrusão da área. O TRF-1 definiu ainda um prazo de 12 meses, a contar do trânsito em julgado do processo, para que seja concluída a desintrusão do território, com o reassentamento das famílias de pequenos agricultores que vivem no local e o pagamento das benfeitorias a detentores de títulos de propriedade de boa-fé incidentes sobre a TI.

A decisão, tomada nesta quarta-feira (28) durante sessão semipresencial em Brasília (DF), abre caminho para que o Estado brasileiro comece a reparar uma das mais graves violações praticadas na Ditadura Militar contra povos indígenas no país.

Sob o regime autoritário, a Funai protagonizou, na década de 1970, um contato forçado que quase resultou no extermínio dos Avá-Canoeiro do Araguaia. A violenta e desastrosa ação ocorreu após décadas de violações e esbulhos contra o povo, que foi forçado a se refugiar em áreas cada vez menores de seu território, que compreende a totalidade da TI Taego Ãwa.

“Foi uma importante vitória do povo Avá-Canoeiro no TRF-1, no recurso de apelação que o povo interpôs contra uma sentença do juiz de primeiro grau de Gurupi”, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e advogado do povo Avá-Canoeiro no processo judicial.

“O tribunal decidiu revogar parcialmente a sentença, na parte em que diminuiu os limites do território, e garantir o acesso à totalidade do território para fins de ocupação tradicional, sobrevivência física e cultural do povo Avá-Canoeiro, um povo historicamente injustiçado, que passou por massacres, inclusive em um período recente da nossa história”, avalia o advogado.

“A gente está bastante feliz, porque a gente já veio do começo lutando pela finalização da demarcação, e a gente aos poucos está conseguindo. Agora é aguardar a finalização da Funai e do Incra e seguir em frente”, comemora Wapoxire Ãwa, cacique dos Avá-Canoeiro do Araguaia.

“Essa terra é muito importante para nós. Não só para mim, porque pode ser que demore, pode ser que amanhã eu não esteja mais aqui, mas eu estou aqui em Brasília lutando por um direito que é da minha filha, que é do meu neto, que mais para frente vai nascer”, celebra Jãtemy Ãwa.

“A história do povo Avá-Canoeiro do Araguaia, o povo Ãwa, é uma história de séculos e, mais recentemente, décadas de massacres e de genocídio”

Redução de TI e invasão de competência

A decisão do TRF-1 atendeu a uma apelação feita pelo próprio povo Avá-Canoeiro, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Funai contra a decisão de primeira instância proferida pelo juiz Eduardo de Assis Ribeiro Filho, da Justiça Federal de Gurupi, em novembro de 2022.

Em 2012, a TI Taego Ãwa foi identificada e delimitada pela Funai com 29.390 hectares tradicionalmente ocupados pelos Avá-Canoeiro, na região do médio curso do rio Araguaia, no Tocantins. O território fica localizado à margem direita do rio Javaés, a leste da Ilha do Bananal.

“A história do povo Avá-Canoeiro do Araguaia, o povo Ãwa, é uma história de séculos e, mais recentemente, décadas de massacres e de genocídio”, explica Patrícia de Mendonça Rodrigues, antropóloga, pesquisadora e responsável pelo relatório que identificou e delimitou a TI (saiba mais).

“Quando os Avá-Canoeiro foram contatados pela Frente de Atração da Funai em 1973, eram um grupo de dez pessoas, refugiadas no lugar mais inóspito da região. A TI Taego Ãwa abrange uma área inundável na sua maior parte, na planície do médio Araguaia. Tem pouquíssimos lugares secos, a salvo da inundação”, explica a antropóloga.

Apesar de reconhecer que a documentação histórica e o relatório da Funai comprovam a presença dos Taego Ãwa na região “desde meados do século XIX” – fato também confirmado por perícia judicial antropológica realizada no decorrer do processo –, o juiz decidiu, em sua sentença, reduzir a área da TI para cerca de 20 mil hectares.

Contrariando sua própria avaliação sobre a caracterização da tradicionalidade da área, o juiz decidiu excluir da demarcação parte do Projeto de Assentamento (PA) Caracol, instalado sobre o território Ãwa na década de 1990.

“O assentamento ocupa as melhores áreas do território. As demais áreas são, justamente, as que alagam. Como os indígenas viveriam lá? O juiz, na prática, anulou parte do processo demarcatório, deixando a principal área de fora da demarcação”, argumentou Rafael Modesto ao tribunal.

“Além de ter fragmentado uma terra que já é pequena para esse povo, o mínimo necessário para a sobrevivência deles, a decisão de 2022 retirou também o acesso dos indígenas ao rio Javaés, que é o principal rio da região, dá acesso a outras aldeias e é o principal meio para navegação e para pescaria”, critica Patrícia de Mendonça Rodrigues.

A decisão do juiz federal de Gurupi causou surpresa não apenas entre os indígenas, mas também ao MPF, autor da Ação Civil Pública que deu origem, em 2018, ao processo no qual a sentença foi proferida.

A revisão dos limites da terra indígena dos Ãwa não estava em questão: na verdade, a ação solicitava que a União fosse obrigada a concluir a demarcação da TI, naquele momento parada há mais de seis anos.

“A sentença exorbitou a sua função ao delimitar a terra indígena aquém do laudo antropológico, o que fica ainda mais evidente quando reconhece que o processo administrativo de demarcação é regular e que já há decisões judiciais sobre o tema”, apontou a procuradora regional da República Andrea Araújo.

A posição, reforçada pela representação do povo Ãwa e pela Funai, foi admitida por unanimidade pelo tribunal. O relator do processo no TRF-1, o juiz federal Emmanuel Mascena de Medeiros, também destacou que a decisão invadiu “a competência do poder Executivo na definição dos limites territoriais da área a ser demarcada, que deve respeitar metodologia propriamente antropológica”.

“O mérito da questão exige um conhecimento tão específico que refoge a qualquer análise no âmbito judicial”, ressaltou o relator.

“Por grave omissão e negligência da Funai, o assentamento do Incra foi instituído na década de 1990 exatamente na área onde os 11 sobreviventes foram atacados e capturados pela Funai, fato de conhecimento público e notório na região”

 

Erros em sequência

A demarcação da TI Taego Ãwa era questionada pelo fazendeiro Elias Isaac Abrahão e pela empresa Eletroenge Agropecuaria Ltda, proprietários das fazendas Santa Júlia e Eletroenge, incidentes sobre o território, e pela Associação Comunitária dos Pequenos Produtores Rurais do PA Caracol, onde vivem 128 famílias. Todos eram representados pelo mesmo escritório de advocacia.

O juiz federal de Gurupi não admitiu os pedidos do fazendeiro e da empresa, mas acatou, em partes, uma proposta apresentada pelo Incra, excluindo do perímetro da TI inclusive de áreas consideradas sagradas pelos Avá-Canoeiro.

Em nota técnica publicada em 2023 pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a antropóloga Patrícia Mendonça e a bióloga Luciana Ferraz caracterizam as violações e o esbulho do território Ãwa como uma “sequência de erros do Estado brasileiro”.

Originalmente, o PA Caracol era destinado ao assentamento das famílias que foram retiradas da Ilha do Bananal na década de 1990, durante a desintrusão da área finalmente reconhecida como indígena – e amplamente invadida ao longo do século XX, com a anuência do Estado e apoio de grandes grupos econômicos.

A correção de um erro, no entanto, deu origem a outro: o reassentamento destas famílias ocorreu, justamente, no território tradicional dos Avá-Canoeiro. Dos 17 mil hectares do assentamento, 16 mil estão totalmente sobrepostos à TI Taego Ãwa, cobrindo cerca de 54% da área da TI.

“Por grave omissão e negligência da Funai, o assentamento do Incra foi instituído na década de 1990 exatamente na área onde os 11 sobreviventes foram atacados e capturados pela Funai, fato de conhecimento público e notório na região”, apontam as pesquisadoras.

“Na época da captura, a área pertencia à antiga Fazenda Canuanã / Fundação Bradesco, que se apropriou de vastas porções do território compartilhado pelos Javaé e Avá-Canoeiro na margem direita do Rio Javaés com o apoio dos governos militares”, destaca a nota técnica.

Atualmente, contudo, apenas 30 das 128 famílias que vivem no PA Caracol são remanescentes do assentamento original e oriundas da desintrusão da Ilha do Bananal. O TRF-1 também determinou, na decisão, que o MPF deverá acompanhar o processo de desintrusão e de realocação das famílias.

“Foi muito bom essa decisão ser favorável ao nosso povo. Não desejamos que os assentados sejam prejudicados, queremos também que eles sejam realocados em um bom lugar, que seja uma terra melhor que a Taego. Que eles possam continuar vivendo a vida deles, não desejamos mal a nenhum assentado”, avalia Jãtemy Ãwa.

As duas fazendas cujos proprietários questionam a demarcação da TI Taego Ãwa, segundo as pesquisadoras, também foram desmembradas da Fazenda Canuanã, adquirida pela Fundação Bradesco à época do contato com os Ãwa. A constituição da fazenda e apropriação privada do território é caracterizada pelo juiz federal de Gurupi como um processo de “esbulho”.

“É muito bom saber que o Estado reconhece que errou e que agora ele está tentando consertar um erro que ele cometeu há anos atrás. Que eles continuem tentando acertar, não com o nosso povo, mas com todos aqueles povos que eles erraram também”

Longa trajetória de violações

Uma imagem histórica exemplifica o grau de violência a que os Avá-Canoeiro do Araguaia foram submetidos há pouco mais de cinco décadas. Nela, a silhueta de dois indígenas, no primeiro plano, opõe-se aos rostos de uma multidão de pessoas que os observa, separada deles atrás de uma cerca de madeira.

Um deles olha para o lado: parece desviar o rosto dos curiosos. Era o ato de resistência possível à humilhação a que foram submetidos os Avá-Canoeiro após o contato forçado: foram, literalmente, expostos para que fossem vistos pela população local.

A situação dos Avá-Canoeiro foi tão grave que mereceu um item à parte no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), onde foi caracterizado como uma situação de “desagregação social e tentativa de extermínio” por parte do Estado brasileiro.

O relatório descreve o momento do contato – uma verdadeira captura – dos Avá-Canoeiro:

“A Frente de Atração agiu de forma especialmente violenta em 1973, ao entrar atirando no acampamento indígena, de supetão, o que resultou na morte de uma menina, na fuga desesperada de quatro pessoas e na prisão de outras seis. Esses primeiros Avá-Canoeiro capturados foram amarrados em fila indiana, sob a mira das armas de fogo e levados à força para a sede da fazenda Canuanã, onde foram expostos à visitação pública dos moradores da região durante semanas – colocados dentro de um quintal cercado de uma das casas da fazenda, como que em um zoológico, fato testemunhado pelos Javaé e por moradores da região”.

Depois da violência e da humilhação, os Ãwa ainda foram submetidos a outra violação, que perdurou por décadas: foram enviados para uma aldeia do povo Javaé, adversários históricos e integrantes de outra matriz cultural e linguística. Lá, foram assimilados numa categoria equivalente a “cativos de guerra” – o que implicou numa série de restrições práticas.

“O que a gente sente, o que a gente passa, só nós mesmos podemos saber”, reflete Wapoxire. Para o cacique, a demarcação “é o mínimo que eles têm que fazer para tentar consertar um erro”.

“Porque não tem conserto, né? Pelo sofrimento que o meu avô, minha mãe, que eles sobreviveram. E graças a eles a gente está aqui. A gente está feliz por ter ganhado, depois de tantos anos sendo humilhados”, desabafa o cacique.

“É muito bom saber que o Estado reconhece que errou e que agora ele está tentando consertar um erro que ele cometeu há anos atrás. A gente fica feliz. Que eles continuem tentando acertar, não com o nosso povo, mas com todos aqueles povos que eles erraram também”, reflete Jãtemy Ãwa.

Tutawa Ãwa, falecido em 2015, sobrevivente do contato e liderança histórica dos Avá-Canoeiro do Araguaia, lutou para manter seu povo unido em meio a massacres e violações. Foto: Vinícius Berger

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