Apesar do peso político e histórico da Anistia, para lideranças indígenas é preciso que o Estado vá além da anistia e conclua a regularização de seus territórios
Por Maiara Dourado, da Assessoria de Comunicação do Cimi
Os povos indígenas brasileiros viveram um momento histórico na última terça-feira (2). Pela primeira vez, o Estado reconheceu publicamente as violações cometidas no período da Ditadura Militar (1946 a 1988) contra os povos Krenak, da Terra Indígena (TI) Krenak de Sete Salões, localizada no município de Resplendor, em Minas Gerais, e Guarani Kaiowá, da TI Guyraroká, situada no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul.
A decisão é também considerada inédita pelo caráter coletivo da reparação. A Comissão, que antes apenas previa anistia em caráter individual em seu regimento interno, alterou seu regulamento para declarar, pela primeira vez, a anistia política coletiva aos dois povos. O reconhecimento envolveu dois pedidos de reparação feitos, em 2015, pelos povos Krenak e Guarani Kaiowá à Comissão de Anistia, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
A decisão é também considerada inédita pelo caráter coletivo da reparação
Em 2022, os mesmos pedidos encaminhados pelo Ministério Público Federal (MPF) foram rejeitados pela Comissão antecessora, que ainda operava sob a gestão do então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. Tanto o MPF de Minas Gerais como do Mato Grosso Sul recorreram da decisão que negou o provimento do pedido, hoje acolhido em sua integralidade pela nova Comissão.
A anistia concedida pela Comissão não possui efeitos diretos sobre os pedidos feitos pelas comunidades. Elas buscam, além do reconhecimento das graves violações cometidas pelo Estado, a reparação, de forma prática, aos danos causados pelas perseguições, mortes, torturas e remoções forçadas promovidas pelo Estado militar.
Em 2022, os mesmos pedidos encaminhados pelo Ministério Público Federal (MPF) foram rejeitados pela Comissão antecessora.
“Eu peço, em nome do povo Guarani Kaiowá, que a nossa terra seja reconhecida como terra indígena”, exigiu Erileide Domingues, jovem liderança da TI Guyraroka, em sessão plenária que a titulou, junto a seu povo, anistiada política.
“A gente que mora em uma retomada corre o risco de ser despejado. A gente não consegue ter paz, a gente não consegue ter liberdade enquanto o Estado brasileiro não reconhecer que Guyraroka é terra indigena”, relata a liderança, que apesar da Anistia segue com seu povo vivendo em um contexto de permanente ditadura. “Para nós, a ditadura nunca parou”, afirmou a liderança.
“Eu peço, em nome do povo Guarani Kaiowá, que a nossa terra seja reconhecida como terra indígena”
Para os representantes do povo Krenak, o status simbólico e coletivo da Anistia é importante, mas limitado. Para Geovani Krenak, liderança da TI de Sete Salões, “o status de anistiado do povo Krenak só terá algum efeito se o Estado concretizar a demarcação do nosso território. O simbolismo [da reparação] não vai amenizar o sofrimento do povo, não vai garantir aquilo que está na Constituição, que é o direito originário sobre os territórios”, considera a liderança. Ao mesmo tempo, Geovani entende que a reparação, com seu valor histórico e político, se torna para o povo Krenak mais “uma ferramenta de luta para pressionar pela demarcação do território”.
Os povos pedem, além do reconhecimento de seus territórios, uma série de ações no desenvolvimento de políticas públicas que garantam o fortalecimento social e cultural das comunidades. Os pedidos, acatados pela Comissão, devem agora ser recomendados à União, às autoridades e órgãos competentes.
É preciso mais que desculpas
Na sessão plenária que julgou os dois casos indígenas, a presidenta da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, junto aos demais conselheiros, formalizou um pedido de desculpas em nome do Estado aos representantes dos dois povos ali presentes.
No entanto, para Geovani, é preciso mais do que um pedido de desculpas da Comissão para que não se repita os erros do passado. “É preciso que o Estado repense o seu papel diante dos povos indígenas afetados pela Ditadura”.
“É preciso que o Estado repense o seu papel diante dos povos indígenas afetados pela Ditadura”
Para isso, exige da Comissão o mesmo status de anistia concedido a anistiados não indígenas, reivindicando, inclusive, reparação econômica às comunidades, que foram igualmente lesadas pelo Estado militar.
A lei da Anistia não prevê reparação econômica em caráter coletivo a povos e comunidades indígenas, prerrogativa garantida apenas em requerimentos individuais. “Mas o Estado brasileiro na época da Ditadura, interferiu na nossa economia. Então, se nós somos anistiados, se o Estado brasileiro pediu desculpas, se todas as violações foram comprovadas, qual o motivo da gente não ter reparação econômica? Se isso permanecer é mais uma exclusão da própria lei da Anistia em relação aos povos indígenas”, confronta Geovani.
“se nós somos anistiados, se o Estado brasileiro pediu desculpas, se todas as violações foram comprovadas, qual o motivo da gente não ter reparação econômica?”
Para a liderança, os empecilhos legais colocados pela Lei de Anistia incorre em mais uma forma de discriminação contra os povos indígenas. No entanto, “é importante lembrar que a Constituição Federal nos garante a nossa organização social impondo à vocês não indígenas uma maneira de interpretar as suas limitadas formas de reparação”, cobra a liderança.
Além da discussão sobre uma possível reparação econômica, a ação que ambos os povos entendem como mais importante para iniciar uma reparação efetiva às violações cometidas durante, antes e depois do regime militar é a conclusão das demarcações de suas terras, garantindo a suas comunidades o usufruto exclusivo de seus território, conforme prevê a Constituição de 1988, que sucedeu a época sombria da Ditadura.
Caso Krenak
Durante o período do regime autoritário, o povo Krenak foi alvo de perseguições, torturas e assassinatos cometidos por militares. O caso ficou amplamente conhecido com a abertura das investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e o desvelamento do reformatório Krenak, uma espécie de “campo de concentração” criado pelo governo militar para o encarceramento de indígenas de povos de todo o país.
O reformatório, que foi sucedido pela Fazenda Guarani, operou entre os anos de 1970 e 1974, como local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas. Nesse mesmo contexto, foi criada a Guarda Rural Indigena (Grin), uma unidade de militarização de indígenas, com o objetivo de formar e treinar milícias em técnicas de tortura e repressão.
O povo Krenak foi alvo de perseguições, torturas e assassinatos cometidos por militares.
Ainda durante o período militar, o povo Krenak da TI de Sete Salões foi removido de seu território e espalhado por entre os vários postos indígenas criados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista do Estado que funcionou entre 1910 e 1967, quando foi extinto – já em meio à Ditadura – e substituído pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Dejanira, anciã do povo Krenak, era criança quando foi deslocada junto aos seus pais para território Maxacali, mas a terra que lhes era sagrada fez com que seu pai retornasse. “Porque nós temos nossa terra Krenak, nós nunca vamos abandonar nossa terra Krenak. Então eu não vou mais para terra nenhuma”, narrou Dejanira a forma como seu pai resoluto decidiu voltar a TI Krenak de Sete Salões.
Dejanira, anciã do povo Krenak, era criança quando foi deslocada junto aos seus pais para território Maxacali
Hoje, o povo Krenak tenta recuperar parte do território do qual foi expulso no passado. Para isso, reivindica a demarcação da TI Sete Salões, uma área considerada sagrada, que teve seu processo de identificação e delimitação finalizado em abril do ano passado. Desde então, os indígenas aguardam a emissão da portaria declaratória, penúltima etapa para conclusão da demarcação.
A TI Krenak de Sete Salões foi uma das duas únicas que tiveram seu relatório de identificação e delimitação publicado pela Funai sob o governo Lula, em abril de 2023. Após decisão judicial obtida pelo MPF numa Ação Civil Pública determinando a demarcação da terra, a TI foi delimitada oficialmente com 16.959 hectares. Desde então, a demarcação não avançou.
Caso Guyraroká
Durante a sessão plenária, a Comissão apreciou, ainda, o pedido de reparação dos indígenas Guarani Kaiowá da TI Guyraroká, que foram removidos forçosamente de seu território para serem confinados e aglutinados em reservas indígenas.
No início do século XX, a remoção se deu com a finalidade de se abrir novas terras para a exploração econômica e fornecer mão de obra para servir à produção de erva mate, então comandada pela famigerada Cia Matte Laranjeira. Durante a Ditadura, os indígenas foram mantidos fora de seu território e sob intensa repressão, impossibilitados de retornar à sua terra.
Durante a Ditadura, os indígenas foram mantidos fora de seu território e sob intensa repressão, impossibilitados de retornar à sua terra
A retirada de seu território causou prejuízos irreversíveis à comunidade de Guyraroká, hoje ilhada em meio a plantações de soja e comprimida em uma área de pouco mais de 50 hectares. Para a comunidade, o confinamento é resultado direto do esbulho de terras indígenas promovidos antes e durante o governo militar.
“A Ditadura tirou toda a nossa terra”, lembra seo Tito Vilhalva, ancião Guarani Kaiowá, que com mais de um século de vida, nunca deixou de lutar por sua terra. “Eu nasci lá, minha esposa Miguela nasceu lá. Guyraroká é aldeia”, reivindicou seo Tito, que hoje tenta restituir os 11 mil hectares suprimidos de seu território.
“A ditadura tirou toda a nossa terra”
Atualmente, a comunidade Guyraroká vive em meio a um conflito que resulta em frequentes assassinatos de indígenas e na contaminação sistemática por agrotóxico. Com o reconhecimento do Estado das violências cometidas contra a comunidade indígena durante o regime militar, a expectativa é que se reconheça também, por meio da demarcação, o seu direito territorial.
A TI Guyraroká teve sua demarcação anulada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014, com base no argumento da tese do marco temporal e sem a participação da comunidade como parte no processo. Em 2018, os indígenas de Guyraroká entraram com uma ação rescisória da sentença que lhes negou o pertencimento da terra, depois admitida, em 2021, pela Suprema Corte em decisão unânime. A ação, contudo, ainda aguarda julgamento.
Atualmente, a comunidade Guyraroká vive em meio a um conflito que resulta em frequentes assassinatos de indígenas
Segundo o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, do MPF do Mato Grosso do Sul, apesar de simbólica, a reparação pode influir sobre a ação rescisória que busca reverter a anulação da TI Guyraroká.
“A partir do momento em que o Estado pede desculpas e reconhece a existência de uma remoção forçada, abre espaço para que o Judiciário sensibilize e priorize esse tema de uma maneira diferente, porque o Estado brasileiro reconheceu a gravidade do fato e me parece que o Judiciário não pode desconsiderar isso ponto de vista jurídico”, considera o procurador.
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Tito e Miguela Vilhalva, anciões Guarani Kaiowá, são anistiados junto sua comunidade da TI Guyraroka. Foto: Maiara Dourado/Cimi