Para historiador, é imperioso enfrentar Elon Musk e o avanço da extrema-direita nas redes sociais
“Quando é que há o problema? É quando você se recusa a testar a sua hipótese ou quando confrontado com a negação óbvia da sua hipótese você sempre encontra um subterfúgio. É isso que a extrema-direita faz no mundo inteiro. É isso que o Elon Musk está tentando fazer com a democracia brasileira”, diz João Cezar de Castro Rocha.
A entrevista é de Katia Marko e Ayrton Centeno, em versão reduzida, concedida no podcast De Fato, do Brasil de Fato RS.
Historiador e professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro — UERJ, João Cezar de Castro Rocha tem um trabalho árduo que ele mesmo se impôs: frequentar as comunidades da ultradireita nas redes sociais e ler os livros de Olavo de Carvalho e Edir Macedo.
Docente de literatura comparada, passou a vida lendo os clássicos. “Passar de Machado para Olavo de Carvalho é realmente doloroso”, registra. Com dois doutorados, o segundo deles na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, tornou-se um pesquisador da extrema-direita nos últimos tempos.
“Quando comecei a escrever sobre o assunto eu desejava muito estar equivocado. Porque é muito assustador”, relata. “Publiquei no ano passado o meu mais recente livro descrevendo a midiosfera extremista. Algumas pessoas disseram: ‘Não, isso é um exagero!’ Estamos vivendo agora o que eu escrevi”, adverte. Ele também é um estudioso das igrejas neopentecostais, que o Brasil importou dos Estados Unidos nas últimas décadas do século 20, e que desenvolvem o que chama de “Teologia do Domínio”.
Eis a entrevista.
O que é a Teologia do Domínio? Até porque, até pouco tempo atrás, o termo que se usava relativamente às igrejas neopentecostais era Teologia da Prosperidade, em contraposição àquela Teologia da Liberdade pregada pela ala progressista da Igreja Católica. Sei que tem uma explicação muito interessante para isso, inclusive envolvendo uma troca de personagens referenciais. Seria menos Jesus Cristo e mais Davi. O que pode dizer?
A Teologia do Domínio foi desenvolvida inicialmente nos Estados Unidos e, como aconteceu com a maior parte das denominações neopentecostais, o que é desenvolvido lá chega ao Brasil. A Teologia do Domínio implica uma leitura literal da Bíblia, especialmente no primeiro capítulo do Gênesis.
No versículo 27 há referência à criação do homem e da mulher, segundo a imagem e semelhança de Deus. O versículo 28, esse é o decisivo, especifica o que seria destinado às criações divinas, ao homem e à mulher com o célebre: “Crescei e multiplicai-vos. Dominai os peixes do mar, os pássaros do céu e tudo que há na terra”.
Na Teologia do Domínio, esse versículo é tomado literalmente como base para um projeto político. Então, crescei e multiplicai-vos é ampliar a base neopentecostal na sociedade. Uma vez que esta base esteja suficientemente ampliada de modo a representar um peso político capaz de alterar os rumos da nação ou de influenciar decisivamente políticas públicas, então dominai.
A Teologia do Domínio parte deste versículo para o desenvolvimento de uma estratégia de duplo alcance. No primeiro momento, do que se trata é de crescer e multiplicar-se. Posteriormente, partir para o domínio. Me permita rapidissimamente recordar uma cronologia básica desta teologia no Brasil que deliberadamente ignoramos, ocorria diante dos nossos olhos e fingimos que não víamos…
Fique à vontade. Esta parte da explicação é essencial para as pessoas entenderem do que estamos tratando e o que isso representa, não só hoje, mas também futuramente para a sociedade brasileira.
O primeiro ponto importante é fazer uma ressalva. Eu estou falando especialmente de certas denominações neopentecostais que são relativamente recentes no panorama brasileiro, porque os evangélicos são muito plurais, são muito diversos. Não podem ser reduzidos a uma fração do neopentecostalismo.
Os batistas chegaram no Brasil no fim do século XIX, os presbiterianos têm uma longa e importante tradição teológica. Foi um reverendo presbiteriano, Jaime Wright, que junto com o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel tiveram a coragem de fazer uma missa ecumênica em homenagem ao (jornalista) Vladimir Herzog, em 1975, e que foi tão importante para a reconstrução da resistência da sociedade civil à ditadura.
O mesmo Jaime Wright foi uma das colunas do mais importante projeto da redemocratização brasileira, o de recuperar a memória da tortura feita pela ditadura militar, o Brasil Nunca Mais. De um lado a Igreja Católica, de outro a Igreja Presbiteriana. Isso é muito plural e temos que ter cuidado para não estigmatizar os evangélicos.
A própria Igreja Luterana tem uma visão progressista da realidade brasileira.
Exatamente. Tem um enraizamento muito grande na sociedade brasileira. Vamos tentar compreender o que está diante de nós hoje. Em 1967, o Nelson Rockefeller, que à época era do governo do Richard Nixon, recebe a incumbência de viajar à América Latina para fazer um relatório político, econômico e cultural da região.
Os Estados Unidos estavam absolutamente determinados a não permitir que uma nova Cuba surgisse na América Latina, a tal ponto que as universidades americanas criaram duas disciplinas, o chamado Latin Americanism e o Brazilianism, o estudo da América Hispânica e o estudo do Brasil. Muito dinheiro foi investido em pesquisa para que se conhecesse a situação.
Rockefeller produz, em 1969, um relatório. Diz lá que, na América Latina, a Igreja Católica está sempre ao lado dos mais desfavorecidos e para defendê-los aceita mesmo situações revolucionárias. Ao que se referia? À Teologia da Libertação. E qual foi uma das suas recomendações para o Departamento de Estado norte-americano? Favorecer o ingresso e a difusão no Brasil do tipo de igreja que havia nos Estados Unidos, o tele-evangelismo.
Lembrem-se dos (reverendos) Billy Graham e Jimmy Swaggart enchendo estádios no Brasil nas décadas de 1970/80. E quando surge a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, com todas as facilidades dadas pela ditadura para sua instalação? Em 1977. Portanto, não me refiro às igrejas evangélicas de longa tradição no Brasil, e sim às neopentecostais.
Em 1988, a Constituição é proclamada, e o artigo 5º assegura a liberdade de culto de expressão religiosa como parte da dignidade da pessoa humana, o que caracteriza o caráter laico do Estado. Algum líder evangélico protestou? Não. Sabem por quê? Porque eram minoria. A primeira igreja a ter um projeto político determinado, isso segundo declarações do senador Arolde de Oliveira, ligado ao bispo Edir Macedo, foi a Igreja Universal do Reino de Deus.
Em 2002, pela primeira vez, um candidato à presidência conseguiu um resultado inesperado graças ao voto evangélico. Vocês recordam do desempenho do (ex-governador carioca) Anthony Garotinho? Uma grande surpresa: ficou em terceiro lugar com 10% dos votos. Em 2018, pela primeira vez, o voto evangélico, nessa acepção mais ampla, venceu uma eleição.
Seis anos depois, Edir Macedo lançou um livro. E não podemos criticar o bispo por ser excessivamente sutil. O nome do livro é Projeto de Poder. Na última página, ele diz assim: “Somos hoje 40 milhões de evangélicos. Seria uma lástima desperdiçar esse potencial.” Que potencial? A eleição de 2018 mostrou.
Um demógrafo, José Eustáquio Diniz, fez um estudo do voto em 2018 de acordo com a religião ou a ausência de religião. Descobriu que, entre os católicos, Bolsonaro venceu com aproximadamente 500 mil votos a mais. Entre os ateus agnósticos e praticantes de religiões de matriz africana, Haddad venceu com um milhão de votos à frente. Entre os evangélicos, Bolsonaro obteve 23 milhões de votos, e o Haddad, 10 milhões. É a diferença do segundo turno. Em 2018, pela primeira vez, o voto evangélico, nessa acepção mais ampla, venceu uma eleição…
Define a eleição.
Definiu. Corte para 25-02-2024: Michele Bolsonaro sobe no trio elétrico de uma manifestação política que mais parecia um culto evangélico e diz: “Disseram por muito tempo que a religião e política deveriam estar separadas. Em consequência, o mal triunfou. Chegou a hora da libertação!”
Libertação, neste caso, quer dizer que a política se subordina à religião. Mas não é a espiritualidade. É a religião deles, somente a deles. A versão que querem é a negação completa da política, e a fala da Michele é inconstitucional, em flagrante desacordo com o artigo 5º da Constituição. Mas é isto o que devemos enfrentar a partir de agora.
Tem mais deputados defendendo isso também no Congresso…
Houve uma época em que a Frente Parlamentar Evangélica não passava de 50 deputados e hoje são quase 140. Em uma longa entrevista com o senador Arolde de Oliveira, a jornalista Andrea Dip conseguiu uma proeza.
Na entrevista, ele revela todo o projeto político por trás da Igreja Universal do Reino de Deus. Não estamos criticando a opção religiosa de cada pessoa. Mas você não pode ser um deputado federal e querer implementar políticas públicas que digam respeito a um credo religioso específico. Isso é antirrepublicano.
Mas não é só no Congresso Nacional ou nas grandes estruturas. Por exemplo, tivemos uma eleição para o Conselho Tutelar, em que a maioria dos conselheiros são evangélicos. Aqui no Rio Grande do Sul, há secretarias municipais de educação em que o secretário e os diretores são evangélicos e aprovam “Semanas do Evangelho” nas escolas. Parece que estudaram muito bem a disputa de hegemonia e estão ocupando todos os espaços de diálogo com a sociedade.
Dentro da Teologia do Domínio há uma ideia de que há sete áreas que precisam ser dominadas para que o arrebatamento seja possível. O que é o arrebatamento? É a segunda vinda de Jesus, o fim dos tempos. No Carnaval em Salvador, a Baby Consuelo disse para a Ivete Sangalo: “O arrebatamento está chegando, será em cinco anos”. Se, para nós, isso soa caricato, quase absurdo, para os ouvidos de dezenas de milhões é absolutamente cotidiano, isto é, o arrebatamento chegará. E por que é importante colocar todas as áreas? Educação, política, entretenimento, lazer, cultura…
Comunicação.
Comunicação. Por que é importante? É importante porque, na Teologia do Domínio, a ideia é de que é preciso ter, mais do que hegemonia, preponderância real em sete áreas. Uma vez que isso ocorra, então as condições para o arrebatamento se tornam mais favoráveis.
Eu respeito profundamente a opção religiosa das pessoas. O que não é aceitável é que você queira impor a sua opção religiosa no espaço público através de políticas estatais. É anticonstitucional. Mas eles não vão parar. É necessário que tenhamos consciência do que está acontecendo. É importante criar condições de diálogo com eles e deixar claro que, um, total respeito pela opção religiosa, dois, total respeito pela opção republicana.
Quero fazer um comentário e te pedir para retornar àquela primeira pergunta. O comentário é o seguinte: quando Michelle Bolsonaro diz que do outro lado está o “mal”, esse tipo de declaração inviabiliza a política, inviabiliza a possibilidade de diálogo. Se do outro lado está o “mal”, é impossível negociar com o “mal”. Isto leva a uma guerra de extermínio da opinião contrária.
Essa é uma observação que eu queria fazer.
O outro pedido é o seguinte. Queria que explicasses essa história da presença do rei Davi, cada vez maior dentro da Igreja Universal do Reino de Deus, em detrimento da figura de Jesus.
Essa questão é fundamental. A categoria do mal é incontornável para a filosofia, a teologia e a literatura. Se existe o bem supremo, o criador, como compreender a hipótese do mal absoluto? Do ponto de vista da teologia e da filosofia, essa questão rendeu livros fundamentais sobre a própria condição humana. Muitas vezes, nós, diante de duas opções muito claras, fazer o bem e fazer o mal, ou seja, agir de maneira mesquinha e invejosa, nós não nos controlamos. Não nos controlamos e adotamos a opção mesquinha, que não nos enobrece. Sabemos disso.
Portanto, a questão do mal é indispensável para se pensar a contradição da condição humana. O que seria de um Dostoiévski se ele não pudesse abordar a questão do mal? Em Crime e castigo, Irmãos Karamazov, Os demônios, entre tantos livros. O que seria de um Albert Camus e seu livro O estrangeiro se ele não pudesse abordar essa questão do mal? Alguém que assassina uma pessoa absolutamente sem nenhuma motivação, apenas por que o sol está muito escaldante?
Agora, na política, a questão do mal não pode ser colocada. Porque a política é a arte da negociação e da concessão. Precisamos parar de demonizar a política. Só se pode fazer um acordo quando se reconhece que o outro tem reivindicações legítimas e que é necessário que ambas as partes façam concessões. Essa é a finalidade da política, que é uma mediação pela palavra que evita a violência. Tudo pode ser dito, como escreveu um romancista brasileiro, Paulo Lins, no romance Cidade de Deus. Ele tem uma epígrafe, que é um poema dele, onde diz assim: “Falha a fala / Fala a bala.” Toda vez que a linguagem perde força, a violência se impõe. Então, a política é a arte da negociação.
Quando a Igreja Universal surge, em 1977, sua imagem é associada ao Cristo, o Ungido, o Verbo Encarnado. Quando o projeto político da IURD se torna cada vez mais elaborado, o Novo Testamento é substituído pelo texto pelo Velho Testamento. Veja, eu me dei ao trabalho de ler com muito cuidado Projeto de poder, do Edir Macedo. Acho que uma parte do debate público brasileiro deve muito a mim, porque eu leio todos esses textos para revelar para vocês (risos)…
Muito obrigada, João. E além disso, também acompanhas os bolsonaristas, né?
Projeto de poder. Quais são as bases teóricas do livro? Olha como eu sou generoso, hein? (mais risos). Thomas Hobbes… Vejam, Hobbes, “O homem é o lobo do homem”. E o Antigo Testamento. E qual é o argumento do livro? Deus é um político, um estadista, um gestor da coisa universal. Mas não é um fenômeno brasileiro. É mundial. O Novo Testamento tem sido progressivamente substituído pelo Antigo.
A substituição poderia ser feita de tal forma que a imagem de Jesus fosse paulatinamente substituída, por exemplo, pela de Moisés, que conduz por décadas o povo judeu para chegar à Terra Prometida. Que recebe as tábuas das leis no Monte Sinai. Um sábio, um enorme autocrítico que não entra na Terra Prometida.
Poderia ser Jó, aquele que é colocado à prova de maneira intolerável que nenhum de nós suportaria. Poderia ser José, entregue pelos irmãos para ser escravo no Egito. Poderia ser Salomão que, apesar de ser rei e poderoso, era sobretudo um homem que buscava a justiça. Não. Qual é a figura que privilegiam? É a de Davi. Mas não é o jovem Davi que derrota a força bruta de Golias. É o Davi rei, cujo símbolo, a Estrela de Davi – dois triângulos, um invertido, ambos superpostos, que hoje está na bandeira de Israel e que se tornou o símbolo do bolsonarismo no Brasil – que seus soldados usavam nos escudos.
O exército de Davi não tinha nenhuma misericórdia. Passava na espada os adversários. O Davi que interessa à Teologia do Domínio é o Davi, senhor das armas. É o Davi do império. O Davi que um dia vê uma mulher, Betsabá, num banho de purificação, e manda seus guardas levarem a mulher à força para o seu palácio e a violentou. Ela engravida. Problema sério. Problema ainda maior. Ela era esposa de um oficial da tropa de elite de Davi, Urias. O que fazer?
Como sempre, Israel estava em guerra. Então, ele dá uma carta para Urias, para que a leve para o comandante de uma batalha. O que diz a carta? Diz para colocar Urias na posição de frente no lado mais perigoso da batalha. Para quê? Para que ele morresse. Sem saber, Urias levou a sua sentença de morte. Morre no campo de batalha. Agora Betsabá pode ser oficialmente concubina de Davi. Mas o filho, que é o fruto da traição, Deus não permite que sobreviva, morre. Davi torna-se um pecador arrependido. Mas veja: Davi cobiçou a mulher do outro, levou à morte duas pessoas. É este o Davi que interessa para a Teologia do Domínio. Mas como? Não seria outra figura?
De novo, voltamos ao 25 de fevereiro. Aquele apresentador, uma figura muito curiosa, que parecia um locutor de rodeio e pregador da escola do Silas Malafaia, antes de chamar Jair Bolsonaro, citou alguns personagens, algumas figuras do Antigo Testamento e disse: “Porque Deus permitiu que Golias fosse enfrentado por Davi. E agora eu chamo o mito Jair Messias Bolsonaro”. Ou seja, a figura citada imediatamente antes da entrada de Bolsonaro foi Davi, porque é o pecador ungido. Donald Trump, Javier Milei, Nayib Bukele, Jair Bolsonaro, são todos eles, nessa concepção muito desvirtuada da religião, os Davis contemporâneos.
A Teologia do Domínio explicaria essa aproximação dos neopentecostais de Israel?
Explica sim. Agora posso voltar à estrela de Davi. São dois triângulos. Um está invertido e superposto ao primeiro. Um vértice aponta para o céu, o outro para a terra. No exército de Davi, o símbolo que estava por trás disso era a ideia da junção do transcendente com o imanente, a presença de Deus na história. Isto é, favorecendo o exército de Davi, porque é o povo escolhido.
Para o sionismo cristão ou para a Teologia do Domínio, há outra forma de interpretar a estrela de Davi. Há uma contradição básica quando falamos em “sionismo cristão”. É que, para a religião judaica, Jesus não foi o Cristo. Ele não era o ungido. Não era o Filho de Deus. É uma blasfêmia para a religião judaica. Tanto que, neste ano, eles estão no ano 5.784, enquanto o nosso ano é 2024. Para os judeus, o calendário é outro. Para eles, o Jesus que veio era apenas mais um dos profetas que andavam pela Judeia e a Galileia afirmando ser o Messias.
Então, como é possível esse vídeo da manifestação do 25 de fevereiro, em que três senhoras afirmavam convictas: “Apoio Israel porque Israel é cristão”. Israel não é cristão. Isso não é uma crítica a Israel. Essa é religião judaica. Para os judeus, o Messias não chegou. Nunca veio. Por isso, o tempo continua correndo e o futuro está em aberto. Não tem apocalipse na religião judaica comparável ao do Novo Testamento. E pode ter o apocalipse porque o Messias já veio. Se ele já veio, ele retorna. Quando ele retorna, é o fim dos tempos. Não há isso na religião judaica e não é uma crítica. Eles têm todo o direito.
Pensem de novo na Estrela de Davi. A interpretação é a seguinte: Deus tem duas alianças. Uma é histórica, específica, com Israel e o povo judeu. Deus tem outra aliança, transcendente, espiritual, universal, com a Igreja. Então, eles conseguiram a proeza de não estabelecer a contradição que está dada. Se você é judeu, você não é cristão.
Aliás, o cristianismo tornou-se universal, precisamente, graças ao apóstolo Paulo ao estabelecer que bastava o batismo e a fé e não a circuncisão. Abrindo o caminho para que esta religião, criada por um judeu, Cristo, não fosse limitada ao povo judeu, mas potencialmente universal. Por isso, a Igreja de Pedro é católica. Porque, em latim, catolicus é universal. Então, são duas concepções diferentes. O que a Teologia do Domínio faz é dizer que o Israel histórico tem uma aliança com Deus. Aliança que foi complementada e, sobretudo, ampliada pela aliança com a Igreja, já que é universal. Mas tudo pode ficar ainda mais complexo…
Por isso, a Baby Consuelo disse que o arrebatamento estava chegando. Para eles, o que acontece no Oriente Médio é a bomba-relógio do apocalipse.
Não me diz isso, João. Por favor…
É que, para a Teologia do Domínio, a criação histórica do Estado de Israel, em 1948, equivale a uma autêntica bomba-relógio do arrebatamento, do apocalipse, do retorno de Jesus. Por isso, a guerra de Israel com a Faixa de Gaza, com os palestinos, provocou esse terremoto nas redes sociais brasileiras e nos evangélicos ligados a esta interpretação. Por isso, a Baby Consuelo disse que o arrebatamento estava chegando. É porque, para eles, o Estado de Israel, o que acontece no Oriente Médio, ali, é a bomba-relógio do apocalipse. Eles conseguiram unir o impossível e dizer que apoiam Israel porque são cristãos. É muito impressionante.
Estamos falando de religião, bolsonarismo, cristianismo, judaísmo. Tempos atrás, fizeste uma observação muito interessante, sobre como funciona a cabeça de um bolsonarista. Ele acredita em coisas que a gente não consegue imaginar que uma pessoa possa acreditar. Então, procurando descrever como funciona a cabeça de um bolsonarista, tu recorres a Sigmund Freud. Citas um livro dele, O futuro de uma ilusão, onde Freud nota a diferença entre erro e ilusão. Descreve para nós essa mistura de erro e ilusão, e como a ilusão, quando compartilhada por muita gente, via redes, por exemplo, se transforma em realidade política, que é que vivemos no Brasil e em outros lugares.
Freud não era nada religioso. Era muito comum isso na Áustria, na Alemanha, a clássica figura do judeu perfeitamente assimilada à cultura austríaca ou alemã. Em O futuro de uma ilusão, Freud está intrigado com uma questão. Que futuro pode ter uma sociedade cada vez mais desenvolvida com base na tecnologia e na ciência? Essa é a questão. Ele avança muito ao propor a distinção entre erro e ilusão. Erro é algo que faz parte do mundo objetivo.
O que importa para o psiquismo humano não é o erro. É a ilusão. A ilusão é um erro, mas um erro no qual projeto o meu desejo. E ninguém de nós controla o próprio desejo. Ninguém pode dizer para alguém: “Não, desculpe, mas o seu amor por este homem ou o seu amor por esta mulher é um equívoco”. Porque o desejo é da ordem do inconsciente. Não controlamos o próprio desejo.
Diz Freud que ilusão é quando se projeta um desejo numa base equivocada. O exemplo que ele dá é notável. Diz assim: “Quando Cristóvão Colombo chegou à América e disse que ele havia chegado às Índias, não era um simples erro. Ele estava projetando uma ilusão”. Qual era a base da ilusão do Colombo? Ele tinha na cabeça a geografia ptolomaica, segundo a qual o mundo tinha uma forma mais próxima de uma elipse do que de um círculo, o que, então, facilitaria a navegação. E ele trazia na cabeça a historiografia de Plínio, o Velho, que dizia que nas antípodas da Terra havia um povo com cara de cachorro e que era canibal.
Então, a razão pela qual Freud considera que Colombo incorreu em ilusão e não em erro é que a sua mentalidade era informada por determinadas ideias. O que proponho e não está no texto de Freud é que, se pensarmos no caráter coletivo da ilusão, o mundo contemporâneo se abre diante de nós com uma claridade nova. Imagine que 58 milhões de pessoas abraçam uma ilusão. Do ponto de vista político objetivo, deixa de ser ilusão. Em 2018, Bolsonaro obteve 57 milhões de votos. Não foi o elemento decisivo, mas vocês concordariam que a noção do kit gay foi um dos elementos mais importantes para a eleição de Bolsonaro?
Com certeza.
Então, vamos lá. O kit gay existe objetivamente? Não. Nunca houve no Ministério da Educação a criação de um kit gay tal como o Bolsonaro denunciou. Agora, uma vez que 57 milhões de pessoas acreditam que existe um kit gay e votam para que ele não seja implementado, politicamente ele existe?
Sim.
Olha, tem mais existência do que nós juntos. A questão é compreender como a ilusão que faz parte da condição humana se torna coletiva e pode empolgar milhões de pessoas. Tenho uma hipótese que propus no meu mais recente livro. É a seguinte: as redes sociais e o universo digital permitiram o surgimento, pela primeira vez na história da humanidade, de algo que eu denomino “midiosfera extremista”. É fácil entender porque estamos imersos nela. A tal ponto imersos que não nos damos conta de como funciona. São cinco elementos. Quatro internos e um externo.
Os elementos internos da midiosfera extremista são um ecossistema de desinformação deliberada. Que é o Elon Musk dizer que o ministro Alexandre de Moraes pediu a quebra de sigilo e depois descobriu-se, na verdade, que foi o Gaeco de São Paulo (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) que pediu a quebra de sigilo de pessoas ligadas ao PCC. São as correntes multitudinárias de WhatsApp. Todos nos lembramos de 2018. Uma rede de canais de YouTube altamente integrada.
O YouTube é hoje o verdadeiro centro de radicalização política do ecossistema digital. Terceiro elemento: as redes sociais. A extrema-direita tinha domínio quase exclusivo das redes sociais. Hoje, começamos a enfrentá-la, mas ela ainda está muito à nossa frente. Quatro, os aplicativos. Como, por exemplo, o aplicativo “Mano” que tinha como garoto propaganda Flávio Bolsonaro. Em momentos de depressão e de insônia, entre no Facebook e procure a TV Bolsonaro. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana de informações novas do clã.
E o Brasil Paralelo, não é?
Sim, que está no YouTube. Há um quinto elemento e esse é assustador. Nos Estados Unidos, o quinto elemento atende pelo nome de Fox News. No Brasil, é preciso dizer os nomes. A situação é grave. Não temos tempo para ter medo, como já dizia Carlos Marighella. No Brasil, a rádio Jovem Pan. É o quinto elemento. É o elemento que dá uma espécie de credibilidade externa àqueles quatro elementos. Quando uma teoria conspiratória ganha voz. Legitimidade das urnas, código fonte que ninguém conhece. Essas mentiras fazem de imediato cortes que circulam vertiginosamente nas redes sociais, nos aplicativos e, sobretudo, nas correntes do WhatsApp.
Vou dar um exemplo para que vocês entendam o que estou falando. O momento de maior gravidade para a democracia brasileira não foi o 8 de janeiro de 2023. Foi o 7 de setembro de 2021. O momento em que a articulação golpista chegou ao auge, em que bastava uma palavra de Bolsonaro e teríamos um golpe de Estado. Um outro golpe, no caso. Que, aliás, não é incomum na história brasileira: Getúlio Vargas deu, Jânio Quadros quis dar, a ditadura deu duas vezes. Eu participo, heroica e estoicamente, de grupos bolsonaristas do WhatsApp e do Telegram.
Você está com a sua terapia em dia, não é?
Olha, no meu caso nem mais terapia dá jeito. Entre os dias 6 e 9 de setembro de 2021, precisei reiniciar o telefone três vezes. A média de mensagens diárias era de duas a três mil. Fiquei muito preocupado. O pacto (dos bolsonaristas) é só se informar no interior da midiosfera extremista. Recusar qualquer informação que venha, por exemplo, de vocês. Ou da “Globo Lixo” ou da “Foice de São Paulo” ou da extrema imprensa.
Então, imagina que durante seis anos você unicamente se informa nesta máquina deliberada e sofisticada de desinformação. E você recusa decididamente qualquer informação que contradiga o que ocorre no interior desta midiosfera extremista. O resultado? Numa cidade de IDH dos mais altos do Brasil, de índice de escolaridade dos mais altos do país, a cidade onde vocês estão, Porto Alegre, um conjunto de pessoas pediu socorro para os alienígenas. E o pior, vocês se recordam que os seus compatriotas porto-alegrenses tinham o celular na horizontal voltado para o céu? Sabem por quê?
Fiquei curiosa com isso. A gente precisa aprender essas novas técnicas. É fundamental…
Sabem por que os celulares estavam na horizontal? Colocaram o SOS, que era o “SOS alienígenas”. Se o celular estivesse na vertical, quem está no alto não lê. Tinha que estar na horizontal para que o SOS fosse legível pelos alienígenas. Confesso que acho esse detalhe tão saboroso que até lamento que eles tenham perdido. Mas percebem? Então, o erro… O que a extrema-direita faz? Transforma o erro em ilusão. E, através da midiosfera extremista, a ilusão é tornada coletiva. Vira realidade política objetiva. Ou seja, é transformar espuma em tsunami.
Assustador, João.
Assustador. Não me diga…
Também há um ataque constante à verdade factual. Digamos assim, à noção de perícia, de conhecimento sobre qualquer coisa. O ataque às universidades, à cultura, à ciência. Ao mesmo tempo que existe esse culto de verdades alternativas, existe o ataque às verdades consolidadas, tipo a Terra Redonda.
Isso. Esse ponto é tão importante. Porque, na verdade, sou professor titular de Literatura Comparada, historiador de formação, e passei a minha vida lendo os clássicos do pensamento social brasileiro, também Machado de Assis e William Shakespeare. Passar de Machado para Olavo de Carvalho é realmente doloroso.
Você leu toda a bibliografia do Olavo de Carvalho também?
Não. Toda é impossível porque o Olavo de Carvalho é o milagre da produção espontânea de livros. Agora, seus discípulos querem transformar em livro as milhares de aulas do curso online de filosofia. Quer dizer que a obra dele é a única infinita da face da Terra. Não vai acabar nunca.
Mas li os principais livros dele com muita atenção. Quando comecei a escrever sobre o assunto eu desejava muito estar equivocado. Porque é muito assustador. Publiquei no ano passado o meu último livro descrevendo a midiosfera extremista. Algumas pessoas disseram: “Não, isso é um exagero!” Estamos vivendo agora o que eu escrevi. Infelizmente parece que a hipótese se sustenta.
Qual é a base para que essa manipulação “Erro + ilusão + midiosfera extremista + ilusão coletiva + realidade política”. É a seguinte: é preciso manter o tempo todo a sociedade em assédio colonizando o nosso imaginário de forma a produzir caos cognitivo. Então, a extrema-direita surge pela primeira vez no panorama mundial com o negacionismo climático que já é, por si só, uma modalidade do negacionismo científico que explodiu durante a pandemia e, de outro lado, com revisionismo histórico.
O mais perverso de tudo é que a extrema-direita faz isto a partir de uma mímica do método científico. Para que compreendamos de maneira clara: há uma verdade consagrada, um cânone estabelecido e o que um cientista faz é questionar uma verdade consagrada através de perguntas que formulam uma hipótese. Então, acreditava-se que a Terra era o centro do universo na cosmovisão ptolomaica. Foram necessárias as observações de Galileu.
Posteriormente Johannes Kepler foi capaz de propor uma lei do movimento dos planetas. Ou seja, foi necessário questionar o conhecimento consagrado através de perguntas que formulavam hipóteses. Depois, tem a verificação e se comprova se a hipótese se sustenta ou se é equivocada. Toda a estratégia da extrema-direita consiste em tomar os passos iniciais do método científico, mas não aceitar a verificação.
Então o que diz a extrema-direita? Diz que podemos questionar tudo. É verdade. É absolutamente correto. Temos o direito de fazer perguntas incômodas. Sem perguntas incômodas não pensamos e a ciência não avança. Só que parar na pergunta e limitar seu questionamento é o objetivo da extrema-direita. É sua técnica de produzir caos cognitivo.
O que faz é pegar o que fazemos na ciência de uma forma geral e suprimir a última parte, a da verificação. A terra é plana. É legítimo que alguém faça a pergunta? É. É legítimo que a pessoa formule perguntas e que tente formular uma hipótese para chegar a um outro conhecimento? Quando é que há o problema? É quando você se recusa a testar a sua hipótese ou quando confrontado com a negação óbvia da sua hipótese você sempre encontra um subterfúgio.
É isso que a extrema-direita faz no mundo inteiro. É isso que o Elon Musk está tentando fazer com a democracia brasileira. É algo muito grave. Há uma forma de reagir. É o seguinte: Elon Musk sugeriu que o ministro Moraes libertou o Lula para que o Lula fosse presidente e por isso tem o presidente “na coleira”.
Porém, na votação da prisão em segunda instância, Moraes votou favoravelmente à prisão após a segunda instância. Portanto, se dependesse do Moraes, o Lula não seria presidente hoje. Elon Musk precisa ser processado por calúnia e difamação e tem que ser processado onde? No local no qual proferiu a calúnia.
Hoje, o Elon Musk está sendo processado por um jovem de 22 anos chamado Ben Brody porque ele (Brody) foi acusado falsamente de ser um infiltrado do governo num grupo neonazista. A vida dele (Brody) virou um inferno. Por que Musk fez isso? Para favorecer Donald Trump. Então, Brody levou Musk para um tribunal no Texas com provas de que sua família precisou mudar de domicílio e de que ele quase teve a vida arruinada. O que ele fez com Moraes e com a democracia brasileira é muito pior do que o que ele fez com o Ben Brody.
Vamos tomar a lição do Ben Brody e fazer o mesmo. A justiça brasileira precisa processar o Elon Musk lá. E ele tem que apresentar em juízo as provas do que diz. Se ele não puder fazê-lo, eu quero uma multa de R$ 20 bilhões. Quero o fechamento do X. Quero a prisão do Elon Musk. Se não começarmos a enfrentá-los agora – será um desfecho sombrio para a nossa conversa, mas necessário -, se não começarmos a enfrentá-los com as armas democráticas do Estado Democrático de Direito, em 10 anos vamos adaptar o título do importantíssimo romance de Inácio de Loyola Brandão na década de 1970. Uma distopia que tem que ser relida. “Não verás país nenhum”, disse Loyola Brandão. Pois eu direi: se não reagirmos em 10, 15 anos não veremos democracia nenhuma no mundo.
Confira a íntegra da entrevista
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João Cezar de Castro Rocha (Foto: acervo pessoal)