A visita se dá às vésperas do caso completar quatro anos de impunidade; apesar do indiciamento de agentes da Policia Militar e do então secretário de segurança pública, não houve punições
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) voltou ao estado do Amazonas, nos dias 13 a 22 de abril, para verificar in loco o que faltou ser cumprido das recomendações feitas pelo órgão em sua primeira visita à região dos rios Abacaxis e Mari Mari, no município de Nova Olinda do Norte (AM). A primeira visita foi realizada em 2020, quando ocorreu o conflito que ficou conhecido como Massacre do Abacaxis.
A comitiva que acompanhou o CNDH foi composta por sua presidenta, Marina Dermmam; pelo conselheiro do órgão que representa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Junior Pankararu; os relatores Marcelo Chalréo e Daniel Maranhão Ribeiro; José Roberto Tambasco, da Defensoria Pública Federal (DPF), bem como representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Polícia Federal (PF), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e representações da sociedade civil.
A primeira visita foi realizada em 2022, quando ocorreu o conflito que ficou conhecido como Massacre do Abacaxis
A comitiva percorreu as comunidades dos rios Mari Mari e Abacaxi. Dentre elas, as aldeias Laguinho e Terra Preta, as comunidades Monte Horebe, Curva do Vento, Camarão, Santo Antônio do Lira, entre outras. Essas comunidades foram alvo das atrocidades deflagradas pelos autores do massacre.
O grupo também se reuniu com representantes das Defensorias Públicas do Estado e Federal e do MPF, bem como com o vice-governador do Amazonas, Tadeu de Souza, e com a secretária de Justiça e Direitos Humanos, Jussara Pedrosa.
A comitiva percorreu as comunidades dos rios Mari Mari e Abacaxi
Os encontros e reuniões buscaram abranger todos os atores que, de uma forma ou de outra, possuem responsabilidades frente à grave situação de violência e violação de direitos humanos. O objetivo da visita era conhecer “avanços das ações de responsabilização criminal, mas também os avanços da responsabilização na esfera civil para essas comunidades”, informou Dermmam.
Segundo a presidenta do CNDH, as informações obtidas junto ao Poder Executivo foram a de que houve a “responsabilização desses agentes de segurança pública na esfera administrativa, mas também os avanços nas promoções de políticas e direitos humanos nesses territórios atingidos”, afirmou a presidenta.
Os encontros e reuniões buscaram abranger todos os atores que possuem responsabilidades frente à grave situação de violência e violação de direitos humanos
Na visita às comunidades, a comitiva ouviu lideranças indígenas e ribeirinhas que relataram ameaças e “compartilharam a dor e angústia predominante na região por falta de respostas [aos crimes] e impunidade, além de uma série de situações que envolvem a falta de políticas públicas nas áreas de saúde, educação, regularização territorial, segurança, trabalho e economias comunitárias”, contou Dermman.
Em Nota , o CNDH compartilhou as impressões que antecedem o relatório final da visita que, em breve, será elaborado e disponibilizado à sociedade com as recomendações do Conselho e demais órgãos públicos que participaram da visita.
Na visita às comunidades, a comitiva ouviu lideranças indígenas e ribeirinhas que relataram ameaças
Para a presidenta, o crime de extrema violência praticado pelos agentes públicos é resultado do abandono do Estado e da suscetibilidade a atos criminosos que as comunidades estão expostas.
“A ausência do Estado enquanto executor das devidas políticas públicas expõe um abandono da região, aumentando sua suscetibilidade às investidas criminosas contra os povos indígenas e comunidades tradicionais ribeirinhas” constata Dermmam, e elenca as ameaças à vida na região: “garimpos, pesca, caça e exploração de madeira ilegais e o tráfico de drogas, que além de esbulharem a terra, as águas e as florestas e delas sugarem todas as suas riquezas, ameaçam quem defende os territórios e os povos que nela vivem e sobrevivem”, avalia.
“A ausência do Estado enquanto executor das devidas políticas públicas expõe um abandono da região”
Junior Pankararu também observou a situação com preocupação e a classificou como grave. “Morreram indígenas Munduruku. Existem problemas nas políticas de saúde, educação e organização territorial. Os territórios estão totalmente desprotegidos. Apesar da terra dos Munduruku estar demarcada, está sem proteção nenhuma. A representação da Funai saiu do território e está na cidade, o que dificulta a gestão do poder público dentro dessas comunidades, inclusive para se deslocarem para receber atendimento”, explicou Pankararu que também constatou caça, pesca e garimpo ilegais.
Da mesma forma, o defensor público da União, José Roberto Tabasco, viu a situação com olhar de preocupação. Para além da ausência do Estado provendo e protegendo as comunidades em políticas públicas, Tabasco é firme ao falar dos assassinatos e da necessidade de reparação.
“Morreram indígenas Munduruku. Existem problemas nas políticas de saúde, educação e organização territorial”
“[O Estado] precisa reparar as famílias que tiveram seus entes assassinados para além das reparações cíveis pelos danos causados. E [deve] não só abranger os homicídios, mas tortura, violações de domicílio e todas as formas que atingiram a dignidade do ser humano [daquelas comunidades]”, afirmou.
O conselheiro indígena também informou que “irá produzir seu relatório com as devidas recomendações, e também junto aos órgãos que têm indígenas, como o próprio Ministério dos Povos Indígenas, a SESAI e a Funai”.
“[O Estado] precisa reparar as famílias que tiveram seus entes assassinados para além das reparações cíveis pelos danos causados”
Com especial atenção às ameaças de morte sofridas pelos povos indígenas e ribeirinhos da região, o CNDH “solicitará providências imediatas para proteção às pessoas que estão sofrendo ameaças, reforços à necessidade, não só da responsabilização desses crimes, mas irá chamar o poder público para que adote medidas efetivas para a promoção dos direitos humanos desses povos ameaçados e violados dos seus direitos, que garanta seus direitos sociais fundamentais e a execução de políticas públicas”, concluiu Dermmam.
Na contramão de suas próprias leis
“O desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade e o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem”, é uma das considerações que apresentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), promulgada há 76 anos, pelos países que compunham a Organização das Nações Unidas (ONU), na Assembleia de 1948. O Brasil participou do evento e foi um dos 48 países a ratificar as deliberações e votar a favor do documento. Atualmente, 193 países compõem a ONU. Todos signatários da Declaração.
No entanto, ao conhecer as ocorrências de atrocidades e barbáries cometidas no Massacre do Abacaxis, assim como tantas violências e violações de direitos humanos que acontecem em solo brasileiro contra povos indígenas e populações tradicionais, se evidencia um descumprimento do Brasil de suas próprias leis, determinações e princípios. O descumprimento é tão grave quanto a brutalidade desferida nos crimes cometidos contra as comunidades ribeirinhas e indígenas das margens dos rios Abacaxis e Mari Mari.
“O desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade”
No ano da 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), maior evento da resistência indígena, a visita do CNDH e sua comitiva à região das ocorrências do Massacre do Abacaxis é mais um passo na luta pela impunidade das violências desferidas contra os povos indígenas e vem ao encontro do que declara o ATL 2024, em relação a lei 14.701:
“A decisão deliberada dos poderes do Estado de suspender a demarcação das terras indígenas e de aplicar a lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma declaração de guerra contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro”, argumentou movimento indígena em carta publicada ao final do Acampamento.
Para não esquecer e não se repetir
A Polícia Militar foi o autor de um dos mais hediondos crimes nos últimos anos, na Amazônia. O Massacre do Abacaxis resultou em oito mortos, três desaparecidos e centenas de ribeirinhos e indígenas torturados. Segundo carta emitida em 2022 por aproximadamente 40 instituições da sociedade civil, houve uma “invasão de pescadores esportivos [na área], dentre eles, o ex-secretário executivo do fundo de promoção social do estado do Amazonas, Saulo Moyses Resende Costa”.
Após os moradores solicitarem sua saída, ocorreram conflitos violentos, segundo a carta, em represália à comunidade. “Ingressaram na região [para acertos sobre as ocorrências] 50 policiais militares, sob às ordens do então comandante da Polícia Militar, Ayrton Norte; do ex-secretário de Segurança Pública, coronel Louisimar Bonates e do governador do estado do Amazonas, Wilson Miranda Lima”.
A Polícia Militar foi o autor de um dos mais hediondos crimes nos últimos anos, na Amazônia
A investida do órgão de segurança matou “dois indígenas Munduruku e quatro ribeirinhos, além do desaparecimento de três outras vítimas, de mulheres e crianças feridas à bala e de comunidades inteiras ameaçadas e torturadas”, afirma o documento.
“A Polícia Federal (PF) abriu inquérito com indícios e provas do envolvimento de agentes públicos de segurança no crime”, afirmaram as organizações da carta que se mantiveram mobilizadas e organizaram evento em agosto de 2023, aniversário de três anos de impunidade.
“A Polícia Federal (PF) abriu inquérito com indícios e provas do envolvimento de agentes públicos de segurança no crime”
Em abril do ano passado, a PF indiciou o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, e o coronel da Polícia Militar Airton Norte e revelou que participaram do massacre mais de 100 policiais, que estão sendo investigados. “Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados”, informaram as organizações com base no inquérito da PF.
Na ocasião, o evento também contou com a participação de parentes das vítimas assassinadas e de vítimas que sobreviveram à tortura. Mesmo sob ameaças e risco de morte, as vítimas cobraram justiça em relação aos envolvidos. No dia em que se completou três anos do massacre, tristeza, desabafo, choro e também coragem, estiveram presentes nos relatos de quem vivencia as consequências de crimes como abuso de autoridade, coação, agressões verbais e física, tortura e descaso.
“Ao todo, cerca de 130 policiais, entre civis e militares, suspeitos de participar das ações, são investigados”
“Apareceram alguns drones e não sabemos a quem pertence ou porque estão ali, se é do governo ou da PF. As crianças, a gente, não têm mais liberdade de cair na água. Quando olhamos para cima, já pensamos que vão nos matar, que vamos morrer”, denunciou um representante indígena do povo Munduruku, contando uma das formas de coação e amedrontamento às comunidades.
O CNDH participou do evento remotamente e, diante dos relatos, fez uma série de recomendações para se investigar e, principalmente, proteger as comunidades e aldeias. O Conselho propôs ainda retornar à área para averiguar o cumprimento das recomendações, que, conforme as observações descritas na nota, não foram cumpridas. Com todas as constatações feitas e novas recomendações, muitas urgentes, “espera-se que sejam cumpridas”, conclui Marina.
Toda a família precisa ser protegida
Dom Leonardo Steiner, presidente do Conselho Indigenista Missionário, agradeceu ao CNDH e à comitiva que visitou as comunidades. Para o presidente do Cimi, foi significativo e alentador para os moradores da região a presença de pessoas e órgãos responsáveis por garantir sua segurança.
“É muito importante que o CNDH se envolva seriamente nessa situação do Massacre do Abacaxis, para que não fique só no esquecimento, mas também proponha ações concretas em benefício das comunidades e também das pessoas que foram atingidas, foram violentadas”, afirmou o cardeal.
“É muito importante que o CNDH se envolva seriamente nessa situação do Massacre do Abacaxis”
Esperançoso de que o caso não ficará impune, Dom Leonardo informou que aguardará o Relatório final da visita para que ele, a Igreja e a sociedade consigam acompanhar as realizações dos encaminhamentos. “Aguardamos um relatório final para podermos acompanhar o que precisa ser feito e esperamos que o Conselho, junto com o Ministério Público e a Polícia Federal, possa realmente levar a bom termo essa questão e não deixar impunemente essa violência em relação aos ribeirinhos e povos indígenas da região dos rios Abacaxis e Mari Mari”, considerou.
Para além da preocupação pela impunidade ou reparação que possa vir a acontecer, Dom Leonardo se preocupa com a proteção da localidade. “É muito fácil retirar [uma pessoa que esteja ameaçada], mas como dar proteção local? Porque não se trata de uma pessoa, de duas pessoas, se trata sempre de uma aldeia, se trata de uma grande família, ela toda precisa ser protegida”, afirma.
“É muito fácil retirar [uma pessoa que esteja ameaçada], mas como dar proteção local?”
Questionado sobre a compreensão da Igreja sobre uma possível impunidade, o cardeal é categórico: “se trata de violência em relação aos pequenos, violência em relação aos pobres, e nós não podemos deixar passar isso. Nós não podemos deixar isso no passado, nós temos que realmente levar adiante, e esse é o trabalho da Igreja. A Igreja não está interessada em nada além da justiça”, concluiu.
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Comitiva do CNDH navega pelo rio Abacaxis. Foto Acervo CNDH