Ferrogrão: indígenas protestam contra ferrovia apoiada por Lula e Bolsonaro

Projeto de ferrovia para escoar produção de grãos em MT e PA foi elaborado por multinacionais da soja, e ganhou apoio dos governos Temer, Bolsonaro e Lula; STF decide ainda este semestre se projeto pode ser retomado

Por Diego Junqueira, em Santarém (PA), em Repórter Brasil

Indígenas, ribeirinhos, quilombolas e agricultores familiares realizaram um ato na manhã desta segunda-feira (4) em frente ao porto da exportadora de grãos Cargill, em Santarém (PA), em protesto contra a construção da Ferrogrão.

O projeto de ferrovia foi apresentado há uma década por multinacionais do agronegócio, como ADM, Amaggi, Bunge, Dreyfus e a própria Cargill, e depois encampado pelos governos de Michel Temer (MDB), Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT), que o incluiu no Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

A ideia é ligar por 933 km trilhos as cidades de Sinop, norte de Mato Grosso, e Itaituba, sudoeste do Pará, às margens do rio Tapajós. Ali estão os portos controlados pelas multinacionais que embarcam os grãos para exportação, principalmente para China, Europa e Oriente Médio.

“Somos contra a Ferrogrão porque ela vai tomar as nossas terras. São os trilhos da morte. A soja não é o nosso alimento. Ela destrói as nossas casas. A Cargill está tomando nossas terras, mas vamos defender o nosso território”, afirma Alessandra Korap Munduruku, ativista e uma das principais lideranças indígenas da bacia do rio Tapajós, destino final da Ferrogrão.

“Essa ferrovia vai impactar nossa região [assim] como Belo Monte, que está matando o Xingu”, complementa o cacique-geral dos Kayapó, Patkore Mekraknotire, lembrando os impactos causados pela hidrelétrica erguida no rio amazônico, durante o governo Dilma Rousseff.

Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Cargill emitiu nota informando apenas que “não participa do consórcio formado para a construção da Ferrogrão”. Já o Ministério dos Transportes afirmou que o governo “trabalha na atualização do projeto da Ferrogrão em busca de uma solução que seja ambientalmente sustentável e que atenda às necessidades para o escoamento da produção do Brasil Central pelo chamado Arco Norte”.

Ainda segundo o Ministério, “foi criado, em outubro passado, um grupo de trabalho para discutir os aspectos de viabilidade da EF-170 e facilitar o diálogo entre as partes”. Leia o posicionamento completo aqui.

‘Projeto realizado sem os devidos estudos de impacto’

Para pesquisadores e representantes de movimentos sociais ouvidos pela Repórter Brasil, o projeto da Ferrogrão tem problemas graves. Eles afirmam que a proposta não vai trazer benefícios para as centenas de comunidades afetadas ao longo do trajeto, favorecendo poucas empresas e priorizando uma agricultura tida como “predatória”, marcada pelo uso intensivo de agrotóxicos para garantir a alta produtividade de grãos.

Além disso, dizem que o projeto avança há dez anos sem os devidos estudos de impacto socioambiental e sem a consulta prévia às comunidades afetadas, o que viola a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Reconhecido pelo Brasil, o texto obriga o Estado a ouvir comunidades diretamente atingidas, antes do início das obras.

“Os Panará, os Kayapó, os Munduruku já têm seu protocolo de consulta, mas não foram ouvidos. Essas empresas e o governo têm que ouvir a gente”, cobra Takakpe Metukitire, secretário da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), da Terra Indígena Mekrãgnotire.

Em 2021, o STF (Supremo Tribunal Federal) chegou a suspender os estudos de viabilização da obra e a determinar ao Ministério dos Transportes a formação de um grupo de trabalho para discutir a obra. O tribunal decide ainda neste semestre se o projeto poderá ou não ser retomado. No mês passado, Repórter Brasil revelou que o governo federal se reuniu com lideranças indígenas e, após um pedido de desculpas, afirmou que vai insistir pela continuidade do projeto.

Além de organizar o protesto em frente à Cargill, as comunidades afetadas lançam nesta segunda uma aliança contra a Ferrogrão, com apoio de várias organizações não governamentais, como Amazon Watch, Movimento Tapajós Vivo, Apib, Coiab, Instituto Kabu, Inesc, Fase, CPT, dentre outras. Os movimentos fizeram também um julgamento simbólico da Ferrogrão e das multinacionais, que foram “condenadas” por um “tribunal popular”, em razão dos impactos às comunidades.

“O governo brasileiro deveria se atentar à sentença do tribunal popular e cancelar imediatamente o projeto da Ferrogrão, caso contrário estará optando por aprofundar a destruição da Amazônia, do Cerrado e dos direitos dos povos desta região”, diz Pedro Charbel, assessor de campanhas da Amazon Watch.

Uma década de agro

O pesquisador Brent Millikan acompanha os debates sobre a Ferrogrão há uma década e ainda se pergunta como um projeto feito por grupos privados virou prioridade de governos tão diferentes, como Temer, Bolsonaro e Lula.

“Só mesmo a força do agronegócio no Congresso para explicar isso”, diz Millikan, membro da secretaria-executiva do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental.

Antes de entrar no Novo PAC de Lula, a Ferrogrão já tinha sido incluída no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), no governo Temer, e no Plano Nacional de Logística (PNL), na gestão Bolsonaro.

A Ferrogrão tem um “vício de origem”, segundo Millikan, pois teria sido incluída nessas iniciativas de governo como projeto prioritário, mesmo sem uma análise robusta dos riscos socioambientais e problemas de viabilidade econômica.

“Quando um projeto desses entra nas políticas de governo, isso manda um sinal para os atores econômicos locais se movimentarem, o que gera especulação fundiária. Os impactos começam antes do início das obras”, avalia o pesquisador.

O tamanho do agro na bacia do Tapajós dá a dimensão dos interesses em jogo. Anualmente, 19 milhões de toneladas de grãos são embarcadas em Itaituba, uma média de 1.800 carretas por dia chegando à cidade, segundo a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).

São seis portos exclusivos para grãos, de um total de 22 em operação na região de Itaituba, segundo o professor Jondison Rodrigues, da UFPA (Universidade Federal do Pará). Os demais terminais transportam principalmente combustíveis, mas também fertilizantes, adubo e gesso.

“A maior concentração de corporações globais na Amazônia está no complexo portuário de Itaituba”, diz Rodrigues.

A Cargill é uma das maiores operadoras do bioma. A empresa movimenta 5 milhões de toneladas de grãos anualmente no terminal de Santarém, onde os navios cargueiros são carregados por barcaças vindas de Itaituba e Porto Velho (RO), e também por caminhões.

Com a Ferrogrão, a expectativa é triplicar esse volume e chegar a 15 milhões de toneladas embarcadas anualmente, diz a professora e pesquisadora Marcela Vecchione, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA).

“A ferrovia vai expandir a produção. Para isso, precisa de terras”, resume a pesquisadora. “Sai a diversidade da floresta, entra monocultura da soja. Essa é uma disputa de projeto de futuro”, afirma.

Da BR-163 à ferrovia

Caso saia do papel, a Ferrogrão deve afetar pelo menos 16 terras indígenas, algumas delas não demarcadas, além de inúmeras propriedades de pequenos agricultores familiares.

Sem a realização de estudos e sem a consulta aos povos locais, o projeto lembra a construção da rodovia BR-163, na década de 1970. A estrada faz o mesmo trajeto e causou uma série de impactos na região.

“A BR não nos fortaleceu”, conta a agricultora Francisca Barroso, da Rede de Agroecologia do Trairão, município situado nos quilômetros finais da estrada.

Ela conta que os problemas se agravaram na última década após o asfaltamento da BR, em 2013, e a abertura no ano seguinte do primeiro porto no Tapajós, operado pela Bunge. “O asfaltamento trouxe apenas grande fluxo de carretas, acidentes e plantio de soja com agrotóxicos”, diz.

Os agricultores Valdivino Campos e Marcelino Stabnow, também de Trairão, contam que a BR incentivou o avanço de grandes fazendas de soja, milho e arroz sobre terras antes ocupadas por agricultores familiares, que, além dos grãos, também plantam mandioca e frutas.

Com isso, os pequenos ficaram sem condições de competir com os preços dos grandes produtores. Alguns venderam suas terras, reduzindo a área de agricultura familiar. O impacto já é sentido no abastecimento do comércio local, afirma Valdivino. “Tem dia que não tem nem banana na feira”, relata.

Pasyma Panará, da Terra Indígena Panará, também se recorda do impacto da BR-163 sobre seu povo. “Cortaram a terra no meio e expulsaram os parentes. Perdemos terras para agricultura, rios, árvores e animais”, diz Pasyma, que é presidente da Associação Iakiô.

O avanço da monocultura é sentida também pelos kayapó. “Em volta do nosso território, a pressão é grande de fazendeiros que plantam soja e milho. Se construir a ferrovia, a pressão vai aumentar”, diz Takakpe Metuktire.

Alessandra Korap Munduruku coloca em xeque os benefícios prometidos pela construção de ferrovias, hidrelétricas e mineradoras. “A gente precisa da nossa terra para garantir a educação, a saúde e o futuro dos nossos filhos”, diz.

“Não é um pedido de desculpas [por parte do governo federal] que vai resolver nosso problema. Precisamos de um projeto de vida, quando você respeita os nossos parentes e garante o bem-viver dentro do território”, finaliza.

“A soja não vai salvar o nosso povo” diz Alessandra Korap Munduruku (Foto: Raissa Azeredo/Arquivo pessoal)

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