Carlos Augusto Monteiro: O excesso de peso como o novo normal

Estudioso dos efeitos da nutrição sobre a saúde, epidemiologista da USP atribui aumento da obesidade à transformação do sistema alimentar

por Ricardo Zorzetto, em Pesquisa FAPESP

médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), foi um dos pioneiros em documentar a transição nutricional no Brasil e atribui o crescimento rápido da obesidade no mundo ao aumento na oferta de alimentos, em especial os criados artificialmente pela indústria para serem baratos, de sabor intenso e quase sempre irresistíveis. Em uma classificação inovadora proposta em 2009, a Nova, que vem ajudando a mudar a compreensão de como a dieta impacta a saúde, ele e colaboradores chamaram esses alimentos de ultraprocessados.

Há cinco anos Monteiro figura nas listas dos pesquisadores mais influentes do mundo. Em 2023, foi o brasileiro com os artigos científicos mais citados na literatura acadêmica internacional, segundo o ranking AD Scientific Index. Aos 76 anos, recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Saúde Pública e está formalmente aposentado da universidade, embora continue participando do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), que criou em 1990. Atualmente, ele coordena o NutriNet Brasil, um estudo que desde 2020 vem acompanhando a dieta e a saúde de dezenas de milhares de brasileiros.

No início de março, ele conversou com a reportagem de Pesquisa FAPESP na sala que ocupa no 2º andar da Faculdade de Saúde Pública da USP sobre o aumento da obesidade no mundo e sobre um dos estudos mais recentes que avalia o impacto dos ultraprocessados sobre a saúde. Leia os principais trechos da entrevista.

De 1990 para cá, a população mundial cresceu 51%, mas o número de crianças e adolescentes com obesidade aumentou quatro vezes e de adultos mais que dobrou. O mundo completou a transição nutricional?
Estamos em plena transição nutricional, que é uma mudança simultânea no perfil dos problemas nutricionais, com redução da desnutrição e aumento de sobrepeso, obesidade e doenças crônicas relacionadas à alimentação. É uma analogia à transição epidemiológica, quando as doenças infecciosas deram lugar às crônicas.

A situação vai se agravar?
Provavelmente. Essa é a tendência mostrada pelo estudo da The Lancet [ver reportagem]. Tempos atrás achávamos, por exemplo, que os Estados Unidos tinham batido no teto, com cerca de um terço da população adulta com obesidade. Mesmo lá, o problema continuou aumentando e hoje a prevalência de obesidade passou dos 40%. No resto do mundo ela é menor, mas a tendência de aumento está por toda a parte, o que pode indicar que estamos caminhando para uma situação em que a doença vai se tornar o estado normal. Isso não ocorre com outras doenças. Estar doente deveria ser um estado excepcional.

A doença deveria ser um acidente de percurso?
Sim, é algo não esperado, resultado de um mau funcionamento do organismo. A seleção natural protege as espécies dos problemas mais frequentes, mas não é perfeita. Por isso, uma proporção pequena de pessoas pode ter genes que as tornam, em certas condições, mais suscetíveis a determinadas doenças. Mas uma proporção pequena de casos é muito diferente de uma epidemia, como a de obesidade, que geralmente resulta de algo muito errado praticado pela sociedade.

No caso da obesidade, o que isso significa?
Uma das funções do nosso organismo é manter constante o peso e certa proporção de gordura corporal. Tanto a escassez de gordura quanto o excesso são prejudiciais. Por exemplo, a escassez diminui a capacidade de resistir a períodos de falta de comida, enquanto o excesso pode comprometer a capacidade de fugir de um perigo. Para manter estáveis os depósitos de gordura, precisamos ingerir uma quantidade de energia próxima da que é gasta para sobreviver. Todos os seres humanos têm a capacidade de regular esse equilíbrio. Mas, como ocorre com outras funções biológicas, uma pequena proporção dos indivíduos nasce com características genéticas que lhe garantem uma capacidade aquém da ótima de regular o balanço de energia. Isso explica por que, em qualquer sociedade, sempre haverá uma pequena proporção de pessoas com obesidade. Mas não o crescimento vertiginoso da doença.

O aumento da obesidade pode indicar que estamos caminhando para uma situação em que a doença vai se tornar o estado normal

Houve uma mudança importante no ambiente.
Uma mudança que não foi episódica, que fez o organismo de muita gente passar a funcionar mal. Ela começou nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945] e se disseminou. Antes era obesa uma proporção pequena da população, 2% ou 3%. O que mudou? É mais ou menos consenso que a mudança principal, mas não a única, foi na alimentação. Aumentou brutalmente a oferta de alimentos obesogênicos [que favorecem o ganho de peso] e as pessoas passaram a ingerir mais calorias do que precisam. Não voluntariamente, porque ninguém quer ser obeso.

Por que não se conseguiu sair de uma situação em que a fome e a desnutrição eram frequentes e chegar a um meio-termo?
Houve uma redução fantástica da desnutrição infantil, em especial no Brasil. Como nosso grupo demonstrou, no país essa diminuição aconteceu em consequência de melhorias na alimentação, no saneamento básico, na higiene, na vacinação, na prevenção de doenças infecciosas e no aumento da renda da população. A desnutrição é, em parte, ligada à alimentação, mas, sobretudo, à pobreza. No Brasil e em outros países, os determinantes da desnutrição evoluíram positivamente. Agora, as pessoas não se tornam obesas só porque agora têm mais acesso a alimentos. Houve também uma mudança importante no sistema alimentar.

O que mudou?
Empresas privadas, como as que produzem grande parte dos alimentos que consumimos, visam sempre a maximizar o lucro. A indústria compra matéria-prima do agricultor, processa o alimento, agrega algum valor a ele e extrai lucro. A indústria pasteuriza o leite, o que aumenta sua duração e a segurança para consumi-lo, ou o transforma em queijo, que, além de durar mais, tem propriedades sensoriais diferentes e agrada mais ao paladar. Até aí, tudo normal. As sociedades humanas processam os alimentos há milênios. Além disso, a indústria produz os ingredientes culinários, açúcar, azeite, óleo, sal, manteiga, essenciais para o preparo dos alimentos. Mas avanços ocorridos na segunda metade do século passado na ciência e na tecnologia de alimentos permitiram à indústria aumentar de forma exponencial sua lucratividade. É nesse contexto que surgem os alimentos ultraprocessados.

O que são?
São formulações de compostos químicos, e não propriamente alimentos. Parte desses compostos são carboidratos, proteínas e óleos e gorduras extraídos de alimentos provenientes de cultivos de alta produtividade, como soja, milho, trigo e cana-de-açúcar. Outra parte são carboidratos, proteínas, óleos e gorduras submetidos a alterações químicas, como os amidos modificados, as proteínas hidrolisadas e os óleos hidrogenados. Uma terceira parte são aromatizantes, corantes, emulsificantes, espessantes, estabilizantes e outros aditivos essenciais para que a recombinação dos compostos anteriores se pareça sensorialmente com alimentos integrais ou com as preparações culinárias desses alimentos. O ultraprocessamento descaracteriza o alimento. Ele o trata como matéria-prima que vai fornecer os ingredientes para a produção de um novo alimento. Por isso, são uma formulação de substâncias químicas, e não uma combinação de alimentos.

Qual a diferença?
O espaguete ao sugo é uma combinação de alimentos. Tem macarrão, tomate, cebola, alho e queijo ralado. Já o chamado “macarrão instantâneo” é uma formulação contendo amido, óleos e gorduras que recebe adição de aromatizantes, corantes e estabilizantes para se parecer com a preparação culinária e até superá-la nas propriedades sensoriais que agradam o consumidor. Com uma paleta de ingredientes de baixo custo quase infinita, a indústria de ultraprocessados pode produzir alternativas irresistíveis para praticamente todos os alimentos e preparações culinárias. É uma mina de ouro.

O resultado não é o mesmo do alimento in natura?
Imagine que um componente usado na produção de carros é à base de aço ou alumínio. Se alguém descobre um tipo de plástico com as mesmas propriedades, mas mais barato, a indústria toda irá atrás. O carro ficará mais leve e econômico. Será mais barato para o consumidor e mais lucrativo para a indústria. Mas alimentos são diferentes de automóveis. Alimentos são ingeridos, absorvidos e metabolizados e se incorporam ao nosso organismo, que foi moldado para comer comida de verdade, que precisa ser mastigada, leva um tempo para gerar saciedade e tem certa densidade energética [concentração de calorias]. O projeto do nosso organismo é muito bom e até permite lidar com algumas mudanças. Mas há um limite. Os ultraprocessados vão além das condições de adaptação. Eles tentam imitar o alimento e confundem nosso organismo. Propriedades como gosto, aroma, sabor e cor, que usávamos para identificar os alimentos e sua composição nutricional, não têm o mesmo significado. Há uma incompatibilidade entre aparência e o conteúdo. A indústria sempre vai buscar maximizar seu lucro e, nesse sentido, a tecnologia do ultraprocessamento é imbatível. O problema é que, com ela, algo essencial para a saúde, o alimento, pode se tornar causador de doença.

O ultraprocessamento descaracteriza o alimento e o trata como matéria-prima que vai fornecer os ingredientes para a produção de um novo alimento

Essa estratégia nasce nos Estados Unidos e, depois, se universaliza. Como foi?
Esse modelo de negócio baseado na produção e comercialização de alimentos ultraprocessados entra em vigor para valer a partir dos anos 1980 com o crescimento das corporações transnacionais, permitido pela desregulação dos mercados nacionais e pela globalização da economia. Nesse cenário, as indústrias transnacionais de alimentos adquirem os ingredientes dos ultraprocessados nos locais onde eles têm menor preço, combinam esses ingredientes onde há mais vantagens fiscais e comercializam o produto final em todo o mundo, com campanhas unificadas de marketing. A globalização da economia viabilizou o modelo de negócio baseado na produção e comercialização de alimentos ultraprocessados, no qual as corporações prevalecem sobre os demais agentes econômicos.

Como isso tudo está ligado à epidemia de obesidade?
Por causa desse modelo de negócios, houve uma mudança brutal no perfil da oferta de alimentos e na forma como são propagandeados. Isso foi progressivo. Até o final dos anos 1980, a prevalência de obesidade era de cerca de 15% na população adulta dos Estados Unidos e aumentava lentamente. Depois passou a crescer mais aceleradamente até atingir os mais de 40% atuais. Antes não tinha ultraprocessado? Tinha, mas não na escala atual. A alimentação mudou tanto que possivelmente a capacidade de adaptação do organismo das pessoas se esgotou.

Em março, pesquisadores brasileiros publicaram um artigo de revisão na Nature Metabolism destacando fatores ambientais determinantes da obesidade. Como isso pode ajudar no combate ao problema?
Do ponto de vista individual, a obesidade é resultado da interação entre genes e ambiente. A pessoa tem características genéticas que a tornam mais ou menos propensa a ser obesa. Mas elas não são uma sentença. Vai depender do ambiente em que vive. Do ponto de vista populacional, de sociedade, precisa haver uma alteração muito grande no ambiente para levar nosso projeto de organismo, que é tão bem-feito, a fracassar. Como os autores do estudo salientam, várias mudanças ocorreram ao mesmo tempo favorecendo o desenvolvimento da obesidade.

Como seu grupo chegou à ideia, apresentada em 2009, de que o grau de processamento dos alimentos poderia contribuir para o ganho de peso?
No começo dos anos 2000, estávamos estudando a evolução temporal da desnutrição, que havia diminuído de forma impressionante no país, e observando o aumento do sobrepeso e da obesidade. Começamos a nos perguntar o que explicaria isso. Fomos, então, olhar o que estava mudando na alimentação das pessoas e analisamos os dados dos inquéritos de compra de alimentos, feitos pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] desde meados dos anos 1970. A primeira coisa que chamou a atenção foi a queda substancial na compra de ingredientes culinários, como sal, açúcar, e óleos, e na compra de arroz, feijão e mandioca. Essas reduções foram compensadas pela aquisição aumentada de um conjunto aparentemente heterogêneo de produtos, incluindo macarrão instantâneo, embutidos e refrigerantes. Em comum, eram produtos prontos para consumo. Ocorreu-nos que essas mudanças poderiam estar refletindo a substituição de padrões tradicionais de alimentação baseados em alimentos integrais e preparações culinárias por padrões baseados em produtos que exigem pouco ou nenhum preparo. Esses produtos prontos para consumo não eram alimentos modificados pelo processamento, mas formulações de substâncias resultantes do processamento de alimentos. Em 2009, em um comentário publicado na revista Public Health Nutrition, chamamos esse grupo de alimentos ultraprocessados.

Esse é o termo que vocês usam na classificação Nova, que separa os alimentos em quatro grupos: alimentos não ou minimamente processados, ingredientes culinários processados, alimentos processados e alimentos ultraprocessados.
Isso. Em 2009, apresentamos um embrião dessa classificação. Nela, havia apenas três grupos, sendo que o terceiro ainda não distinguia os processados dos ultraprocessados. Em 2012, o Ministério da Saúde nos pediu para revisar o Guia alimentar para a população brasileira, publicado em 2006. Nesse trabalho, separamos os alimentos prontos para o consumo que eram alimentos integrais modificados, como conservas, pães tradicionais e queijos, das formulações de substâncias derivadas de alimentos, como o macarrão instantâneo, os embutidos e os refrigerantes. Nasceu ali a classificação Nova com seus quatro grupos de alimentos, que orientou as recomendações do Guia alimentar para a população brasileira de 2014.

O que seus estudos já mostraram sobre o efeito dos ultraprocessados na saúde?
Nossa primeira investigação, realizada com dados de inquérito nacional sobre o consumo alimentar da população brasileira e publicada em 2015 na revista Preventive Medicine, mostrou que a ocorrência de obesidade era maior entre as pessoas que tinham uma dieta rica em ultraprocessados do que entre as que consumiam menos desses alimentos. Nos dois anos seguintes, foram publicados dois estudos no exterior, realizados em uma coorte de cerca de dez mil espanhóis acompanhados por 10 anos, sem a participação do nosso grupo, que demonstraram a associação prospectiva entre o consumo de ultraprocessados e o risco de desenvolver obesidade e hipertensão arterial. Entre 2018 e 2020, pesquisadores da Universidade de Paris-Sorbonne publicaram, em colaboração com nosso grupo, uma série de estudos longitudinais realizados com uma coorte de mais de cem mil franceses acompanhados por cerca de 10 anos. Esses estudos demonstraram uma associação prospectiva entre o consumo de ultraprocessados e o risco de desenvolver obesidade, diabetes, doença cardiovascular, câncer de mama e depressão. A partir daí, dezenas de estudos similares realizados nos Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Holanda, Coreia do Sul, China e Brasil confirmaram a associação entre o consumo de ultraprocessados e o risco de desenvolver doenças crônicas, inclusive renais, gastrointestinais e pulmonares.

Estudos já mostraram a associação entre o consumo de ultraprocessados e o risco de desenvolver obesidade, diabetes, doença cardiovascular, câncer e depressão

O mais recente artigo sobre ultraprocessados foi publicado em março na revista The BMJ, que analisou diversos outros estudos e encontrou uma associação entre o consumo de ultraprocessados e 32 problemas de saúde, em especial aumento de mortalidade e de problemas cardíacos, metabólicos e de saúde mental.
Esse trabalho é uma revisão guarda-chuva, que faz uma síntese do que foi visto em várias outras revisões que usaram procedimentos de meta-análise. No caso, foram 45 as meta-análises revisadas. Essa revisão guarda-chuva de meta-análises é o padrão-ouro dos estudos observacionais, aqueles nos quais os pesquisadores não intervêm na população estudada. Algo importante é que esse estudo fez uma classificação da qualidade da evidência demonstrada em cada meta-análise. Evidência de associação convincente ou altamente sugestiva foi demonstrada para doenças como diabetes, obesidade e mortalidade prematura por todas as causas. Evidência menos forte foi demonstrada para outros problemas de saúde. Nenhuma das 45 meta-análises mostrou que os ultraprocessados protegem de doenças.

Quanto esses estudos contribuem para ver o impacto dos ultraprocessados sobre a saúde?
Essas pesquisas são essenciais. Foi por meio de estudos observacionais, de associação prospectiva, que se descobriu que o tabaco causava câncer de pulmão. Eles permitem acompanhar um número muito grande de pessoas, representativo da população, nas condições em que elas habitualmente vivem. Um único estudo de associação não é suficiente para demonstrar que determinado fator causa certa doença. Mas, quando vários estudos, realizados em vários países por diferentes pesquisadores, confirmam a associação, a probabilidade de que esse fator seja uma causa real da doença aumenta. Essa probabilidade se torna ainda maior quando outros estudos indicam mecanismos plausíveis de explicar por que a exposição a certo fator aumenta o risco da doença. Vários estudos indicam mecanismos plausíveis para o dano à saúde causado pelo consumo de ultraprocessados, entre eles o perfil nutricional desbalanceado desses alimentos, sua alta densidade energética, sua menor capacidade de saciar o apetite, sua influência negativa sobre o microbioma intestinal, entre outros. Idealmente, os resultados dos estudos observacionais deveriam ser confirmados por ensaios clínicos nos quais o pesquisador determina, por sorteio, quem vai pertencer ao grupo de alto ou de baixo consumo de ultraprocessados. Problemas logísticos e éticos, porém, tornam mais complexa a realização de ensaios clínicos sobre alimentação e doenças crônicas. É pouco factível manter pessoas consumindo uma determinada dieta pelo tempo necessário para se observar o aparecimento de uma doença crônica. Essa prática, aliás, é eticamente condenável quando se sabe que a dieta é potencialmente danosa para a saúde.

Até hoje houve apenas um ensaio clínico com ultraprocessados, o do grupo de Kevin Hall, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.
Sim. Ele foi realizado com 20 participantes adultos internados em um hospital. Por duas semanas, metade dos participantes recebeu uma dieta com 80% de ultraprocessados e a outra metade recebeu uma dieta isenta de ultraprocessados. Nas duas semanas seguintes, o tratamento se inverteu. O experimento mostrou que, durante a dieta ultraprocessada, os participantes consumiram cerca de 500 quilocalorias a mais por dia do que quando receberam a dieta não ultraprocessada. Esse excesso de calorias representa cerca de um terço do total diário que um adulto deve ingerir. Nas duas semanas de dieta ultraprocessada, os participantes ganharam cerca de 1 quilo, nas duas semanas de dieta sem ultraprocessados perderam 1 quilo. Esse ensaio confirmou a associação encontrada pelos estudos observacionais. Também indicou um mecanismo: no caso, o consumo excessivo de calorias. Ensaios clínicos semelhantes vêm sendo realizados em outros países.

Seu grupo acompanha milhares de brasileiros no estudo NutriNet Brasil, a fim de observar como a dieta influencia a saúde. O que se viu?
Cerca de 30 mil pessoas já foram acompanhadas por quatro anos. Há jovens, velhos, brancos, negros, ricos, pobres. Criamos um score para ver quanto de ultraprocessados as pessoas comem e em quantos dias da semana e outro, um score do bem, para avaliar quanto consomem de arroz, feijão, frutas, hortaliças, carnes etc. Em um dos estudos mostramos que quem consome mais de cinco ultraprocessados por dia corre mais risco de estar com excesso de peso. Outro estudo associou o consumo a risco maior de hipertensão. Esses dois estudos indicam que o efeito protetor da alimentação saudável se perde em parte quando a pessoa continua a consumir ultraprocessados. Um terceiro trabalho indicou um aumento de 40% no risco de desenvolver hipertensão.

Como mudou o consumo de ultraprocessados na última década?
No mundo, vem aumentando. Quando se analisam as vendas, em todo lugar cresce. Na China, é assustador. O consumo representava 1,5% das calorias diárias 15 anos atrás e hoje é 5%. Na América Latina, também está subindo. No Brasil, em particular, vemos um aumento mais lento do que antes. Aqui, 20% da população consome ultraprocessados.

O que fazer para reduzir o consumo?
No início de março, o governo federal aprovou a nova lista de produtos que comporão a cesta básica. Só tem alimentos minimamente processados e ingredientes culinários. Esses alimentos devem integrar uma lista que o Ministério da Saúde está preparando e propõe que seja isenta de impostos. Isso ainda deve ser discutido na Casa Civil antes de ser enviado para análise do Congresso.

Hoje o ultraprocessado é mais barato do que os outros alimentos no Brasil?
Depende da categoria. Está se tornando mais barato. No conjunto, os ultraprocessados ainda são mais caros. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde já ganharam escala, para conseguir mudar qualquer coisa, seria preciso ter um subsídio enorme para os alimentos in natura ou minimamente processados. Aqui, a reforma tributária pode ajudar a baratear. Outras ações são restringir a publicidade dos ultraprocessados, apoiar o sistema alimentar tradicional e a agricultura familiar, que fornece alimentos para as escolas públicas.

Em qual situação o consumo de ultraprocessados é justificável?
Em dois casos. O uso de fórmulas infantis para alimentar crianças de até 6 meses, quando a mãe não pode ou não consegue amamentar, e a alimentação parenteral para pessoas que fizeram cirurgia. Essa é uma das diferenças com relação ao tabaco, porque não existe situação em que é recomendado fumar.

Monteiro, criador da classificação de alimentos Nova, na escadaria da Faculdade de Saúde Pública da USP. Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

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