Cobertura universal de saúde: uma má proposta

Conceito promovido pela OMS sorrateiramente substitui o acesso universal à saúde – que está na base de sistemas públicos, como o SUS. Para combater infiltração de ideias de mercado, a Assembleia Mundial da Saúde deve enfrentá-lo

Pelo WHO Watch | Tradução: Guilherme Arruda, em Outra Saúde

O mundo está cada vez mais próximo do prazo para implementar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) – o ano de 2030 – e garantir que todos, em todos os lugares, tenham acesso a serviços essenciais de saúde. Contudo, o ritmo dessa implementação vai mal. De acordo com o último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), pouco mais da metade da população global, ou 4,5 bilhões de pessoas, ainda não tinha acesso a serviços essenciais de saúde em 2021. Pior: uma a cada quatro pessoas enfrenta gastos pesados com saúde, que os empurram para a pobreza. Desde 2015, o progresso na Cobertura Universal de Saúde, o ODS 3.8, não apenas estagnou como regrediu, especialmente em regiões rurais e de baixa renda, o que aprofundou as desigualdades de saúde nos países.

A pandemia da covid-19 piorou a situação, congelando qualquer progresso na cobertura dos serviços de saúde entre 2019 e 2021 e levando mais pessoas à pobreza. O relatório da OMS exorta os países a dobrar os esforços para alcançar os objetivos, mas se furta de explicar porque eles estão ficando para trás ou propor planos claros para mudar esse cenário. O documento também não discute como tornar os medicamentos essenciais mais baratos e acessíveis na atual conjuntura política.

A Cobertura Universal de Saúde tem sido promovida como uma estratégia de promoção da saúde pelo poder público que prevê a compra de um pacote de serviços essenciais de saúde de uma variedade de fornecedores, incluindo o setor privado, por meio de planos e seguros de saúde privados. Sua estagnação não é o fracasso da implementação de um conceito exitoso, mas o fracasso da própria estratégia. O esforço global para alcançar a “cobertura universal”, em vez do “acesso universal”, limita o orçamento público da Saúde e reduz o financiamento da atenção primária.

Com isso, ele limita o acesso das populações mais pobres e rurais a serviços essenciais de saúde em todo o mundo. O limitado orçamento público acaba sendo sugado por exames caros e formas de intervenção dominadas por grandes grupos econômicos, devastando os sistemas públicos de saúde e, indiretamente, promovendo o crescimento de sistemas privados com fins lucrativos e sem regulação.

O relatório da OMS apresenta uma nova ação para responder à falta de recursos para a atenção primária à saúde (APS): a Plataforma de Investimento de Impacto na Saúde. Ela é uma iniciativa de quatro bancos – o Banco Africano de Desenvolvimento Africano, o Banco Europeu de Investimento, o Banco Islâmico de Desenvolvimento e o Banco Interamericano de Desenvolvimento – que oferecerá 1,5 bilhão de libras em empréstimos para países de renda baixa e média fortalecerem sua APS.

Ainda que essa pareça uma intervenção muito bem-vinda para manter recursos fluindo para a atenção primária, isso esconde o fato de que esses empréstimos poderão deixar esses países ainda mais endividados. No lugar de financiar a atenção primária por meio de novas dívidas, a estratégia deveria centrar-se no cancelamento da dívida desses países para que eles possam concentrar mais recursos públicos na Saúde – e, com isso, ampliar a cobertura de serviços essenciais de saúde e desenvolver sistemas de saúde sustentáveis.

É necessário organizar os serviços de saúde como um bem público, e não como uma mercadoria que pode ser comprada de um leque de provedores por meio dos mecanismos do livre-mercado. Os governos devem ter cautela com a ideia de Cobertura Universal de Saúde e reformulá-la no sentido de garantir o acesso universal  a serviços de saúde baratos, capitaneados pelo setor público, acessíveis e descentralizados, para assegurar a proteção das bilhões de pessoas mais pobres e vulneráveis do mundo.

Isso exige um giro em direção a um papel dirigente da Saúde Pública na entrega do cuidado, com ênfase em qualidade, eficiência, distribuição equitativa dos recursos e melhorias para a saúde dos povos. Os mecanismos de financiamento devem ser, em primeiro lugar, os impostos e a seguridade social – com uma gradual transição rumo a sistemas únicos de saúde. Com a próxima Assembleia Mundial da Saúde cada vez mais próxima, os membros da OMS devem dar prioridade a essa mudança de paradigma.

Foto: Danish Siddiqui

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