Bolsonaro: a falsa vacina e os caminhos da prisão

Breve guia para entender o emaranhado de denúncias que pesa contra o ex-presidente. Como elas se relacionam entre si e o papel das leis de transparência. Quais os próximos passos das investigações e processos, até uma eventual condenação

por Glauco Faria, em Outras Palavras

A notícia do indiciamento de Jair Bolsonaro no caso da fraude do cartão de vacina, sob acusação da prática dos crimes de associação criminosa e inserção de dados falsos em sistema de informação, trouxe o questionamento se haveria relação desse delito imputado ao ex-presidente com a tentativa de golpe de Estado, também sob investigação. Segundo a Polícia Federal (PF), a conexão existe.

O relatório atesta que o “uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens ilícitas” também pode ter sido utilizado pelo grupo “para permitir que seus integrantes, após a tentativa inicial de Golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior (cartão de vacina), aguardando a conclusão dos atos relacionados a nova tentativa de Golpe de Estado que eclodiu no dia 08 de janeiro de 2023”.

Assim, a hipótese é de que o ex-presidente, caso fosse implicado de alguma forma na tentativa de execução de uma ruptura institucional no período em que estivesse fora do país, estaria com condições formais para viajar a qualquer outro país que tivesse restrições sanitárias mais rígidas em relação à vacinação contra o coronavírus.

A PF aponta que o ex-ajudante de ordens Mauro Cid “recebeu a ordem” de Bolsonaro “para fazer as inserções dos dados falsos no nome dele e da filha” e que os certificados foram impressos e entregues em mãos ao então presidente. Segundo o relatório, foram obtidos dados comprovando que “a impressora estava instalada na Ajudância de Ordens do Palácio do Alvorada, residência do então Presidente da República”.

A investigação mostra ainda que até o dia 22 de dezembro, a conta de Bolsonaro no sistema gov.br, usada para acessar o ConecteSUS, que armazena os certificados de vacinação, era administrada por Mauro Cid. Após gerar o certificado de vacinação contra a Covid-19 obtido por meio da inserção anterior de dados falsos, o e-mail de cadastro foi alterado uma conta de e-mail pertencente a Marcelo Costa Câmara.

A alteração ocorreu pelo fato de Câmara ter continuado como assessor de Bolsonaro após sua saída da presidência da República, inclusive viajando em três oportunidades para cidade de Orlando junto com ele.


Todo o fio que levou à investigação da Polícia Federal sobre o esquema de fraude do cartão de vacinação começa com um instrumento que deu mais transparência ao poder público: a Lei de Acesso à Informação (LAI).

Um pedido baseado na lei foi formulado no final de 2022. Antes, outros haviam sido realizados sobre o cartão de vacinação do então presidente, mas em janeiro de 2021 foi decretado sigilo de 100 anos relativos ao documento, sob alegação de que os dados “dizem respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem”.

A partir do pedido foi verificado que no cartão do ex-presidente havia uma indicação de que ele teria se vacinado em 19 de julho de 2021 na Unidade Básica de Saúde (UBS) Parque Peruche, na zona norte de São Paulo. A CGU investigou o fato, constatando que Bolsonaro não estava na capital paulista na data e o lote de imunizantes registrado no sistema também não estava disponível na ocasião naquela UBS. Com a apuração, foi possível verificar outra movimentação, que desencadeou na Operação Venire, da Polícia Federal.

Os investigadores da PF atestaram que as informações falsas sobre as vacinas que haviam sido inseridas no sistema do SUS em 21 de dezembro de 2022, aludindo a doses que teriam sido aplicadas em agosto e outubro daquele ano. Os dados foram excluídos seis dias depois e, nesse intervalo, foram emitidos os certificados de vacinação do ex-presidente e de sua filha foram emitidos. Seria uma forma de não deixar rastros da falsificação. Deu errado.


Muitas vezes avanços institucionais escapam aos olhos da sociedade, mas a LAI foi uma conquista que deve ser celebrada. Por meio dela, qualquer cidadão pode solicitar dados da administração pública, nos três níveis federativos e nas três esferas de poder, sem precisar justificar a demanda por informação.

Criada durante o governo Dilma, a lei entrou em vigor em 2012 e passou o governo Bolsonaro sendo desrespeitada, com a decretação de sigilos invocando a proteção de informações pessoais. Assim, não só o ex-presidente impediu durante um período o acesso a seu cartão de vacinação como também decretou sigilo sobre informações dos crachás de acesso emitidos em nome de seus filhos Eduardo e Flávio. O ataque à transparência vinha de longe, tanto que, em 2020, no início da pandemia, Bolsonaro editou a Medida Provisória (MP) 928, suspendendo “os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes”.

Fundamental para desvelar o esquema de fraude, a Controladoria-Geral da União também é um órgão relativamente novo na administração pública federal, criada em maio de 2003, durante o primeiro mandato de Lula.


O relatório da Polícia Federal destaca ainda que a apuração, que se desdobra em vários inquéritos em função dos múltiplos e diferentes crimes que podem ter sido cometidos, remete a uma “possível organização criminosa” com objetivos de “obtenção de vantagens de caráter diversos (políticos, patrimoniais ou não)”.

São cinco os eixos identificados pela PF:

a) ataques virtuais a opositores.
b) ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral.
c) tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
d) ataques às vacinas contra a Covid-19 e às medidas sanitárias na pandemia.
f) uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens.

Neste último item, segundo a investigação, há uma subdivisão que apura o “uso de suprimentos de fundos (cartões corporativos) para pagamento de despesas pessoais”, além da “inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde para falsificação de cartões de vacina” (referente ao inquérito que indicia Bolsonaro e mais 15 pessoas) e “desvio de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao ex-Presidente da República, JAIR MESSIAS BOLSONARO, ou agentes públicos a seu serviço, e posterior ocultação com o fim de enriquecimento ilícito”.

Em resumo, novos indiciamentos virão.

Foto: Orlando Brito

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