Temporão: episódios da luta por soberania sanitária

Ao recapitular, de Oswaldo Cruz aos tempos atuais, esforços do Brasil por autossuficiência no campo da Saúde, ex-ministro ressalta: história desse embate é indissociável da busca por um modelo de desenvolvimento soberano e autônomo

Outra Saúde

Com a presença destacada da Saúde nos planos governamentais de reindustrialização do país, a bandeira do fortalecimento de uma real soberania farmacêutica do Brasil pode ganhar um peso político sem precedentes. Porém, nem de longe esta seria a primeira vez em que a pauta surge na história braisleira, possuindo inclusive adversários. Na reflexão que se segue, José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde (2007-2010), desvenda o percurso desse embate – avaliando avanços e retrocessos que se sucedem desde o final do século XIX. O texto se baseia em uma intervenção do médico sanitarista carioca em uma mesa sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde promovida há duas semanas pela Fundação Maurício Grabois, transcrita e editada em conjunto por Outra Saúde e pelo próprio autor. Boa leitura! (G. A.)


Episódios da luta por soberania sanitária

Por José Gomes Temporão

O tema da relação entre soberania sanitária, modelos de desenvolvimento e o Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS) aflorou com muita intensidade na pandemia da covid-19, por conta das desigualdades, assimetrias e dificuldades no acesso às tecnologias para diagnóstico, prevenção e tratamento. Contudo, esse é um debate que já atravessa décadas da vida brasileira. No fundo, a discussão das relações entre soberania, autonomia e autossuficiência no campo da saúde expressou ao longo da nossa história as tensões entre modelos e concepções de desenvolvimento distintos e mesmo antagônicos.

No final de fevereiro, por exemplo, o jornal O Globo publicou um editorial criticando a nova política industrial de maneira bastante contundente. Apesar de não se referir especificamente à Saúde, o jornal está expressando a opinião de setores da sociedade brasileira que, historicamente, sempre se colocaram contra a industrialização, o papel do Estado e a autossuficiência no campo da Saúde e em outras áreas.

Em uma perspectiva histórica, quando Oswaldo Cruz voltou para o Rio de Janeiro em 1899, depois de ir para Paris estudar no Instituto Pasteur, ele trouxe o que havia de mais moderno e avançado, do ponto de vista de tecnologia e da inovação, no campo do combate às doenças infecciosas. Com isso, veio a criação de várias instituições, como o que viria a ser a Fundação Oswaldo Cruz, o Butantan e o Adolfo Lutz. Até o final da Segunda Guerra Mundial, o padrão tecnológico da indústria farmacêutica brasileira era bastante similar ao dos países desenvolvidos. A partir daí, porém, o país começou a perder espaço, bem como densidade produtiva e inovativa.

Muitos especialistas e outros grandes brasileiros tiveram um papel fundamental nos enfrentamentos surgidos dessas tensões e dissensões ao longo da história. Eu chamaria a atenção especialmente para Mário Victor de Assis Pacheco, um crítico do consumo indiscriminado de medicamentos e da indústria farmacêutica multinacional. Vale lembrar também de Wilson Fadul, ministro da Saúde de João Goulart. Não sei se todos sabem, mas o primeiro ato revogado pelo governo militar após o golpe de 1964 foi um decreto do governo João Goulart que limitava a remessa de lucros auferidos pelas multinacionais farmacêuticas, para as suas matrizes.

Em plena ditadura militar, em um certo paradoxo, nós tivemos a criação da Central de Medicamentos, CEME, em 1971. Ela expressava a visão de parte do estamento militar sobre o papel da indústria como um motor do desenvolvimento. Além de uma política de distribuição de medicamentos gratuitos, a CEME possuía um componente de inovação e desenvolvimento com a produção de princípios ativos farmoquímicos, que foi muito importante, mas acabou se perdendo.

Com o Programa Nacional de Imunizações (PNI) criado em 1973, o Brasil desenvolveu, ao mesmo tempo, capacidade de produção tecnológica de vacinas e uma outra tecnologia tão importante quanto essa, que é a do desenvolvimento de estratégias de massa, de vacinação de grandes contingentes populacionais, com mobilização da sociedade; além da formação de técnicos e especialistas no desenvolvimento e produção de imunobiológicos.

Já nos anos 80, quero destacar a publicação de um livro do grande sanitarista Hésio Cordeiro, A Indústria da Saúde no Brasil, onde ele cunha o termo complexo médico-industrial. Ali, Hésio se ocupa principalmente com os padrões de consumo de medicamentos. Mas ele também aborda outros temas muito importantes como a educação médica, o papel dos médicos no padrão de dispensação de medicamentos, a indução de automedicação e a questão do peso muito grande que a indústria farmacêutica dava e ainda dá à publicidade e às estratégias de comercialização, que leva a padrões não necessariamente guiados pela ciência e pela ética.

Na sequência, em 1986, surgiu o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos, o PASNI. Naquele momento, de uma hora para outra, o Brasil se viu sem condições de produzir soros e vacinas, porque o único produtor nacional, uma empresa privada, havia sido fechada pela vigilância sanitária. Por isso, bem no início da Nova República, o governo brasileiro lançou esse programa, que é a base de muito do que nós temos hoje. Biomanguinhos e o Butantan atual, em grande parte, são uma expressão do PASNI, que foi basicamente um programa de investimentos em infraestrutura produtiva.

Contudo, foi aprovada em 1996 a Lei de Patentes durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que representou um grande retrocesso. Esse projeto foi aprovado precocemente no Brasil, e afetou profundamente a nossa capacidade de desenvolvimento autóctone e estruturação de uma indústria farmoquímica nacional.

Por outro lado, tivemos em 1999 a criação da política de genéricos, que foi muito importante porque ampliou o mercado e abriu um caminho para que um conjunto de empresas brasileiras crescesse. Hoje, entre as principais indústrias farmacêuticas do país, encontram-se uma série de empresas de capital nacional.

O surgimento da Anvisa, nesse mesmo período, também foi um divisor de águas fundamental. Hoje, ela está entre as dez maiores agências reguladoras do mundo e afetou positivamente o padrão de segurança da produção e do consumo de medicamentos.

Já no governo Lula I, em 2004, veio a Política Industrial, Tecnológica e do Comércio Exterior, que envolvia quatro setores estratégicos: os fármacos e medicamentos vinham ao lado de semicondutores, softwares e bens de capital. O Farmácia Popular, criado em 2006 no final do primeiro governo Lula, cumpriu um papel fundamental na ampliação desse mercado de medicamentos e no fortalecimento da capacidade produtiva.

E na minha gestão como Ministro da Saúde, em 2007, houve, pela primeira e única vez, a quebra da patente – o que chamamos pelo nome técnico de licenciamento compulsório – de um medicamento: o Efavirenz. A ação foi fundamental, porque nós conseguimos por meio dela, através de engenharia reversa, desenvolver um produto nosso, desde o princípio ativo até o produto final, com a Fiocruz e um conjunto de quatro farmoquímicas de capital nacional.

Nesse contexto, é importante reforçar que tudo o que nós estamos discutindo é geopolítica também. É preciso entender que o Banco Mundial e um conjunto de organismos internacionais, historicamente, atuam através de intelectuais orgânicos do capital e do neoliberalismo para influenciar ou até impedir a expressão dessas políticas. Não só políticas de saúde que busquem a equidade, mas também as que buscam a autonomia e a ampliação da capacidade produtiva própria. A atuação desses organismos expressa, na verdade, os interesses de empresas, conglomerados e de certos países.

Isso é evidente e óbvio. Tanto é que tudo que nós começamos em 2007 na minha gestão, e que teve continuidade com os ministros Alexandre Padilha e Arthur Chioro, depois se perdeu, foi interrompido ou paralisado.

Agora, em outro contexto, com a liderança do Ministério da Saúde e uma nova visão estratégica, marcada por um olhar mais consistente e ampliado, nós poderemos colocar de pé novamente esse movimento histórico de autonomia e ampliação da capacidade produtiva brasileira.

Um personagem importante no contexto atual é o secretário de Ciência e Tecnologia do MS, Carlos Gadelha. Nós nos encontramos na Fiocruz em um momento muito especial do final dos anos 90 do século passado, trabalhando juntos na criação do projeto Inovação, um projeto de prospecção tecnológica da Fundação Oswaldo Cruz. Coordenamos juntos também um estudo sobre a indústria de vacinas para o BNDES e uma disciplina de pós-graduação sobre o complexo industrial da saúde. 

Na minha vida, foi muito importante ter recebido todo o aprendizado e acúmulo desse conjunto de ideias e iniciativas de que falei aqui, bebendo da fonte histórica desses brilhantes brasileiros que lutaram ao longo de décadas por essa perspectiva. Eu tive o privilégio de poder transformá-las pela primeira vez em uma política de Estado que, neste novo contexto, sob a liderança do presidente Lula e da ministra Nísia Trindade, ganha ainda mais consistência e brilho.

Foto: Tribuna do Norte

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