Um catador de espinhas: Ailton Krenak na ABL. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Só aceitei aprender a ler e escrever, porque encarei a alfabetização como
se fosse um peixe com espinhas. Tirei as espinhas e escolhi o que queria”.
(Ailton Krenak. 2003)

Ele escolheu o que queria. Por isso, Ailton Krenak foi o primeiro escritor indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Soube tirar as espinhas, o que não é tarefa fácil dependendo do tipo de peixe. Traíra e pacu têm muita espinha. Em geral, quem cata para os filhos pequenos são as mães, que os ensinam como fazer.

No entanto, o processo histórico de alfabetização escolar de crianças indígenas tem sido feito irracionalmente numa língua que não faz parte de suas práticas comunicativas, portanto sem a correspondente oralidade. Impedidas de usar a língua materna, obrigadas a engolir o peixe com espinha e tudo, engasgam, ferem a garganta e são condenadas ao silêncio. Nem oralidade em sua língua, nem a escrita em português.

Ailton, que viveu outra situação, conseguiu navegar entre a oralidade e a escrita, separando o joio do trigo. Isso ficou claro na sua posse nessa sexta (5), em que trajava o fardão e usava uma bandana indígena. Esse catador de espinhas de peixe, que aprendeu a nadar nas águas doces e então límpidas do rio Watu e que vive atualmente na Reserva Indígena Krenak, em Resplendor (MG), esclareceu em seu discurso o que veio fazer na cadeira nº 5 da ABL.

– Eu já disse que venho aqui para trazer as línguas nativas do Brasil e colocá-las dentro desse ambiente que faz a expansão da lusofonia.

Algumas delas contam com milhares de falantes até fora do Brasil, como o Guarani, presente em quatro países do Mercosul e, na Pan-Amazônia, o Tikuna, o Macuxi, o Tuyuka, o Tukano, o Nheengatu, o Hãtxa Kuĩ (Kaxinawá). Essas línguas, minorizadas em cinco séculos de colonização e colonialidade, entram agora na ABL pela porta da frente, já entreaberta na gestão de Marco Lucchesi, que convidou os Guarani para dois eventos e discursou na língua deles.

Escrita funerária

Em conversa logo após sua eleição, Ailton nos falou que pretende criar na ABL uma plataforma similar à da Biblioteca Ailton Krenak, cujo acervo é constituído por centenas de documentos, textos, fotos, filmes. Manterá ainda diálogo com outras instituições: o Museu dos Povos Indígenas (MPI) hoje dirigido por Fernanda Kaingang e a Biblioteca Nacional presidida por Lucchesi.

Esse diálogo pode ampliar o acesso na plataforma da ABL às narrativas gravadas em línguas ameríndias pelo Programa de Documentação de Línguas Indígenas (Prodoclin) do atual MPI, construído em parceria com a UNESCO na gestão anterior de José Levinho. Assim, a Academia fundada por Machado de Assis em 1987, além do português, passa a contar em seu acervo com registros em dezenas de línguas ameríndias.

– A ideia é priorizar a oralidade e não necessariamente o texto escrito. O que ameaça essas línguas é a ausência de falantes – disse Ailton, na mesma linha de dona Fiota, professora da “Gira de Tabatinga” em Bom Despacho (MG), que ao ser ameaçada pelo secretário municipal de educação de cortar o seu salário por ser “analfabeta”, disse:

– Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra, que é mais do que a letra.

Ailton tem a palavra e a letra. A biblioteca digital que pretende criar na ABL será acessada não apenas por leitores, mas por “escutadores”. Lá, elementos da cultura oral irão interagir com o discurso escrito libertador, desdenhando aquela “escrita funerária”, que serve de caixão para sepultar o cadáver da letra morta, considerada o osso do som. A prioridade será a escrita viva, livre, voando como um pássaro, que devolve a palavra ao universo da oralidade, como queria o tukano Manoel Moura.

– Todo mundo que escreve livros incríveis escutou histórias de alguém que não escreveu livros. A literatura que produzimos nos últimos 3.000 anos deve ter pelo menos 10 mil anos em que ninguém escrevia. Só contava histórias –  disse Ailton em seu discurso no qual contou histórias.

Línguas ameríndias

O novo acadêmico é autor de vários livros com propostas novas de se relacionar com o meio ambiente, entre eles “A vida não é útil” Ideias para adiar o fim do mundo”, já traduzidos para treze países. Ele sabe que é na leitura que um livro se faz, mas não o sacraliza, nem o fetichiza, até porque existe muita porcaria editada. Reconhece o papel da oralidade como registro sem, no entanto, desconsiderar a escrita, que numa sociedade como a brasileira guarda relação com a cidadania.

O português, a única língua de Estado oficial, tem um mercado editorial forte, conta com edição de livros e bibliotecas ao contrário das línguas historicamente minorizadas, que muitas vezes sequer são dotadas de alfabeto e por isso foram discriminadas como “carentes de escrita“, quando na verdade eram “independentes da escrita”, dela não precisavam para reproduzir suas culturas e seus saberes..

Em seu discurso de posse repleto de improvisações, Ailton fez pausas de meditação, como quem diz: primeiro nós pensamos, só depois é que falamos ou escrevemos. A palavra milenar dos povos originários enunciada pelos primeiros narradores deste território ocupado pela “Pátria Mãe Gentil” foi, finalmente, escutada no Petit Trianon da ABL por um público seleto: a ministra da Cultura, Margareth Menezes, o ministro Silvio Almeida dos Direitos Humanos, a presidente da Funai Joênia Wapixana e Eloy Terena do ministério dos Povos Indígenas.

O novo acadêmico percorreu a ponte da oralidade em direção ao mundo da escrita e, parafraseando o conhecido poema de Mário de Andrade, disse em seu discurso de posse:

– Desde que me convidaram ou me animaram para ocupar essa cadeira número cinco, eu me perguntava: Será que nessa cadeira cabem 300? Como Mário de Andrade, eu sou 300. Olha que pretensão. Eu não sou mais do que um, mas posso invocar mais do que 300, os 305 povos que nos últimos 30 anos do nosso país passaram a ter a disposição de dizer “estou aqui”.

E é como se Ailton tivesse dito:

– Se é para o bem de todos e a felicidade geral das 305 nações que resistem no Brasil, digam a elas que fico.

O colar do imortal

O auditório ficou lotado, assim como os jardins da ABL, com líderes de várias dessas nações, antropólogos, professores, animadores culturais, jornalistas, artistas, cantores. A escritora Heloísa Teixeira, ocupante da cadeira 30, recepcionou o novo “imortal”, com um discurso intercalado por vídeos, em um deles a cena memorável na Assembleia Constituinte, em 1987, na qual Ailton, enquanto falava, pintava o rosto. Ele deixou marcas da tinta preta de jenipapo impressas nos artigos 231 e 232 da Constituição brasileira de 1988.

Heloísa reconheceu a importância de Ailton para o Brasil e a ABL, registrando que aquele era um momento histórico. Destacou que, junto com ele, entravam na Academia “um universo de territórios, pensamentos e cosmologias indígenas”, além de 180 línguas enumeradas com critérios linguísticos, que sobem para 274 línguas autodeclaradas no Censo do IBGE (2010)

O novo acadêmico já havia recebido o título de doutor honoris causa de várias universidades federais: de Minas Gerais (UFMG), de Juiz de Fora (UFJF) e de Brasília (UnB). Foi laureado, entre outros, com o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira de Escritores.

Seu discurso interrompido muitas vezes por aplausos abordou temas diversos: literatura, direitos dos povos originários, das mulheres, dos afrodescendentes. Lamentou a demora da ABL em admitir a primeira mulher em seus quadros – Raquel de Queiroz, só em 1977. Para ele “não é apenas uma questão de gênero, mas de perceber o mundo de maneira diferente”. Foi justamente uma acadêmica, a atriz Fernanda Montenegro, quem colocou em Ailton o colar de imortal.

A espada

Quando se referiu ao rito, “que nos dá potência para ir além da nossa rotina de reproduzir cotidianos, nos saca desse lugar-comum e nos põe num lugar de criação de mundos”, Krenak citou a música Procissão de Gilberto Gil, ali presente e submergido por uma chuva de aplausos. Já o pedido de perdão feito pela Comissão da Anistia aos Povos Originários para ele é insuficiente, porque exige medidas concretas de reparação.

O território indígena foi, finalmente, demarcado na ABL. Ailton abriu portas pelas quais podem entrar Eliane Potiguara, Graça Graúna, Daniel Munduruku e outros escritores. Se mais um escritor indígena entra na ABL será uma oportunidade para degustar outra vez o cardápio da noite, com comidas indígenas preparadas pelo grupo mineiro Terra Come, que brindou o público no final do evento com uma supimpa sopa de mandioca, cogumelo, banana da terra e banana verde, servida em cumbucas de argila forradas com folha de taioba.

Ah, já ia me esquecendo: quem entregou o diploma ao mais novo acadêmico foi Antônio Carlos Secchin. Já a espada saiu das mãos de Arnaldo Niskier, que não disse, afinal, para que servia. Ailton, porém, sabe muito bem para que serviu. Historicamente, ela foi usada por portugueses e espanhóis, que usurparam os territórios indígenas em nome de Jesus Cristo, como explicitado no poemário La espada encendida de Pablo Neruda,

“La espada, la cruz y el hambre iban diezmando la familia salvaje”.

P.S. De São Paulo veio muita gente para ver a posse de Ailton Krenak, incluindo participantes do Ciclo de Debates Educação e Povos Indígenas – Experimentações entre saberes, realizado em 3 e 4 de abril no SESC Bom Retiro, parceiro da UNIFESP no evento. A última mesa da qual participei, mediada por Tatiana Amaral, contou com apresentações de Cristine Takuá e Sandre Benites, com a exibição de um vídeo sobre a escola, que diz tudo. (Chamado para tecer diálogos, de Cristine Takuá)

Referências

Ailton Krenak in Bessa Freire, J.R. La presencia de la literatura oral en el processo de creación de bibliotecas indígenas en Brasil. Conacultura. Guadalajara-Jalisco. 2003

Colón, Marcos: Amazônia Latitude – Ciência e Jornalismo pela floresta. Fotogaleria: a posse de Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras, o primeiro indígena imortal

Fotogaleria: A posse de Ailton Krenak na ABL, o primeiro indígena imortal

 

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