Prefácio do livro “Quando a Terra é Dinheiro, a Natureza é Território”. Por João Pacheco de Oliveira

“Quando a Terra é Dinheiro, a Natureza é Território” é o nome do livro de Núbia Vieira Cardoso, resultado de sua pesquisa de mestrado. Nele, ela aborda os contatos e processos de territorialização dos povos indígenas do Médio Xingu, onde mais tarde seria construída a UHE Belo Monte. Diz ela: “Faço um recorte do período de 1950-1980, ou seja, da ditadura militar inclusive”.  Abaixo, reproduzimos o Prefácio de “Quando a Terra é Dinheiro, a Natureza é Território”, escrito pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira, que foi seu professor no Museu Nacional. Boa leitura.

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Prefácio

“A Amazônia pode ser imaginada de múltiplas formas a depender da escala em que o fazemos e do viés disciplinar em que somos conduzidos. Na escala mundial pode ser um gigantesco depósito de recursos estratégicos para alimentar o desenvolvimento capitalista, atitude apoiada em uma cega fé no incessante progresso de uma ciência- -mercadoria, que se pensa apenas como um meio para a acumulação de capital; ou, inversamente, com sua imensa biodiversidade, pode ser uma solução temporária e paliativa para a crise ecológica e o aquecimento global. Na escala nacional pode ser um meio para, através da dilapidação de seus recursos, gerar riquezas para o bloco de poder e seus aliados nacionais ou internacionais; ou pode pretender democratizar a terra tornando-a acessível a colonos recém chegados, acenando com a falsa promessa de destinar “uma terra sem homens para homens sem terra”.

Na escala local povos indígenas de distintas línguas e tradições, comunidades camponesas e extrativistas buscam sobreviver face ao poder assimétrico dos grandes empreendimentos e diante da ambivalência da atuação do Estado. Segundo o olhar limitado de cada disciplina acadêmica enfrentaremos separadamente os problemas de ocupação- de enormes espaços, da geração de lucros, da preservação da biodiversidade, da proteção de culturas de povos ameaçados. Este livro contém um pouco de tudo isso, não como imagens fragmentadas e autofágicas, mas em interrelação e conflito. O seu estofo são os dramas sociais descritos na escala humana.

A sua autora, Núbia Vieira Cardoso*, não é natural da Amazônia (é mineira), mas teve uma densa e marcante experiência de vida no interior do Pará. Trabalhou alguns anos na região com a FUNAI e o ICMBio, visitou muitas aldeias indígenas, colaborou na realização de vídeos-documentários e fez boas amizades entre eles. Conviveu igualmente com colonos e trabalhadores rurais, dialogou com os que lutavam pelos direitos humanos, conheceu o cotidiano e as agruras da população regional empobrecida. Ouviu as sagas dos poderosos empresários e políticos e pode assistir a alguns dos resultados nefastos de suas ações.

Fixando-se no Rio de Janeiro resolveu refletir e sistematizar aquilo que vivera. Escolheu como porta de entrada a Geografia e ingressou no mestrado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/ UERJ. Eu a conheci em um curso sobre “Antropologia do Território”, de que participou no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS no Museu Nacional/UFRJ. Seguiu cursos também em diversas instituições e diferentes disciplinas (filosofia, economia e antropologia). Ao final, com sua orientadora e conselheira, Mônica Sampaio Machado, selecionou memórias e construiu um objeto de pesquisa, planejando um estudo de campo cumprido com grande cuidado e profissionalismo, complexificando, relativizando e aprofundando as suas vivências anteriores.

O foco de sua pesquisa é a transformação ocorrida na região do Médio Xingu entre os anos de 1950 e 1980, alterando radicalmente os modos de vida das populações indígenas e as suas relações com agentes do Estado, empresários e os diferentes segmentos da população não indígena. Tendo convivido com sertanistas das frentes de atração da FUNAI atuantes na região neste período, Núbia nos apresenta a expansão da fronteira sem esconder a sua violência e perversidade. Os depoimentos que reuniu neste livro são impressionantes, narrativas de uma crueza assustadora.

Pela narrativa de Núbia as vozes dos oprimidos deixam o limbo do esquecimento e tornam-se parte da História. Muito longe da utilização ideológica das imagens da grande imprensa e das análises sociais conservadoras, que destacam de maneira unilateral a rápida acumulação de riquezas, Núbia trata da dinâmica dos processos sociais no Sudeste do Pará ao longo de mais de três décadas através da noção de processos de territorialização e seus desdobramentos analíticos. A fronteira – como eu a conceituo (Pacheco de Oliveira, 2021) – é um lugar de negação de direitos das populações autóctones, de descumprimento das leis e de práticas cotidianas que constituem uma aberta infração da moralidade.

Em diálogo com a tradição da geografia brasileira, Núbia desenvolve a sua análise. Recupera a noção de “evento”, tal como elaborada por Milton Santos, e a utiliza bastante ao longo de sua pesquisa. Optando por um referencial processualista e uma perspectiva dinâmica, ela se apropria da noção de “situação” para fins comparativos e analíticos, propondo as “situações geográficas” (por contraste com as “situações históricas” por mim utilizadas – Pacheco de Oliveira, 1999) como instrumento analítico. Por fim reitero que esta monografia traz uma contribuição fundamental para a compreensão da fronteira amazônica, dialogando com diferentes disciplinas envolvidas nestes estudos e fazendo chegar ao leitor vozes e aspectos inteiramente desconhecidos da história oficial, essenciais para a construção de uma interpretação mais viva das mudanças sociais.”

*Núbia Vieira Cardoso graduou-se em Enfermagem pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (2011) tendo iniciado pesquisa com o povo indígena Maxakali de MG em 2009. Voltada para a investigação do estado nutricional da população da Aldeia Verde em Ladainha – MG, a pesquisa demonstrou a relação direta entre o desequilíbrio nutricional então identificado e o não acesso ao território. Em 2012 foi trabalhar na FUNAI de Altamira-PA com o povo indígena Araweté, Assurini e Parakanã, estabelecendo-se em Altamira e no Estado do Pará até 2015. Em 2016 ingressou no mestrado (2018) em Geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e em 2019 no doutorado em Geografia no mesmo programa (2023). Em paralelo, graduou-se em Licenciatura em Geografia pela UERJ (2021). Suas pesquisas acadêmicas se voltaram para a região do Médio Xingu e Sudeste Paraense, tendo recebido, em 2019, o Prêmio Maurício de Almeida Abreu de melhor dissertação de mestrado no XIII Encontro Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia – ENANPEGE.

 

 

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