Os donos do livro

Cauê Ameni, Haroldo Ceravolo Sereza, Ivana Jinkings e Rogério de Campos escrevem sobre o ataque da Amazon à bibliodiversidade.

Por Cauê Armeni, Haroldo Ceravolo Sereza, Ivana Jinkings e Rogério de Campos, no Blog da Boitempo

Em março, dezenas de editoras e milhares de autores e leitores brasileiros foram surpreendidos pela retirada de um enorme acervo de livros digitais da Amazon. A gigante e a distribuidora Bookwire não se acertavam sobre percentagens de seus negócios e, assim, sem quê nem por quê, os e-books evaporaram da plataforma.

Quem é o dono do seu livro? Essa pergunta serve para o leitor, para o autor e para o editor. A produção e circulação de uma obra é uma realização social, que envolve papéis diversos. São trabalho e tempo humano gastos por quem escreve, edita e lê. A decisão da Amazon foi um grave ataque à bibliodiversidade.

Os fatos de março sugerem que os livros digitais têm donos, que não se importam com o elo mais frágil do mundo das ideias. O episódio mostrou como a leitura é controlada economicamente por empresas descoladas da lógica social e cultural. São grupos transnacionais com que o diálogo é impositivo, entre forças desiguais e descombinadas.

Os e-books sumiram e depois voltaram, quando as empresas fecharam um acordo. Não se falou uma linha, nos parcos comunicados, em indenizar editores, autores, leitores. Você, leitor, nada vale para as gigantes digitais, embora o cadastro e as informações que recolhem por meio de cookies valham muito dinheiro.

Amazon e Bookwire têm suas sedes longe daqui. E o Brasil foi apenas um detalhe na guerra mundial entre as duas empresas. A Amazon começou o ataque onde a legislação era mais débil: Itália, Espanha, Brasil — até chegar à Alemanha e ao resto onde atua. A condução da negociação tratou os conteúdos em jogo como se tivessem sido produzidos por elas, demonstrando concentração desproporcional de recursos econômicos e poder no setor.

O caso aponta para um futuro perigoso. No que se refere aos livros impressos, a Amazon ainda não detém 87% do mercado. Mas já ultrapassa os 50%, situação inédita na história do livro. O país viveu há poucos anos a euforia das redes de grandes livrarias, que expulsaram tantas casas independentes. Cultura, Fnac e Saraiva usavam seu poder de compra para impor condições únicas. Mas nem juntas conseguiram consolidar 50% do mercado. Hoje, a Amazon não tem concorrentes. É apenas questão de tempo chegar aos 90% nos livros impressos — a menos que algo seja feito.

Há diversas cidades com centenas de milhares de habitantes no Brasil e apenas uma livraria. Ou nenhuma. Para dar alguma chance de sobrevivência às independentes, há décadas editores e livreiros propõem a Lei do Preço Comum, em debate no Senado. A ideia é limitar os descontos no ano de lançamento das obras, de modo que a livraria da esquina possa tentar competir com grandes redes e corporações.

Países que adotaram leis semelhantes — como França, Alemanha, Portugal e Argentina — viram o preço médio do livro cair e hoje têm mais livrarias — “mais livrarias” pode parecer desnecessário quando pensamos na força da internet, mas vamos trocar de mercadoria: você gostaria de comprar carne apenas pela web? Deixaria de ir ao restaurante preferido para encontrar amigos e servi-los por um aplicativo? O acesso à cultura e à leitura tem de ser ainda mais plural e diverso que o acesso a outros produtos.

As livrarias de rua cumprem um papel essencial. Algumas atuam como centros culturais a promover debates, clubes de leitura etc., raramente com algum apoio do Estado. São as pequenas livrarias que dão espaço às pequenas editoras, ajudam a lançar novos autores e a promover o debate de ideias.

A Amazon é, antes de tudo, um aplicativo. O governo Lula acaba de propor uma regulação do trabalho nas plataformas. Algo semelhante deve ser pensado para a distribuição de livros, físicos e digitais. Não é possível que tema tão importante para a cultura fique à mercê de um monopólio que nem sabemos onde fica. O livro é um bem cultural, não pode ter um dono só.

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