Tragédia do Rio Grande do Sul. Um desastre previsto. Entrevista especial com Paulo Artaxo

Segundo o cientista, há 50 anos a ciência alerta sobre os riscos e perigos das mudanças climáticas, sem que fossem adotadas medidas eliminar os combustíveis fósseis; o resultado estamos vendo agora

IHU

Não há menor dúvida de que o agronegócio, os políticos do nosso Congresso e os banqueiros em geral, basicamente, estão preocupados com o maior lucro possível no prazo mais curto possível, deixando para a sociedade pagar preços altíssimos em vidas e prejuízos materiais e esta situação tem que mudar;

Não há menor dúvida de que não temos “plano b” em relação à questão das mudanças climáticas. Nós temos, o mais rápido possível, eliminar a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento de florestas tropicais e construir uma nova sociedade com muito menos consumo do que temos hoje;

A sociedade tem que perceber que estamos indo para um cenário de um aumento médio da temperatura da ordem de 3º celsius, até o momento tivemos um aumento de 1,3º a 1,4º celsius. E 3º celsius de média de aumento da temperatura global significa que em áreas continentais e tropicais, como o Brasil, podemos ter um aumento de temperatura de 4º a 5º celsius. Isso é um aumento brutal no clima que não aconteceu nem ao longo dos últimos 50 milhões de anos.
O Rio Grande do Sul vive sua maior catástrofe climática há uma semana. Conforme o último relatório da Defesa Civil, divulgado na noite do dia 06 de maio, 385 dos 497 municípios foram atingidos, 1,1 milhão de pessoas afetadas, 201,5 mil pessoas fora de casa, sendo 47,6 mil em abrigos, 153,8 mil desalojados, 85 mortos e 134 desaparecidos. A tragédia segue em curso, com o aumento da área alagada em Porto Alegre e a chegada da enchente à metade Sul do Estado.

Faltam adjetivos para descrever a situação dos gaúchos. Além daqueles que perderam tudo, há um grande contingente da população sem abastecimento de água desde que as enchentes começaram e outro tanto também sem energia elétrica. Há escassez de água nas prateleiras dos supermercados, gás de cozinha, medicamentos e a população, desesperada, deixou as gôndolas vazias. Não obstante ao drama, começam ocorrer assaltos e saques ao que sobrou e, até mesmo, aos desabrigados.

Boa parte da tragédia poderia ter sido evitada ou mitigada se os políticos dessem ouvidos aos cientistas do clima, é o que explica o professor Paulo Artaxo, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, a ciência alerta claramente à sociedade e aos nossos governantes sobre os riscos e os perigos das mudanças climáticas globais”, fundamenta o físico. “Bom… 50 anos se passaram sem que nenhuma medida de grande porte fosse feita para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. E o resultado estamos vendo aí no Rio Grande do Sul, com as ondas de calor, com as secas imensas na Região Amazônica e assim por diante”, descreve Artaxo.

Para o cientista, os prognósticos de aumento de temperatura para os países tropicais, como o Brasil, preveem um “aumento de 4º a 5º celsius”, o que deve ocasionar “o aumento na frequência e na intensidade dos eventos climáticos extremos de maneira muito, muito grave, impactando o agronegócio brasileiro, a capacidade de sobrevivência nas nossas cidades e toda a nossa sociedade”, observa.

“A ONU estruturou os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS exatamente para evitar que nossa sociedade entre em colapso completo, como a atual trajetória está levando a gente a uma emergência climática sem precedentes nos últimos milhões de anos no nosso planeta”, lembra o pesquisador que é integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, na sigla em inglês.

Paulo Artaxo é graduado em Física pela Universidade São Paulo – USP, mestre em Física Nuclear e doutor em Física Atmosférica pela USP. Trabalhou na NASA (Estados Unidos), Universidades de Antuérpia (Bélgica), Lund (Suécia) e Harvard (Estados Unidos). Atualmente é professor titular do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da USP. Ainda é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC.

Confira a entrevista
IHU – No segundo semestre de 2023, em setembro e novembro, houve grandes enchentes no RS. Agora, menos de seis meses depois, estamos diante de outra situação extrema. O que explica a recorrência desses eventos em intervalos tão curtos?

Paulo Artaxo – É muito claro e evidente hoje, para a Ciência, que as mudanças climáticas estão aumentando a intensidade dos eventos climáticos extremos e, também, a sua frequência. Então, nós estamos observando claramente grandes chuvas, grandes secas e grandes inundações ocorrendo cada vez mais frequente. Isso tem sido observado ao longo dos últimos dez anos e tem sido intensificado de uma maneira muito forte, especialmente no Brasil, ao longo dos últimos quatro ou cinco anos.

Para remediar essa situação nós temos que, basicamente, reforçar – e muito – a Defesa Civil de cada município, de cada estado e a coordenação a nível nacional para que possamos, efetivamente, proteger a população desses eventos climáticos extremos. Hoje eles são previsíveis, vão ocorrer de maneira cada vez mais frequente, então não há a menor justificativa para não agir agora para proteger dos próximos eventos climáticos extremos que vão acontecer, talvez daqui uma semana, um mês ou um ano, mas eles vão acontecer; não há a menor dúvida.

IHU – Enquanto o RS vive o drama das precipitações de chuva muito acima da média do mês concentradas em poucos dias, boa parte do sudeste, centro-oeste e nordeste vivem uma onda de calor extremo. Até que ponto é possível associar esses eventos ao aquecimento global?

Paulo Artaxo – Nós estamos observando uma onda de calor muito intensa na região Sudeste do país, particularmente centrada na cidade de São Paulo, com temperaturas de 32ºC a 34ºC, por praticamente duas semanas, fora do período do verão. Isso é, obviamente, uma onda de calor causada pelo aquecimento global.

Acontece que essa onda de calor é gerada por um sistema de alta pressão e que dificulta a dispersão de massas de ar com altíssimo conteúdo de umidade, que estão caindo sobre o Rio Grande do Sul. Os dois fenômenos não têm uma ligação direta propriamente dita, mas evidentemente o sistema de alta pressão dificultando a dispersão de massas de ar com muita umidade na região do RS está intensificando as chuvas no estado.

Em geral conseguimos detectar pontos de ruptura climáticos olhando para os dados retroativos. Mas devemos estar mesmo no ponto de ruptura para as temperaturas na superfície dos oceanos.

IHU – Diante do que poderíamos chamar de novo regime climático global, como os atuais modelos de previsão climática se comportam? É possível confiar neles? Se não, o que fazer?

Paulo Artaxo – Sim, é possível confiar nos modelos climáticos. Eles estão se aprimorando cada vez mais, inclusive agora com o uso de inteligência artificial, fazendo com que eles consigam, na verdade, fazer previsões da intensidade e da frequência de eventos climáticos extremos cada vez com maior precisão. Isso aconteceu, por exemplo, nos eventos de São Sebastião [São Paulo] e Petrópolis [Rio de Janeiro], os modelos climáticos rodados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE alertaram o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais – Cemadem sobre a possibilidade de grandes chuvas concentradas e o Cemadem soltou o alarme para a Defesa Civil tomar as providencias.

Então, os modelos climáticos conseguem, sim, hoje prever esses fenômenos. Obviamente, as incertezas nas ciências estão sempre presentes. Portanto, não quer dizer que nós vamos acertar todos os eventos com muita precisão na localização e na escala temporal, mas temos uma boa ideia, até com um dia de antecedência, quanto à ocorrência desses eventos climáticos extremos.

IHU – A resposta padrão das autoridades para esses eventos climáticos extremos costuma orbitar em frases como “não tínhamos como prever”. Contudo, os relatórios do IPCC apontam, precisamente, para a recorrência desses eventos. Qual a importância de se levar a sério os cientistas?

Paulo Artaxo – Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, a ciência alerta claramente à sociedade e aos nossos governantes sobre os riscos e os perigos das mudanças climáticas globais. Bom… 50 anos se passaram sem que nenhuma medida de grande porte fosse feita para reduzir as emissões de gases do efeito estufa. E o resultado estamos vendo aí no Rio Grande do Sul, com as ondas de calor, com as secas imensas na Região Amazônica e assim por diante.

Basicamente, a ciência alertou e continua alertando de que é fundamental reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa para que esses eventos climáticos extremos não aumentem ainda mais de intensidade e de frequência.

IHU – Há um lobby muito forte do agronegócio no Congresso com vistas à flexibilização da legislação ambiental, cujo lucro é privado, mas os custos são partilhados coletivamente. Até que ponto esse desajuste de seca e calor extremos em umas regiões e chuvas torrenciais em outras resultam do descaso político em relação à pauta ambiental?

Paulo Artaxo – Não há menor dúvida de que o agronegócio, os políticos do nosso Congresso e os banqueiros em geral, basicamente, estão preocupados com o maior lucro possível no prazo mais curto possível, deixando para a sociedade pagar preços altíssimos em vidas e prejuízos materiais e esta situação tem que mudar.

Nosso Congresso é dominado, essencialmente, por políticos que visam somente a sua reeleição no prazo mais curto possível e fornecer o lucro para as indústrias independente do dano ambiental ou climático que essas atividades industriais estejam fazendo para o nosso Brasil. Esse panorama tem, certamente, que mudar, se quisermos ter, efetivamente, um clima razoavelmente estável e propicio às atividades socioeconômicas para os nossos filhos e os netos. Portanto, temos que mudar o arcabouço político do Brasil, elegendo políticos que efetivamente trabalhem em prol da população e não de setores econômicos, como o agronegócio, por exemplo.

IHU – O orçamento previsto em 2024 para o Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas é de R$ 24 bilhões. Um estudo realizado por diversas entidades ambientais e publicado em 2023 aponta que somente em 2022, a renúncia fiscal da produção nacional de soja somou ao menos R$ 57 bilhões. O que esses números revelam sobre a prioridade nas políticas públicas brasileira voltadas aos efeitos do aquecimento global?

Paulo Artaxo – É evidente que o Congresso Nacional ao longo dos últimos sete anos tem feito todos os esforços possíveis para acabar com o orçamento do Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas. Nós observamos a destruição do Ibama como um todo e toda a destruição que ocorreu ao longo dos anos no Ministério do Meio Ambiente. O atual governo está tentando reconstruir esse Ministério, mas, obviamente, isso demora tempo e não conta com o apoio do Congresso Nacional, porque o orçamento é sistematicamente reduzido quando a proposta do governo vai para o Congresso. Essa situação tem que mudar. Nós temos que ter políticos que pensem nos interesses da população e não nos interesses do seu próprio bolso ou nos interesses econômicos de indústrias particulares, como é o caso do agronegócio, por exemplo.

IHU – Em 2021, em entrevista à National Geographic, o senhor comentava que não havia “plano b” e que nosso papel era agir na construção de um novo sistema socioeconômico. O que mudou de lá para cá? Qual o cenário hoje?

Paulo Artaxo – Não há menor dúvida de que não temos “plano b” em relação à questão das mudanças climáticas. Nós temos, o mais rápido possível, eliminar a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento de florestas tropicais e construir uma nova sociedade com muito menos consumo do que temos hoje. Uma sociedade que tenha foco na sustentabilidade social, econômica e política do nosso planeta em geral, de cada país individual, de cada estado e cada município. Essencialmente é fundamental mudarmos efetivamente todo o panorama da nossa sociedade do ponto de vista de modelo socioeconômico.

IHU – Que tipos de ações podem ser feitas para mitigar o risco de catástrofes como está que o RS está vivendo?

Paulo Artaxo – Precisamos reforçar – e muito – na Defesa Civil cada município, em cada Estado e a sua coordenação a nível nacional para que haja ações rápidas e concretas, por exemplo, de remover populações em áreas de risco e assistir essas populações em caso de inundações de grande porte, como esta que estamos vendo agora no RS – é possível. Muitos países já fizeram isso, países que têm muito menos recursos financeiros, tecnológicos e científicos do que o Brasil.

Precisamos, urgentemente, que reforçar os sistemas de alerta, a ciência que estuda os eventos climáticos extremos e temos que proteger a população reforçando as Defesas Civis em todos os estados e municípios do país.

IHU – Em que sentido as mudanças climáticas são uma das maiores ameaças à saúde pública?

Paulo Artaxo – Além da destruição que estamos vendo nessas chuvas muito intensas no Rio Grande do Sul, esses eventos climáticos extremos têm fortes impactos na saúde humana através da facilitação da propagação de muitas doenças, que são agravadas com o aumento da temperatura e com a ocorrência ou de grandes chuvas ou de grandes secas. Portanto, precisamos interligar a questão com cuidado da saúde pública associado com a mudança do clima, que já ocorreu e que vai continuar ocorrendo ao longo das próximas décadas.

IHU – Abordando a questão de maneira mais ampla, sem se concentrar nos efeitos imediatos da catástrofe no RS, não temos reduzido a emissão de gases de efeito estufa e com isso se torna cada vez mais difícil limitar o aquecimento global em 2ºC. Se continuarmos deste modo o que podemos esperar para o futuro?

Paulo Artaxo – É importante que a sociedade como um todo saiba que não existe a menor possibilidade de limitarmos o aquecimento global a 2º centrígrados com a emissão atual de 62 bilhões de toneladas de CO2 equivalente que estamos jogando na atmosfera a cada ano. E, a cada ano, estamos observando um aumento de 2% nessas emissões quando o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU recomenda uma queda anual de 5% a 7% nas emissões até atingirmos emissões zero em 2050.

Vejam: a Ciência basicamente fez o seu papel, já estudou, já recomendou, já mostrou para os governos, as empresas e a sociedade o que precisa ser feito. Agora, falta ação política para minimizar os impactos na população, minimizar os impactos das mudanças climáticas nas próximas gerações que vão ser fortemente impactadas, muito mais do que estamos tendo hoje com os eventos climáticos extremos e a mudança climática como um todo.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Paulo Artaxo – A sociedade tem que perceber que estamos indo para um cenário de um aumento médio da temperatura da ordem de 3º celsius, até o momento tivemos um aumento de 1,3º a 1,4º celsius. E 3º celsius de média de aumento da temperatura global significa que em áreas continentais e tropicais, como o Brasil, podemos ter um aumento de temperatura de 4º a 5º celsius. Isso é um aumento brutal no clima que não aconteceu nem ao longo dos últimos 50 milhões de anos. Esse aumento de 4º a 5º celsius no Brasil vai trazer um aumento na frequência e na intensidade dos eventos climáticos extremos de maneira muito, muito grave, impactando o agronegócio brasileiro, a capacidade de sobrevivência nas nossas cidades e toda a nossa sociedade. Nós temos que evitar esses cenários o máximo possível reduzindo as emissões de gases do efeito estufa o mais rápido possível.

Por último, cabe mencionar à sociedade que a ONU estruturou os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável exatamente para evitar que nossa sociedade entre em colapso completo, como a atual trajetória está levando a gente a uma emergência climática sem precedentes nos últimos milhões de anos no nosso planeta. E a população mais impactada é a mais vulnerável, é a população de baixa renda, são as pessoas que tinham pouco e acabam perdendo tudo o que tinham, inclusive filhos, amigos e parentes em um deslizamento de terra ou em uma inundação como esta que estamos vendo no Rio Grande do Sul.

É urgente que o país mude essa atual trajetória, se prepare melhor para os eventos climáticos extremos, pressione internacionalmente os países para que haja uma redução ou eliminação na queima de combustíveis fósseis e temos que fazer a nossa lição de casa que é, essencialmente: zerar o desmatamento da Amazônia até 2030, investir na recuperação ecológica dos ecossistemas que foram destruídos nas últimas décadas e isso contribuindo para uma economia verde, sustentável, que possa trazer prosperidade para o país e não a destruição que estamos vendo atualmente.

Vista aérea da cidade de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, que está com 2/3 do seu território sob a água | Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

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