Para o professor, maior parte do povo brasileiro vive um estado de exceção permanente e “estamos muito longe de ter uma democracia e uma cidadania plenas”
Há 60 anos, o Comício da Central do Brasil antecipava a queda de João de Goulart e o Golpe de 1964. Para o historiador Adriano de Freixo, “O Comício da Central do Brasil foi, sem dúvida, um ponto de inflexão para João Goulart. É o momento que marca simbolicamente a sua ‘reconciliação’ com a esquerda do PTB. Com a conspiração já em andamento e de forma explícita e ficando cada vez mais isolado, não havia outro caminho para Jango a não ser deixar de lado as malsucedidas políticas conciliadoras e partir para o tudo ou nada”, explica.
Segundo Freixo, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na Central do Brasil, Jango buscava encontrar apoio popular, em uma tentativa vã “de resistir ao golpe em andamento”. Para ele, “isso ajuda a entender o tom de seu discurso – bem mais radical e intenso que o habitual – no comício”.
Ao fazer memória de João Goulart, o professor lembrou seu espírito conciliador fundado na tradição getulista. E que se tratava de “alguém que desejava de fato implementar reformas econômicas e sociais, diminuir as desigualdades e construir uma sociedade mais justa, sob a bandeira de um nacionalismo progressista”.
Passadas seis décadas, a relação da sociedade brasileira com a história e a ditadura civil militar “possibilita, por um lado, os revisionismos históricos, que procuram apagar ou criar novas versões ao gosto do freguês sobre personagens e eventos e, por outro, a recorrente política de conciliação baseada na ideia de que é preciso ‘olhar o futuro e esquecer as divergências e conflitos do passado’, sentencia Adriano de Freixo.
Além disso, o professor aponta que estamos longe de alcançar democracia e Estado de direito na totalidade, ainda que tenham ocorrido avanços importantes, a maior parte da população segue a vida sob “estado de exceção permanente” e “estamos muito longe de ter uma democracia e uma cidadania plenas. E além de inúmeros entulhos autoritários da ditadura ainda permanecerem, os anos recentes nos mostraram como mesmo essa democracia restringida e limitada é bastante frágil e como a possibilidade de rupturas institucionais ainda paira sobre nós”, complementa.
No fim, dispara: “em uma entrevista recente, ele [Lula] afirmou que não quer ficar remoendo o passado e que é preciso tocar o Brasil para a frente, além de se dizer mais preocupado com a tentativa de golpe de janeiro do ano passado. Como se não houvesse conexões entre 1964 e 2023…”.
Adriano de Freixo é graduado em História, especialista em História das Relações Internacionais e mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. É doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Leciona no Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense – INEST-UFF, onde coordena o Laboratório de Estudos sobre a Política Externa Brasileira – LEPEB, atuando também nos PPGs em Estudos Estratégicos e em Ciência Política. É autor de Os militares e o governo Jair Bolsonaro: entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo (Zazie Edições, 2020) e organizador, com Rosana Pinheiro-Machado, de Brasil em transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização (Oficina Raquel, 2019)”.
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Para fazer memória ao Golpe de 1964 e à Ditadura Civil-Militar, entre março e abril o IHU vai promover diferentes conferências. A primeira ocorrerá na quarta-feira, 13 de março, às 10h. A atividade, intitulada O Golpe civil-militar de 64. Impactos, (des)caminhos, processos, contará com a participação dos professores Dr. Adriano de Freixo, da Universidade Federal Fluminense – UFF, e Dr. Valerio Arcary, do Instituto Federal de São Paulo – IFSP.
Confira a entrevista.
IHU – Passadas quase seis décadas do Golpe Civil Militar de 1964, como o Brasil olha para a sua própria história?
Adriano de Freixo – Há uma célebre frase do jornalista Ivan Lessa, um dos criadores do “Pasquim”, que permanece bastante atual: “A cada 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos”. Creio que ela traduz bem a nossa relação com o passado e com a história. E é justamente esse tipo de relação que possibilita, por um lado, os revisionismos históricos, que procuram apagar ou criar novas versões ao gosto do freguês sobre personagens e eventos e, por outro, a recorrente política de conciliação baseada na ideia de que é preciso “olhar o futuro e esquecer as divergências e conflitos do passado”. A forma como parte expressiva da sociedade brasileira, bem como agentes do Estado lidam com a memória do Golpe de 1964 e da ditadura é um bom exemplo disso. Uma amostra lapidar é a fala do então presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, em 2018, em uma palestra na Faculdade de Direito da USP: “Depois de aprender com o atual ministro da Justiça, Torquato Jardim, eu não me refiro nem mais a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”.
IHU – Há um personagem importante e complexo no Golpe de 1964, João Goulart, Jango. Quem foi Jango?
Adriano de Freixo – Jango foi, acima de tudo, um homem de espírito conciliador, na melhor tradição do getulismo. Ou seja, era alguém que desejava de fato implementar reformas econômicas e sociais, diminuir as desigualdades e construir uma sociedade mais justa, sob a bandeira de um nacionalismo progressista, mas estritamente dentro dos marcos constitucionais e sem propor qualquer ruptura. Uma espécie de social-democracia à brasileira. Isso o distanciava dos setores mais à esquerda dos movimentos sociais e do próprio PTB – que tinham em Leonel Brizola a sua principal referência – que não aceitavam a conciliação e nem acreditavam que os setores conservadores permitiriam que tais mudanças acontecessem sem reação e, por isso, defendiam as reformas “na lei ou na marra”.
IHU – O comício na Central do Brasil em 13 de março de 1964 é um marco importante nos desdobramentos que culminariam com sua deposição, em 1º de abril. O senhor poderia falar um pouco sobre a importância deste comício?
Adriano de Freixo – O Comício da Central do Brasil foi, sem dúvidas, um ponto de inflexão para João Goulart. É o momento que marca simbolicamente a sua “reconciliação’ com a esquerda do PTB. Com a conspiração já em andamento e de forma explícita e ficando cada vez mais isolado, não havia outro caminho para Jango a não ser deixar de lado as malsucedidas políticas conciliadoras e partir para o tudo ou nada, buscando respaldo popular para resistir ao golpe em andamento. Isso ajuda a entender o tom de seu discurso – bem mais radical e intenso que o habitual – no comício.
IHU – Dados historiográficos dão conta que mais 150 mil pessoas participaram do comício. Havia, por um lado, certo apoio popular às Reformas de Base, mas, por outro, a imprensa fez feroz oposição às propostas. Como esses diferentes pontos de vista ajudam a explicar o contexto em que o Golpe acabou se consolidando?
Adriano de Freixo – Havia apoio popular às reformas? Havia. Isso é indiscutível. Mas daí a esse apoio se traduzir em uma eventual resistência popular ao Golpe há uma grande distância. Não esqueçamos que os próprios setores mais organizados foram pegos de surpresa com a rapidez dos acontecimentos, o que mostra, no mínimo, uma leitura bastante equivocada da conjuntura e da correlação de forças. A fala de Luiz Carlos Prestes, em uma conferência na ABI no dia 27 de março, é um bom exemplo: quatro dias antes do Golpe, ele afirmava que não havia condições favoráveis para isto, mas que se os golpistas tentassem teriam as suas cabeças cortadas.
Por outro lado, não se deve esquecer que parte expressiva da sociedade apoiou o Golpe, que longe de ser uma iniciativa militar isolada contou com o apoio de importantes lideranças políticas civis, da cúpula da Igreja Católica, de organizações empresariais e de entidades como a OAB. Além disso, ele foi respaldado por uma forte mobilização – inclusive com manifestações de rua – interna, notadamente das camadas médias, e polo apoio externo dos EUA e seus aliados do bloco ocidental.
Nesse contexto, a imprensa – quase toda alinhada à oposição a Jango, com algumas poucas exceções – desempenhou um papel fundamental na construção da ambiência para a ocorrência do Golpe e, posteriormente, para a consolidação do novo regime, a partir principalmente das bandeiras da “ameaça comunista”, da preservação da ordem, da defesa da democracia e de um pretenso afastamento do Brasil dos valores do bloco ocidental.
IHU – Por que as Reformas de Base, que continham em si um certo projeto de Brasil, jamais foram implementadas? O anúncio delas no comício acelerou os movimentos políticos que culminariam no Golpe?
Adriano de Freixo – Elas não foram implementadas, ou o foram de forma parcial, justamente porque esse processo foi interrompido. A trajetória brasileira é um bom exemplo das dificuldades de um país periférico, com formações sociais periféricas e inserido de forma dependente no sistema mundial capitalista em superar sua situação de subalternidade e construir um projeto de desenvolvimento autônomo. A reação articulada de atores externos e das elites políticas e econômicas domésticas a diferentes tentativas de implementação de projetos nacionais (não necessariamente os mesmos projetos), em momentos distintos da história brasileira, demonstra isto. No caso do Golpe de 1964, a conspiração contra Jango já estava em andamento, pelo menos, desde a vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963. Porém, os discursos de Jango na Central do Brasil e no Automóvel Clube, em 30 de março, contribuíram para acirrar os ânimos e acelerar os eventos. Na retórica da direita, as reformas de base – mesmo que realizadas dentro dos marcos legais – seriam o pontapé inicial para a implementação do comunismo e para transformar o Brasil em uma “nova Cuba”.
IHU – Celso Furtado escreveu Brasil, a construção interrompida tratando, precisamente, da interrupção de um projeto de país que ocorreu com o Golpe. Mas era possível, de fato, que o Brasil fosse uma terceira via em relação aos Estados Unidos e à União Soviética? Quais eram os limites e possibilidades desta perspectiva?
Adriano de Freixo – Não creio que o Brasil pleiteasse ser uma “terceira via” em relação aos EUA e a URSS. A Política Externa Independente que começou a ser implementada durante o breve governo Jânio Quadros (um governo conservador, diga-se de passagem), em 1961, mas que tem suas raízes na década anterior, era uma política externa de caráter nacionalista e autonomista e fortemente vinculada ao projeto desenvolvimentista então em curso. Em vista disto, possuía diversos pontos de convergência com o chamado “Bloco dos não-alinhados”, grupo de países que começou a se articular na Conferência de Bandung, em 1955, no bojo do processo de descolonização afro-asiática, e que assumia como bandeiras a superação do subdesenvolvimento, o terceiro-mundismo, a luta contra o colonialismo e a neutralidade na Guerra Fria. Porém, apesar dessas convergências e de certa inspiração nasserista – Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito e uma das figuras mais emblemáticas do Bloco dos não-alinhados – presente na Política Externa Independente, o Brasil nunca ingressou nesse bloco. Pelo contrário, sempre frisou o seu pertencimento – inclusive em uma perspectiva histórica e cultural – ao bloco ocidental.
Neste sentido, a postura brasileira era a de – mesmo pertencendo ao bloco ocidental e buscando manter boas relações com a potência norte-americana – implementar uma política externa vinculada aos interesses nacionais brasileiros e ao projeto desenvolvimentista, deixando de lado o tradicional americanismo e buscando ampliar as parcerias estratégicas, em uma lógica universalista. Isso explica a aproximação com os países do Terceiro Mundo – notadamente os africanos – e a retomada de relações com a URSS e o bloco socialista. Ao mesmo tempo, defendia nos fóruns internacionais princípios basilares como o da não ingerência (a posição brasileira no caso cubano é lapidar), o desarmamento das superpotências, a descolonização e a superação do subdesenvolvimento.
A questão é que naquele contexto, quando a América Latina havia se tornado um dos pontos “quentes” da Guerra Fria após a Revolução Cubana e, principalmente, após o governo revolucionário ter definido o caráter socialista da revolução, a partir de 1961, e em que o anticomunismo era a ideologia unificadora da direita e da centro-direita – dos liberais aos reacionários – em uma sociedade bastante dividida e polarizada como a brasileira, qualquer orientação de política externa que não passasse pelo alinhamento – quase sempre – automático com os EUA e com o bloco ocidental era vista como potencialmente pró-soviética ou como uma “porta de entrada” para o comunismo. E isso gerou fortes reações, tanto no âmbito externo, quanto no interno. Ressalte-se que Jango sempre procurou manter boas relações com os EUA, como fica claro em sua visita aos EUA, em 1962, quando procurou estabelecer laços pessoais com John Kennedy ou no acordo que procurou construir, em 1963, para indenização das controladoras das empresas encampadas e nacionalizadas por Leonel Brizola, em seu período como governador do Rio Grande do Sul.
IHU – Além do Comício de 13 de março que outros pronunciamentos de Jango foram importantes no contexto dos anos 1950/1960? Por que os militares o viam como um comunista?
Adriano de Freixo – Além daquele na Central do Brasil, outro discurso de Jango bastante lembrado é o da noite de 30 de março de 1964, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, ao participar de um ato promovido pela Associação de Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar. Nele, Jango denunciou a conspiração em andamento, defendeu as reformas de base, apoiou as reivindicações dos cabos, sargentos e suboficiais (em meio às repercussões da revolta dos marinheiros ocorrida dias antes, cujos participantes foram por ele anistiados) e criticou os militares golpistas, em um tom bem mais radical do que o do Comício de 13 de março. Em vários depoimentos de militares que tiveram participação ativa no Golpe, esse acontecimento é relatado como o fator que teria levado inúmeros oficiais ainda indecisos a aderirem aos golpistas.
A questão é que desde o final dos anos 1930, o anticomunismo vinha se consolidando como a ideologia unificadora das Forças Armadas, notadamente do Exército, embora até 1964 ainda existisse um número bastante considerável de militares mais à esquerda, inclusive comunistas. Não se pode esquecer que o Golpe também serviu para que fosse realizada uma “depuração” interna nas Forças Armadas, afastando as vozes dissidentes – as FA foram uma das instituições com o maior número de integrantes alvos de perseguições pelo Estado brasileiro, o que inclui cassações, reformas compulsórias e demissões a bem do serviço público – e promovendo a uniformização ideológica.
Com a Guerra Fria e o estreitamento dos laços entre as Forças Armadas brasileiras e as Forças Armadas estadunidenses – que se traduziram, dentre outras coisas, na criação da Escola Superior de Guerra e na formulação da Doutrina de Segurança Nacional -, parte expressiva dos militares incorpora o discurso de defesa do mundo ocidental e de seus valores e qualquer partido, liderança ou movimento político que se distanciasse um pouco disso era visto como um aliado dos comunistas, com a lógica amigo/inimigo sendo levada ao extremo. A passagem de Jango pelo Ministério do Trabalho durante o segundo governo Vargas, a sua liderança sobre o aparato sindical getulista e as acusações – recorrentes ao longo da crise política de 1953/54 – de que Getúlio e Jango planejavam implementar uma “República Sindicalista” – o primeiro passo para o comunismo – no Brasil, fazem com que Jango seja visto pela direita militar como o inimigo a ser combatido, principalmente após a morte de Getúlio, de quem era considerado o principal herdeiro político.
IHU – Como os eventos da história recente do Brasil nos ajudam a compreender como o conceito de democracia foi construído em nosso país? Em outras palavras, o que significa falar em democracia no Brasil?
Adriano de Freixo – Se eu fosse dar título a esta resposta, ele seria “Democracia, essa incompreendida”. Para boa parte da população, notadamente nos estratos superiores e médios, defender a democracia nada mais é do que defender seus interesses e privilégios, reais ou presumidos. Aliás, no discurso da Central do Brasil, Jango abordou essa questão com bastante propriedade:
“Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas. Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicato, da antirreforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam”.
Não é por acaso que as inúmeras rupturas institucionais – ou tentativas de rupturas – que tivemos ao longo da nossa história se deram sob o pretexto de defesa da democracia.
O ponto é que, mesmo nos interregnos democráticos que tivemos entre governos oligárquicos e/ou autoritários e ditatoriais, a democracia e o Estado de Direito sempre foram para poucos. A maioria da população brasileira viveu – e continua a viver – em um estado de exceção permanente, muito antes deste termo virar moda na academia e na mídia. Nessas quase quatro décadas desde o fim do período ditatorial aconteceram alguns avanços? Sim, sem dúvidas. Mas ainda estamos muito longe de ter uma democracia e uma cidadania plenas. E além de inúmeros entulhos autoritários da ditadura ainda permanecerem, os anos recentes nos mostraram como mesmo essa democracia restringida e limitada é bastante frágil e como a possibilidade de rupturas institucionais ainda paira sobre nós.
IHU – Em 8 de janeiro de 2023 o país esteve sob verdadeiro risco de uma nova ruptura institucional, foi por muito pouco. O que este evento revela sobre como compreendemos conceitos como liberdade e democracia?
Adriano de Freixo – Como disse em minha resposta anterior, a compreensão do que é a democracia acaba por variar de acordo com o gosto do freguês. Os golpistas de 2023 se consideram os verdadeiros patriotas e democratas contra a ditadura do STF e das esquerdas, assim como os golpistas de 1964 se colocavam como os defensores da democracia diante da “ameaça vermelha” e da desordem gerada pela subversão. Da mesma forma, interpreta-se o conceito de liberdade. Para a maior parte dos nossos liberais, por exemplo, ele se restringe à esfera econômica. E em nome disso, eles não hesitam em se aliar àqueles setores mais antidemocráticos e que não têm nenhum prurido em restringir os direitos e as liberdades políticas, desde que os interesses do mercado sejam contemplados. E aí tolera-se tudo: integrantes do governo anterior reproduzindo gestos e símbolos nazistas, tentativas de Golpes de Estado, interpretações heterodoxas da constituição e outras coisas mais.
IHU – Como avalia a orientação (determinação) do presidente Lula à sua equipe de não fazer memória aos 60 anos do Golpe de 1964?
Adriano de Freixo – Mais uma vez, Lula prefere contornar a questão militar, do que enfrentá-la, como aliás fizeram todos os governos pós-ditadura, inclusive aqueles que tinham à frente nomes que se destacaram na oposição aos governos ditatoriais como Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso ou o próprio Lula, em seus dois primeiros mandatos. Quem ousou tensionar um pouco as relações com os militares, mesmo assim de forma bastante tímida e sem bater de frente, foi Dilma Rousseff, com iniciativas como a Comissão Nacional da Verdade.
E é justamente essa postura do Executivo de não enfrentar a questão militar que fez com que um número expressivo de integrantes das Forças Armadas tenha participado diretamente ou apoiado as articulações que culminaram na tentativa de golpe em 2023. Ela também contribui para a manutenção da imagem que os militares construíram de si como “poder moderador” da República – e que é replicada por parte da sociedade – que leva até a malabarismos jurídicos para dar uma interpretação elástica ao artigo 142 da Constituição Federal, buscando referendar essa crença.
Por isso, quase 40 anos após o fim da ditadura, ainda há um forte déficit de cultura democrática nas Forças Armadas, que embora tenha raízes históricas profundas, está diretamente ligado ao processo inconcluso de transição da ditadura para a democracia.
E não deixa de ser sintomático que Lula justifique esta postura de conciliação com aquele argumento que mencionei em minha resposta à primeira pergunta: em uma entrevista recente, ele afirmou que não quer ficar remoendo o passado e que é preciso tocar o Brasil para a frente, além de se dizer mais preocupado com a tentativa de golpe de janeiro do ano passado. Como se não houvesse conexões entre 1964 e 2023…
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Adriano de Freixo (Foto: Divulgação)