Diálogo vazado não afeta investigações sobre tentativa de golpe. Mas extrema direita busca deslegitimar Judiciário para livrar os que tramaram e subir mais um tom no discurso autoritário
por Glauco Faria, em Outras Palavras
A revista Veja divulgou nesta sexta-feira (22) áudios com a gravação de um diálogo entre o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, e um interlocutor não identificado. A conversa teria se dado em algum período após o último depoimento do militar `a Polícia Federal em 11 de março.
Cid dá a entender que teria sofrido coação no curso da investigação. “Eu vou dizer pelo que eu senti: eles já estão com a narrativa pronta deles, é só fechar. E eles querem o máximo possível de gente para confirmar a narrativa deles. É isso que eles querem”, diz o militar no áudio. “Eles são a lei agora. A lei já acabou há muito tempo, a lei é eles. Eles são a lei. O Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende, ele solta quando quiser, como ele quiser, com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação.”
Há outros trechos que vão no mesmo sentido. A defesa do ex-ajudante de ordens se manifestou afirmando que os áudios seriam “clandestinos” e que “não passam de um desabafo em que relata o difícil momento e a angústia pessoal, familiar e profissional pelos quais está passando”.
A motivação para a divulgação do diálogo é duvidosa. Se a iniciativa contou com a participação do próprio militar para se livrar da pecha de “delator”, alcunha que pesa bastante para o autor e também para pessoas próximas, os eventuais benefícios de sua colaboração podem cair por terra. A propósito, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), marcou para a tarde desta sexta-feira um novo depoimento do tenente-coronel.
Seja por dolo ou por negligência, importa de fato saber o que pode vir a partir da divulgação dos áudios.
Investigação de pé
Ainda que a delação de Cid seja anulada, a apuração continua de pé. Isto porque o conjunto probatório que a Polícia Federal tem em relação à tentativa de golpe e às outras apurações de possíveis delitos cometidos pelo ex-presidente e seu entorno não se resume aos depoimentos do ex-ajudante de ordens. Aliás, em fevereiro já havia surgido a notícia de que o militar poderia ter seus benefícios anulados pela desconfiança dos investigadores de que ele não teria fornecido todas as informações que preencheriam possíveis omissões naquilo que havia relatado.
Além da apuração posterior, realizada após as linhas indicadas por Cid, a PF já tinha um farto material apreendido com os equipamentos, como celular e computador, do ex-ajudante de ordens. A execução de outros mandados de busca e apreensão e depoimentos de testemunhas e investigados também corroboraram as apurações preliminares.
Se não têm um efeito importante do ponto de vista do inquérito em curso, os áudios reforçam a versão bolsonarista de perseguição judicial. As redes sociais da base do ex-presidente aproveitaram o fato para fomentar ainda mais a desconfiança em relação ao Judiciário e ao ministro Alexandre de Moraes, estratégia que já estava em curso e guarda semelhança com o que o republicano Donald Trump vem fazendo nos Estados Unidos.
O alvo no Judiciário
Aqui cabe um parêntese. Obviamente o Judiciário ou qualquer dos seus integrantes não é imune a observações e críticas. É o normal em um regime dito democrático. O jogo jogado pela extrema direita brasileira, entretanto, é outro, o da deslegitimação.
Lula, quando questionou a Lava Jato, fez a crítica pública e o enfrentamento, mas ao aceitar a própria prisão confiou na institucionalidade, acreditando que o sistema de Justiça conseguiria corrigir aquilo que havia sido feito nas instâncias inferiores e por integrantes do Ministério Público. Já Bolsonaro age e agiu de forma distinta.
Além de ter dito em um ato na Avenida Paulista que não acataria mais ordens judiciais vindas de Alexandre de Moraes, chamando-o de “canalha” em 7 de setembro de 2021, o ex-presidente, em evento realizado no Planalto em junho de 2022, voltou a desafiar a Corte. “Eu fui do tempo em que decisão do STF não se discute, se cumpre. Não sou mais”, disse então.
Além destas e de outras declarações de Bolsonaro, a minuta do golpe ilustra de forma precisa a atuação dos extremistas. Nela, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, representando o Judiciário, são vistos como inimigos e perpetradores de injustiças, o que daria base a uma ruptura como a prevista nos termos estabelecidos no futuro decreto. Subverte-se a lei com supostos remédios constitucionais para preservar o “Estado Democrático de Direito”.
Para justificar a afronta ao “princípio da moralidade institucional”, como diz o documento, são citados argumentos aleatórios como a multa imposta ao Partido Liberal (PL) e uma aludida suspeição de Moraes por ser, supostamente, amigo do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin. A fragilidade dos argumentos pouco importa, pois são meras justificativas formais que estariam apoiadas em uma “comoção popular” imaginada e não concretizada, restrita aos acampamentos próximos aos quartéis.
Os áudios de Cid se somam à cantilena bolsonarista com o intuito de constranger decisões judiciais, mas também de reforçar um ataque contínuo às instituições, em um cenário no qual o próprio Congresso Nacional, por meio de iniciativas como a PEC das Drogas, também atua para restringir o Supremo naquilo que é uma de suas funções, a guarda da Constituição. Lembrando que parlamentares que teriam colaborado com a tentativa de golpe, como Carla Zambelli, podem ainda ser investigados, com potencial de atiçar ainda mais o espírito corporativista do Legislativo.
Mesmo fora do governo federal, os extremistas seguem buscando corroer o frágil tecido democrático brasileiro. Não se pode ignorar ou subestimar seu poder de fogo.