Projeto que disponibiliza acervo sobre a ditadura civil-militar está reduzido a sua menor equipe desde 2009
Por Clívia Mesquita, no Brasil de Fato
Às vésperas da data que marca os 60 anos do golpe militar, servidores do Arquivo Nacional (AN), órgão vinculado ao Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) no Rio de Janeiro, denunciam que um importante instrumento de pesquisa e memória histórica deste período continua abandonado após anos de desmonte dos governos anteriores.
O projeto Memórias Reveladas está reduzido a sua menor equipe desde a sua criação em 2009, com apenas dois servidores. O banco de dados reúne e disponibiliza, de forma cooperativa, informações sobre de acervo arquivístico relativo à repressão política no Brasil no período de 1964 a 1985.
Em manifesto, a Associação dos Servidores do Arquivo Nacional (ASSAN) aponta o abandono do setor “que tem o objetivo de não nos deixar esquecer para nunca mais acontecer, como foi o desejo dos golpistas do 8 de janeiro de 2024”.
Entre as demandas colocadas pelos servidores está a recomposição do quadro, a retomada de projetos com organizações parceiras, o relançamento da Comissão de Altos Estudos e do Conselho Consultivo e a digitalização de documentos do período ditatorial, como os acervos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
Além disso, o texto afirma que a postura do presidente Lula (PT) de vetar eventos sobre a ditadura civil-militar é uma “ofensa a memória daqueles que morreram ou desapareceram nas mãos dos agentes desse infame regime”. Em resposta, a entidade convocou os servidores para um ato na próxima segunda-feira (1º).
Para o presidente da ASSAN, Felipe Almeida, a sociedade esperava o fortalecimento dos processos de memória, verdade e justiça, e até de retomada da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Nesse sentido, houve uma quebra de expectativa com o governo eleito há um ano contra o avanço da extrema direita.
“Foi com muita indignação que os servidores receberam esta posição do governo Lula de evitar qualquer menção aos 60 anos do golpe, visto que o Arquivo nacional e seus servidores cumpriram função primordial tanto no projeto Memórias Reveladas, quanto na Comissão da Verdade”, disse ao Brasil de Fato. “Ficou uma sensação de um esforço jogado fora”, completa.
Manifestação
Na segunda-feira (1º), a mobilização acontecerá na na escadaria principal do Arquivo Nacional, localizado na Praça da República, no centro do Rio, a partir das 15h. No final da tarde, os servidores se juntam ao ato unificado de movimentos sociais em memória das vítimas da ditadura que terá início na antiga sede do antigo Dops, na Lapa.
Por meio da Coordenadoria de Comunicação, o Arquivo Nacional reafirmou o compromisso com a memória da ditatura no Brasil. Em nota enviada à reportagem, o órgão afirma que tem “empreendido ações para reconstrução e fortalecimento do Memórias Reveladas, assim como de todos os projetos realizados pelas equipes de trabalho da instituição”.
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O texto ainda destaca a nomeação da historiadora Gabrielle Abreu, no último dia 1º de março, que assumiu a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo (DPT), como “mais uma demonstração do compromisso da gestão com a temática”.
“A nova diretora é reconhecida pesquisadora sobre a história da ditadura militar brasileira e seus desdobramentos no presente. Nos últimos dois anos, atuou como Coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog”, diz um trecho.
Sobre a digitalização do acervo dos Dops estaduais, o órgão retornou que a responsabilidade pela execução e da alimentação da base é dos custodiadores dos documentos. “Todos os acervos sob a responsabilidade do AN, pertinentes ao Centro de Memória, já se encontram digitalizados e disponíveis para consulta”, finaliza.
Leia a entrevista completa com o presidente da ASSAN, Felipe Almeida:
Brasil de Fato: Qual a atual situação do Memórias Reveladas?
Felipe Almeida: A situação do Memórias reveladas não é boa. Desde a chegada da nova direção esperávamos, em oposição ao que vivemos nos últimos anos desde o golpe do Temer e do governo Bolsonaro, por mais atenção ao projeto. Entretanto o que vimos foi o mesmo esvaziamento.
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Tínhamos apenas quatro servidores no início de 2023, e hoje, esse número foi reduzido para apenas dois servidores. Ao mesmo tempo propostas apresentadas por estes servidores, como a volta do Prêmio Memórias Reveladas ou a realização de um seminário sobre os 60 anos do golpe, não foram levadas a diante por parte da direção do órgão.
Como os servidores receberam a posição do governo de não autorizar a organização de atos relembrando o golpe?
Foi com muita indignação que os servidores receberam esta posição do governo Lula de evitar qualquer menção aos 60 anos do golpe, visto que o Arquivo nacional e seus servidores cumpriram função primordial tanto no projeto Memórias Reveladas, quanto na Comissão da Verdade.
Ficou uma sensação de um esforço jogado fora.
Foram quase 20 anos de um projeto de resgate da memória dos presos e desaparecidos políticos que agora são sumariamente dispensados e calados pelo governo. Além de um desrespeito com toda a sociedade e com os eleitores que votaram neste governo esperando a continuidade deste processo.
Pode nos contar mais sobre a mobilização para essa data?
Dada esta decepção, nós servidores do Arquivo Nacional resolvemos organizar um ato nas escadarias do prédio no próximo dia Primeiro de Abril, para que a memória destes tempos sombrios sejam lembradas, que venham à tona para que nunca mais passemos por um período como este.
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Apenas a punição dos responsáveis por este período sombrio da nossa história pode garantir que não ocorram outras aventuras antidemocráticas, como as aventadas em 8 de janeiro de 2023.
Quais as principais lutas dos servidores do Arquivo Nacional hoje?
A nossa principal luta é a mesma que trazemos de muitas décadas, que é um plano de carreira para os servidores do órgão. A falta de uma carreira própria gera muitos problemas internamente, desde não haver nenhum adicional de qualificação para os servidores, até algo mais grave, que é um salário composto em grande parte por gratificações que são perdidas quando o servidor se aposenta.
Hoje, ao se aposentar, os servidores perdem cerca de 40% de seus vencimentos, o que leva os servidores a aposentarem-se somente de forma compulsória, ao chegar aos 70 anos, e ainda com este problema de perder quase metade dos seus rendimentos. O momento de aposentadoria, que deveria ser um momento de descanso e tranquilidade por quem tanto trabalhou pela memória do país, torna-se um momento triste, que gera apenas angústia e sofrimento.
Esperamos sensibilidade por parte deste governo eleito pelos trabalhadores, e estamos solicitando a abertura de uma mesa de negociação para a carreira por parte do governo, para valorizar o Arquivo Nacional e seus servidores.
Edição: Mariana Pitasse
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Monumento Tortura Nunca Mais, no Recife, é uma homenagem às vítimas da ditadura militar.