A globalização está em crise. Direita deu-se conta e evoca ideia de nação que se liga a Propriedade, Privilégio e (falsa) Segurança. Esquerda demora-se, porque não enxerga as possibilidades de uma luta do povo contra o capital e suas misérias
Por Fernando Marcelino, em Outras Palavras
O historiador Eric Hobsbawn apontava que o os governos dos Estados-nações e Estados territoriais modernos apoiam-se em três presunções: primeiro que tenham mais poder do que qualquer outra unidade que opere em seus territórios; segundo, que os habitantes dos seus territórios aceitem mais ou menos de bom grado sua autoridade; e terceiro, que eles possam proporcionar aos habitantes serviços que de outra maneira não poderiam ser prestados com efetividade, como a manutenção da lei e da ordem. Por mais de duzentos anos, até o final da década de 1970, a ascensão do Estado moderno deu-se de forma contínua e independentemente da ideologia e da organização política. Nos últimos quarenta anos, a tendência se inverteu. O Estado neoliberal abandonou muitas de suas atividades diretas tradicionais. O Estado territorial perdeu o monopólio da força armada, da estabilidade e do poder. Ao minar a influência do Estado na condução da sociedade, o (neo)liberalismo passou a desmontar o aparelho estatal, privatizando suas funções para o mercado ou simplesmente retirando-o da responsabilidades antes estratégicas, como o uso legítimo da violência, política monetária e cambial, política externa, energia, infra-estrutura, indústria, serviços de saúde e educação e cultura (HOBSBAWN, 2007).
O conceito de soberania, tal qual o entendemos desde alguns séculos, vem sofrendo uma série de questionamentos, dadas as numerosas variáveis que o colocam em xeque a cada momento, na atualidade. Tais variáveis são tanto de ordem política, econômica, cultural, tecnológica e mesmo natural. Vários elementos contribuíram para a mudança do Estado moderno para o Estado contemporâneo e a consequente alteração no conceito de soberania. O primeiro é o surgimento de novos atores internacionais, como as organizações internacionais, empresas transnacionais e as organizações não-governamentais (ONGs). Outro elemento que afronta a soberania individual do Estado é o desenvolvimento do direito internacional, que impõe normas que buscam regular as relações internacionais, inclusive dentro do âmbito estatal quando da proteção de direitos dos cidadãos, como os direitos humanos. O Estado nacional perde o monopólio da soberania jurídica, tendo que conviver com uma série de atores como escritórios jurídicos, ONGs, instituições internacionais e nações hegemônicas. Um terceiro elemento é a internacionalização do processo de elaboração de decisões políticas. Com o crescimento das novas formas de associações políticas, há uma rápida expansão dos vínculos transnacionais, crescente interpenetração da política externa na doméstica e o desejo da maioria dos Estados em possuir uma forma de governo e regulação internacional que possa afrontar os problemas políticos coletivos. Um quarto elemento são os poderes hegemônicos e estruturas de segurança internacional, que se contrapõem com a idéia de Estado como um ator militar e estrategicamente autônomo no desenvolvimento do sistema global de Estados.
Um quinto elemento limitador é a identidade nacional e globalização da cultura. Afinal, com a consolidação da soberania estatal nos séculos XVIII e XIX houve uma promoção da identidade do povo como sujeito, como cidadão. O cidadão estando sujeito à jurisdição de um dado Estado foi progressivamente compreendendo que pertencia à respectiva comunidade, bem como quais seriam os direitos e obrigações aos quais deveria se sujeitar. Com o desenvolvimento dos veículos de comunicação ocorreu o que pode ser denominado de “globalização cultural”, com contados cada vez mais intensos com pessoas de outros países, outras culturas e outros pensamentos. Com o advento da internet, as fronteira culturais tornam-se ainda mais fluidas, ao passo que, estimulam-se novas formas de identidades culturais, ao mesmo tempo reavivando, intensificando ou, por vezes, destruindo, as antigas. Isso remodela a política, pois no interior dos Estados, os partidos são minados e superados por novas formas de organização e participação política, perdendo sua soberania na intermediação entre as pessoas e os governos.
Com a globalização neoliberal, até os Estados ocidentais mais fortes e estáveis perderam seu monopólio absoluto da força coercitiva, a lealdade voluntária dos cidadãos ao Estado e a capacidade do Estado de prestar serviços eficientes para os cidadãos. O recuo do Estado de sua soberania nas últimas décadas é o principal fenômeno da globalização. Ele rompe com toda tradição de desenvolvimento das sociedades que perduram nos últimos séculos. Olhando para os últimas 40 anos de dominância liberal, com a retirada gradual da soberania do Estado, a taxa de crescimento econômico geral foi menor do que o keynesianismo da Segunda Guerra Mundial. Nem os principais países capitalistas centrais e nem os menos desenvolvidos ficaram ricos e fortes. Com pandemia de Covid-19, escancaram-se as mazelas do capitalismo, como falta de coordenação estatal, privatização e controle político em favor dos mais ricos, polarização social, crescimento e produtividade em declínio, farra nos mercados financeiros, insegurança alimentar e até casos de pirataria, como no caso do governo norte-americano confiscando produtos médicos em alto mar. Some-se ao quadro novos conflitos armados e o uso do dólar como arma de guerra, para subordinar países que desalinhados aos interesses dominantes dos Estados Unidos.
Conforme Paolo Gerbaudo, em muitos países, as opções de política econômica estão se afastando de uma estratégia de integração global indiscriminada e vão se aproximando de um modelo de integração seletiva e controlada. Embora a abertura ao mercado global tenha sido vista durante os longos anos 1990 como uma fonte de prosperidade, agora também é percebida como fonte de perigos contra os quais é preciso recuperar as formas de controle e proteção exercidas pelo Estado. De problema, o Estado passa a ser a solução. O neoliberalismo está sendo questionado, enquanto o “neo-estatismo” (um novo consenso entre os partidos sobre a necessidade de um Estado mais intervencionista) está prestes a substituí-lo. O neoestatismo parece cada vez mais com o “novo normal”, dentro do qual esquerda e direita precisarão desenvolver novas posições. O retorno do Estado muda as regras para ambas. Agora todas as forças têm que responder à questão de que tipo de intervenção do Estado se deseja realizar. Na esquerda, se costuma reafirmar o controle do estado sobre a política industrial e serviços públicos. Na direita, o Estado deve garantir a propriedade (GERBAUDO, 2023).
A globalização perdeu o encanto e as ideias do Consenso de Washington estão em declínio. Os problemas definidores de nossa era não parecem ter “soluções de mercado” confiáveis. No entanto, eles fazem com que o Estado pareça vulnerável e sem controle. Isso gera ansiedade generalizada, a chamada agorafobia, que, por sua vez, desencadeia uma demanda por segurança e proteção, algo que só o Estado pode oferecer. Há espaço para propor sua ação em favor de direitos e proteção para as maiorias. Por hesitar em fazê-lo, a esquerda abre espaço para extrema-direita. A direita populista parece ter chegado a um acordo com esse novo estado de coisas pós-neoliberal. Desenvolveu uma estratégia que se concentra na proteção da identidade e da propriedade e formou uma coalizão que abrange desde a classe média alta e as pequenas empresas até os trabalhadores marginalizados. A esquerda, por outro lado, está em negação sobre a virada atual ou ainda indecisa sobre como responder a ela. Para avançar, a esquerda deve enfrentar um mundo em que a globalização neoliberal está em declínio e o intervencionismo estatal tende a se tornar cada vez mais importante. Em outras palavras, os progressistas precisam desenvolver suas próprias políticas de proteção (GERBAUDO, 2023).
Para Gerbaudo, enquanto a direita percebeu rapidamente a crise do consenso neoliberal e desenvolveu uma nova abordagem ideológica – abandonando sua crítica ao protecionismo e aos gastos públicos, ao tempo em que atacava furiosamente o liberalismo social – partidos e candidatos socialistas muitas vezes se viram na defensiva e até aliando-se aos neoliberais centristas, em defesa de uma ordem global em colapso. Muitos ainda veem o retorno das posturas protecionistas como uma tendência passageira ou meramente uma continuação do neoliberalismo por outros meios. E embora a esquerda possa criticar o mercado, certamente não está totalmente convencida sobre os possíveis benefícios do crescente intervencionismo estatal – uma suspeita justificada pela memória do totalitarismo e por evidências mais recentes da cumplicidade do Estado na produção da desigualdade social. Mas a estratégia progressiva nas condições atuais não pode evitar a questão de como o Estado pode ser usado para oferecer proteção econômica e segurança contra riscos e restabelecer formas de controle político. Dada a solidez do bloco empresarial, alterar a correlação de forças exigiria um projeto ambicioso de transformação social, e não apenas reivindicações pontuais. Requereria um nível de organização e mobilização popular muito maior do que o atualmente articulado por sindicatos e organizações progressistas (GERBAUDO, 2023).
Diego Fusaro aponta o abandono da ideia de soberania nacional pela esquerda, o que implica a conivência desta esquerda com as classes dominantes. O surgimento da nova direita, com um tipo de soberania regressiva, tem a ver com o abandono pela esquerda do campo da soberania nacional, entregando-o assim à direita. Para Fusaro, os Estados-nação são o último bastião da resistência contra a globalização capitalista, o terreno dialético de um possível conflito onde se confrontam as ideias daqueles que querem um Estado soberano nacional e socialista, e daqueles que, por outro lado, querem um Estado soberano liberal. Ou seja, um Estado soberano para os dominados ou um Estado soberano para os dominadores.
Fusaro diz que o conflito de classes hoje é o conflito entre uma classe cosmopolita líquido-financeira, por um lado, e as massas populares nacionais, por outro. A classe dominante é de direita na economia e de esquerda nos costumes e na cultura. De direita por assumir o imperativo liberal na economia: privatização, cortes de gastos públicos, falta de investimentos, supressão de direitos sociais. Isso é, aprofunda a dessoberanização da economia e reforça a luta de classe em favor das classes dominantes. Por outro lado, promotora da chamada “política de identidade”, resulta em políticas de pulverização de qualquer identidade, além daquela dos novos enclaves de “modos de vida”. Referem-se pontualmente a uma identidade gadgetizada, criada pela fragmentação de toda identidade histórica e social que não pode ser assimilada na sociedade do livre mercado. Por isso, políticas de identidades resultam em reinvindicações competitivas por parte de identidades parciais, inimigas das identidades históricas e culturais dos povos, das nações e das comunidades que não coincidem com as multidões anônimas de consumidores desenraizados. Fusaro aponta que a “astúcia da razão liberal” está exatamente em garantir que se concentre apenas em “direitos” que não interfiram e até promovam a reprodução do capital. Enquanto os senhores da globalização administravam pelo neoliberalismo a questão econômica e laboral, a título de compensação se promovia uma série de direitos inofensivos à ordem capitalista ou, de preferência, que operam para aprimorá-la. É o “reivindicacionismo” em que todo grupo pode ser identificado como uma vítima que sofre discriminação não econômica e pode ganhar espaços e direitos à custa de outros grupos, contribuindo ao desaparecimento de qualquer solidariedade de classe (FUSARO, 2020).
Fusaro acredita que a soberania é a chave. Aponta que é impossível ressocializar a economia se não for realizada uma recuperação preventiva da soberania nacional, isto é, enquanto permanecermos ao nível do cosmopolitismo sem fronteiras, a classe dominante capitalista continuará a vencer. Por isso, a esquerda deve recuperar a soberania nacional. É a condição sine qua non para repolitizar a economia e redemocratizar a realidade sociopolítica, com políticas típicas do Estado social, com leis nacionais que visam alcançar o pleno emprego e a defesa das classes mais fracas.
Gramsci dizia: “que os fatos econômicos tenham sua importância, ninguém o nega; mas é absurdo supor que sejam suficientes para explicar a história humana, excluindo-se todos os demais fatores” (GRAMSCI, 2001). Gramsci já apontava que o cosmopolitismo cultural leva à cisão com as classes subalternas e, por conseguinte, dificulta a constituição de uma força nacional popular. A falta de unidade da esquerda e o “povo-nação” é um problema central. Sem compreender a subjetividade das classes populares, em sua complexidade cultural, não se vive no mundo real. O predomínio de uma esquerda cosmopolita é um elemento para o caráter anti-popular de vários movimentos políticos, caracterizado pelo não reconhecimento dos problemas específicos da vida nacional, se tornando estranha aos interesses das maiorias. Se não se nacionalizar rumo ao encontro com o povo, a esquerda não tem futuro. Deve trabalhar pela coesão do “bloco nacional-popular”, e não o fragmentar (GRAMSCI, 2001).
Soberania é a ideia central da conjuntura. Diante da globalização neoliberal, que debilitou o poder dos Estados, a soberania reconquista parte de sua dimensão revolucionária.
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Referências
FUSARO, D. La sociedad abierta: Condena turbomundialista contra los pueblos. EAS, 2020a.
_________. La lucha de clases en el siglo XXI. Santiago: Ignacio Carrera Pinto Ediciones, 2020b.
GERBAUDO, P. O Grande Recuo: a política pós-populismo e pós-pandemia. Todavia, São Paulo, 2023.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Volume 3. Maquiavel. Notas sobre Estado e a Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
HOBSBAWN, E. Globalização, democracia e terrorismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
Fernando Marcelino