Em mais de uma oportunidade, buscou-se destacar neste espaço – a exemplo do que o fizeram vários observadores da cena política nacional – o decisivo papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, em defesa das instituições republicanas e democráticas, seriamente ameaçadas durante o governo bolsonarista, desde seu início. Na verdade, ainda antes e durante o todo processo eleitoral que o guindou à Presidência, o ex-capitão a toda hora dirigia seus arreganhos autoritários, em especial contra o STF, o TSE e seus Ministros – o que era amplificado por seus acólitos nas mídias sociais virtuais por eles operadas cotidianamente.
Sempre é bom lembrar que, diante da reiteração e gravidade destes ataques, ainda em março de 2019, o então Presidente da Suprema Corte, com respaldo integral de seus colegas e louvado em dispositivo do seu Regimento Interno, dotado de força legal, determinou a instauração de inquérito objetivando apurar sua origem e autoria. Cabe recordar, igualmente que, na sequência daquelas investigações, levadas a efeito pela Polícia Federal, sob a supervisão e controle do Relator designado, Ministro Alexandre de Moraes, foi necessário desdobrar o inquérito original em outros procedimentos destinados a averiguar fatos que, embora diversos daqueles lá apurados, são a eles conexos.
É o caso de criação e divulgação de informações falsas e ofensivas por meio das mídias digitais – as ditas fake news – originadas do que se convencionou chamar “gabinete do ódio”, instalado e montado na própria cúpula do Poder Executivo; da mobilização permanente do rebanho fascistóide, pela via preferencial das redes virtuais, visando à deflagração de golpe de estado; da confecção de atestados de vacinação falsos, para permitir que o tosco governante, seus familiares e assessores viajassem ao exterior; bem como sua apropriação pessoal de joias, relógios e outros bens, doados ao País por Chefes de Estados estrangeiros.
As apurações apontam que tais condutas, ligadas indissoluvelmente entre si, são fruto do funcionamento, no seio do principal centro de poder nacional, de uma verdadeira organização criminosa, dedicada à efetivação de um projeto político autoritário e antidemocrático, mediante o cometimento, inclusive, de atos típicos de terrorismo de Estado – que culminaram no putsch frustrado de 08 de janeiro do ano passado.
Disso não resta mais dúvida, depois da revelação recente das manobras encetadas explicitamente pelo então Chefe do Executivo federal, em pelo menos duas oportunidades, uma anterior à eleição legítima de seu sucessor, e outra posterior à posse deste, visando a uma ruptura institucional destinada a manter ou reconduzir aquele ao poder. De fato, às grotescas cenas da reunião ministerial de 22 de abril de 2020, vieram se somar agora as espantosas visões do encontro realizado, pouco mais de dois anos depois, a 05 de julho de 2022, no qual o tosco dirigente exorta seus ministros, sobretudo os militares, a aderir ao golpe então planejado.
Inquestionável, também, que a firme decisão do Supremo em adotar e apoiar a efetivação das investigações conduzidas, com muita competência pela Polícia Federal, foi e continua sendo fator fundamental para preservar nossa jovem democracia, seriamente ameaçada nos últimos tempos. Neste particular, deve-se sempre exaltar o exercício, pela Corte, de sua função precípua na defesa e afirmação dos direitos constitucionais fundamentais da cidadania brasileira.
Chama a atenção, por isso, que também recentemente, ao tratar de temas da maior relevância para significativas parcelas da população, vulneráveis social e economicamente, o chamado Pretório Excelso tenha avalizado, quando não se adiantado na tomada de posições francamente retrógradas – negando-lhes ou retirando-lhes direitos há muito consagrados.
Trata-se de matéria trabalhista, temática na qual sua maioria não apenas chancelou a lamentável reforma legislativa promovida no governo-tampão, que preparou a assunção do Boçal ao Planalto, com também, no período mais próximo, tem-se dedicado a legitimar a desproteção jurídica dos trabalhadores precários, reformando indevidamente decisões prevalentes da Justiça do Trabalho sobre a questão, inclusive no Tribunal Superior do Trabalho.
A propósito, vale recorrer aqui a artigo de membro deste Colegiado Superior, o Ministro Cláudio Brandão, no qual se menciona e discrimina as diferentes funções e competências exercidas pelos órgãos do sistema de justiça, na apreciação e julgamento de litígios envolvendo as relações de trabalho – em especial, as relações de emprego que, como se sabe, atraem a aplicação das normas e princípios da Consolidação das Leis do Trabalho e legislação complementar.
Assim, como lembra didaticamente o autor, cabe aos juízes trabalhistas, no primeiro grau, e aos Tribunais Regionais do Trabalho na segunda instância da Justiça laboral, a definição dos fatos trazidos pelas partes, fazendo o exame das provas por elas produzidas, a fim de fazer a aplicação, ou não das normas trabalhistas invocadas. E compete aos Tribunais Superiores – TST e STJ – em caso de recurso das partes, sem reexaminar a matéria fática ou probatória, estabelecer se houve interpretação adequada da legislação federal aplicável, bem como fazer, quando julgado necessário, a chamada uniformização da jurisprudência (aplicação das decisões paradigmáticas aos casos similares).
E, por sua vez, é cometida ao Supremo, caso acionado pelas partes, a competência para, também vedado reexame de questões de fato e/ou prova, definir se houve ou não, nas precedentes decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, ofensa a princípio ou norma constitucional – no exercício do denominado exame concentrado de constitucionalidade.
Claro fica por esta exposição, feita pelo citado articulista em estrita conformidade com a Constituição Federal e leis de regência da matéria, que não compete à Corte Suprema, mesmo situada no vértice do sistema de justiça, reexaminar o mérito dos acórdãos proferidos pelo TST e STJ, no que se refere aos aspectos fáticos das questões controvertidas. E, lamentavelmente, a maioria de seus integrantes tem desrespeitado estes limites quando se trata da discussão sobre algumas das inovações trazidas pela Lei 13.352/2016 – a malfadada reforma da legislação trabalhista deixada pelo inefável Michel Temer, como legado de sua passagem pelo Palácio do Planalto, após o golpe midiático-parlamentar que depôs a Presidenta Dilma.
Isso ocorreu em diversas ocasiões recentes, em que o STF atendeu recursos de empresas que contratam trabalhadores de empresas de entregas de alimentos, ou de transporte privado, interpostos contra acórdãos dos Tribunais Regionais do Trabalho, confirmados pelo TST, que reconheceram nestas contratações as características indicativas do vínculo empregatício – quais sejam, subordinação, alteridade, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade. E, ao reformar tais decisões, o Supremo precisou examinar a ocorrência ou não dos fatos constitutivos da relação de emprego – extrapolando, portanto, sua competência constitucional.
Interessante notar que, dentre as justificativas usadas pelos juízes da Corte Suprema, em suas fundamentações de votos proferidos no sentido de reformar referidos acórdãos do TST, costumam aparecer menções à necessidade de atentar à “nova economia”, e também ao “…novo mundo do trabalho…”, bem como a necessidade de assegurar o “…princípio da livre iniciativa…” – todas estas, expressões típicas do discurso em defesa do malfadado neoliberalismo econômico, o qual, embora abandonado nos países do capitalismo central, ainda viceja em nações periféricas, como a nossa.
Evidentemente, não caberia ao Judiciário – muito menos ao seu principal órgão – imiscuir-se no mérito de opções políticas ou econômicas dos governantes, apenas e tão somente averiguar sua conformidade ou não aos princípios e regras legais, e no caso, especialmente, da Constituição Federal. Além do mais, ao extrapolar suas funções, prolatando decisões que exigem exame questões de fato e/ou prova, o Supremo violou a vedação de retrocesso, em sede de direitos fundamentais – alijando importantes segmentos sociais da proteção jurídica indispensável, diante de sua notória situação de vulnerabilidade, como é o caso de entregadores de comida e motoristas “uberizados”.
Tal postura, neste aspecto de negação de direitos francamente contraditória àquela adotada no enfrentamento às investidas dos neofascistas contra as instituições democráticas, demonstra que os integrantes da cúpula do sistema de justiça (para não falar dos demais), vivem o tradicional paradoxo dos liberais brasileiros. Para melhor demonstrá-lo, e desculpando-me pelo cunho anedótico do episódio, recorro a uma lembrança pessoal.
Cerca de vinte anos atrás, ao encontrar-me no Tribunal de Justiça gaúcho com um amigo – conhecido e experiente advogado que atuava, e ainda atua também perante os Tribunais Superiores, em Brasília – pedi-lhe que me explicasse as razões pelas quais um determinado Ministro do Supremo, responsável naqueles anos pela introdução e afirmação de decisões paradigmáticas em favor do garantismo penal e das prerrogativas individuais da cidadania, quando se tratava de decidir demandas sociais e/ou econômicas, sistematicamente adotava posições muito conservadoras – para não dizer, reacionárias.
“Muito fácil”, respondeu-me o antigo causídico: “UDN, ele é cria da velha UDN – defensora das garantias individuais e opositora ferrenha do avanço e dos direitos da classe trabalhadora, em especial”.
Pois, parece que esta é a chave explicativa para os movimentos pendulares dos membros da Suprema Corte, os quais reproduzem o padrão ideológico tradicionalmente vigente na direita brasileira – de modo que, ao mesmo tempo em que assumem a defesa das instituições democráticas e, portanto, das garantias e direitos individuais, no plano social e econômico não se pejam em retirar a proteção jurídica devida aos cidadãos e cidadãs vulneráveis. (Publicado no Sul 21, em 14/03/2024)