O bolsonarismo pode voltar ao poder? Por Valerio Arcary

O lulismo, ou lealdade política à experiência dos governos liderados pelo PT, permitiu conquistar o apoio entre os muito pobres. Mas a esquerda, embora mantenha posições, perdeu a hegemonia sobre sua base social de massas original.

A Terra é Redonda

“Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas. Duas meias verdades não perfazem uma verdade
(Eduard Douwes Dekker, Ideias).

O bolsonarismo pode voltar ao poder em 2026? Sim, pode. Devemos considerar a existência de poderosos fatores objetivos e subjetivos para explicar a resiliência da extrema direita, mesmo depois da derrota da semi-insurreição de janeiro de 2023.

Mas, em primeiro lugar, é lúcido reconhecer o contexto internacional do fenômeno, no qual a extrema direita cumpre um papel instrumental: (a) a turbulência no sistema de Estados com o fortalecimento da China e a estratégia do imperialismo norte-americano de preservação da supremacia da Troika, para a qual uma orientação protecionista mais dura é útil; (b) as disputas provocadas pela emergência da crise ambiental e transição energética que deixam em desvantagem temporária quem fizer a descarbonização mais rápida.

(c) O giro de frações burguesas para a defesa de regimes autoritários que enfrentem o protesto popular e abracem um linha nacional-imperialista; (d) a tendência à estagnação econômica e o empobrecimento e deslocamento à direita das camadas médias; (e) a assombrosa crise da esquerda, entre outros.

Mas há peculiaridades brasileiras na fragmentação política do país. Elas são, essencialmente, cinco: (i) a hegemonia entre militares e policiais; (ii) a gravitação da imensa maioria do evangelismo pentecostal em torno da extrema-direita; (iii) o peso do bolsonarismo nas regiões mais desenvolvidas, o Sudeste e o Sul do país, em especial entre a nova classe média proprietária, ou de altíssima escolaridade que cumpre funções executivas no setor privado e público; (iv) a liderança da corrente neofascista dentro da extrema-direita; (v) a audiência da extrema direita entre as camadas médias assalariadas entre três e cinco, ou até sete salários-mínimos.

As quatro primeiras singularidades têm sido muito investigadas, mas a última, menos. Estudá-la é estratégico, porque pode ser a única possível de reverter, no contexto de uma situação muito desfavorável de relações sociais de forças ainda reacionária.

Há fatores objetivos que explicam o afastamento, divisão ou separação política entre parcelas da classe trabalhadora e os muito pobres, como a inflação da educação privada e dos planos de saúde, e o aumento do Imposto de Renda, que são ameaças a um modelo de consumo e padrão de vida, e subjetivos, como o ressentimento social e o rancor moral-ideológico. Os dois estão entrelaçados e, talvez, até indivisíveis.

Mas não foi assim quando, há quarenta e cinco anos atrás, se abriu a fase final da luta contra a ditadura. O PT nasceu apoiado nos metalúrgicos, professores públicos, petroleiros, bancários e outras categorias que, comparativamente, à realidade das massas populares, tinham mais escolaridade e melhores salários. O lulismo, ou lealdade política à experiência dos governos liderados pelo PT, permitiu conquistar o apoio entre os muito pobres. Mas a esquerda, embora mantenha posições, perdeu a hegemonia sobre sua base social de massas original. Esta trágica realidade, porque se trata da fratura da classe trabalhadora, nos impõe uma análise em perspectiva histórica.

O período do pós-guerra (1945/1981) de crescimento intenso, em que se duplicava o PIB a cada década, e que favoreceu a mobilidade social absoluta no Brasil, acompanhando a urbanização acelerada, parece ter ficado, irremediavelmente, no passado. Pleno emprego e elevação da escolaridade, em um país em que a metade da força de trabalho era iletrada, foram os dois fatores chaves para a melhoria de vida deste estrato de trabalhadores. Mas eles não pressionam mais como no passado.

É evidente que, na última década, o capitalismo brasileiro perdeu impulso. Regrediu 7% do PIB entre 2015/17 e, depois da pandemia de covid entre 2020/21, demorou três anos para voltar aos níveis de 2019. A despeito de todas as contrarreformas antissociais – trabalhista, previdenciária – que tiveram como objetivo reduzir os custos de produção a taxa de investimento não foi além de 18% do PIB em 2023, apesar da autorização da PEC de transição de furar o Teto de Gastos Públicos.

O Brasil, o maior parque industrial e maior mercado de consumo de bens duráveis na periferia, passou a ser uma nação de crescimento lento. O aumento da escolaridade deixou de ser, também, um fator de impulso tão poderoso. Melhorar de vida passou a ser muito mais difícil.

O Brasil de 2024 é um país menos pobre do que foi no século XX, mas não menos injusto. Ainda há, evidentemente, muita miséria: duas dezenas de milhões ou até mais oscilam na insegurança alimentar, apesar do Bolsa Família, em função do ciclo econômico. Mas ocorreu uma redução da extrema pobreza sem que a desigualdade social tenha diminuído, qualitativamente.

A distribuição funcional da renda entre capital e trabalho conheceu variações na margem. A distribuição pessoal da renda melhorou entre 2003 e 2014, mas voltou a aumentar desde 2015/16, na sequência do golpe institucional contra o governo Dilma Rousseff. A pobreza extrema diminuiu, mas a metade da população, economicamente, ativa tem uma renda que não vai além de dois salários mínimos. Um terço dos assalariados ganha entre três e cinco salários mínimos. A iniquidade permaneceu quase intacta porque, entre outras razões, o lugar das camadas médias assalariadas com nível de instrução mais elevada conheceu uma estagnação com viés de queda.

Inúmeros estudos confirmam que o aumento da escolaridade média não mantém relação com a empregabilidade, e as pesquisas do IBGE confirmam, paradoxalmente, que o desemprego é maior na medida em que aumenta a escolaridade. A maior parte das milhões de carteiras assinadas, desde o fim da pandemia, foi de empregos de até dois salários mínimos, com muito reduzidas exigências de formação escolar.

Consideram-se duas taxas de mobilidade, a absoluta e a relativa, para avaliar a maior ou menor coesão social em um país. A taxa absoluta compara a ocupação do pai e a do filho, ou a primeira atividade de cada um com o último emprego de cada um. A taxa de mobilidade relativa confere em que medida os obstáculos de acesso a posições de emprego – ou oportunidades de estudo – que favorecem a ascensão social, puderam ou não ser superados pelos que estavam em posição social inferior.

No Brasil, tanto a taxa absoluta quanto a relativa foram positivas até à década dos anos 1980, mas a primeira foi mais intensa que a segunda. Em outras palavras, conhecemos uma intensa mobilidade social no pós-guerra devido à pressão da urbanização e das migrações internas, do Nordeste para o Sudeste, e do Sul para o Centro-oeste. Mas deixou de ser assim. Esta etapa histórica se encerrou a partir dos anos noventa, quando o fluxo que vinha do mundo agrário se esgotou.

Desde então diminuiu a miséria, mas os trabalhadores das camadas médias experimentaram uma realidade mais hostil. O que explica esse processo é que as trajetórias de mobilidade social nos últimos vinte anos beneficiaram milhões de pessoas que viviam na pobreza-extrema, mas muito poucos ascenderam de forma significativa. Muitos melhoraram de vida, mas subiram, somente, para o degrau imediatamente acima ao que seus pais ocupavam.

A mobilidade social relativa permaneceu muito baixa, porque os incentivos materiais ao aumento da escolaridade foram, nos últimos quarenta anos, menores do que tinham sido para a geração que chegou à vida adulta nas décadas de cinquenta ou sessenta. A recompensa das famílias por manter seus filhos sem trabalhar por pelo menos doze anos, até à conclusão do ensino médio, comparativamente, à geração anterior, diminuiu, apesar do acesso mais fácil.

Um país pode partir de uma situação de grande desigualdade social, mas se a mobilidade social for intensa, a desigualdade social deveria se reduzir, aumentando a coesão social, como aconteceu na Itália do pós-guerra. Inversamente, um país que, comparativamente, aos vizinhos que ocupam um lugar semelhante no mundo, tinha baixa desigualdade social pode ver a situação se deteriorar, se a mobilidade social passar a ser regressiva, como se evidencia hoje na França.

No Brasil, contrariando o senso comum sobre o tema, a maioria dos novos empregos dos últimos dez anos não beneficiou a parcela mais instruída do povo. Estudar mais não diminuiu o perigo do desemprego. A escolaridade média subiu, nos últimos quarenta e cinco anos que nos separam de 1979, de três para mais de oito anos. Mas aconteceram duas transformações que tiveram um impacto duradouro na consciência da juventude da classe trabalhadora.

A primeira é que o capitalismo brasileiro deixou de ser uma sociedade de pleno emprego, como tinha sido durante meio século. A segunda é que, mesmo com os sacrifícios das famílias para manter os filhos estudando, adiando a entrada no mercado de trabalho, a empregabilidade se concentrou em atividades que exigem pouca escolaridade, e oferecem baixos salários. Pela primeira vez na história, os filhos perderam a esperança de poder viver melhor do que os pais.

O desemprego entre aqueles com escolaridade de nível superior é, proporcionalmente, maior que o daqueles com baixa escolaridade e, se a desigualdade pessoal de renda diminuiu nos últimos quinze anos, é porque o salário médio de integração no mercado de trabalho dos que têm média e alta escolaridade veio diminuindo. Não surpreende, portanto, a vertiginosa expansão da uberização. As pesquisas mensais de emprego do IBGE na região metropolitana de São Paulo indicam uma evolução muito lenta e próxima somente, quando muito, da recuperação da inflação.

Quase quarenta anos depois do fim da ditadura militar, o balanço econômico-social do regime de democracia liberal revela-se desanimador. As reformas realizadas pelo regime, como a ampliação de acesso ao ensino público, implantação do SUS, do Bolsa-Família para a extrema-pobreza, entre outros, foram progressivos, mas insuficientes para reduzir a desigualdade social.[i] A hipótese de que uma população mais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país, impulsionando um ciclo sustentável de crescimento econômico e distribuição de renda não se confirmou.

Uma forma de ilusão gradualista na perspectiva de justiça social nos limites do capitalismo foi a esperança de que uma população mais instruída mudaria, gradualmente, a realidade social do país. O que nos remete aos limites dos governos de coalizão liderados pelo PT, que apostaram na concertação com a classe dominante para uma regulação do capitalismo “selvagem”. Embora existam correlações, na longa duração, entre escolaridade e crescimento econômico, não se identificaram causalidades diretas que sejam incontestáveis, menos ainda se incluímos a variável da redução da desigualdade social, como confirma a Coreia do Sul.

O que é incontroverso é que a burguesia brasileira se uniu em 2016 para derrubar o governo Dilma Rousseff, apesar da moderação das reformas realizadas. Não deveria nos surpreender que a classe dominante não tenha tido pudores de ir até à manipulação do impeachment, subvertendo as regras do regime para tomar o poder para os seus representantes diretos, como Michel Temer. O desafio é explicar porque a classe trabalhadora não teve disposição de luta para defendê-la.

Os salários respondiam por mais da metade da riqueza nacional no início da década de noventa e, no intervalo dos últimos trinta anos, caíram para pouco mais de 40% em 1999 e, apesar da recuperação entre 2004 e 2010, ainda estão hoje, em 2024, aquém do patamar de 50% de 2014. Esta variável é significativa para uma avaliação da evolução da desigualdade social, porque o Brasil de 2024 é uma sociedade que já completou a transição histórica do mundo rural para o mundo urbano (86% da população vive em cidades), e a maioria dos que trabalham com contratos, 38 milhões com carteira e 13 milhões de funcionários públicos, recebem salários.

Outros dez milhões têm patrão, mas não têm contratos. É verdade que ainda existem 25 milhões de brasileiros que vivem do trabalho por conta própria, mas são menos, proporcionalmente, que no passado.[ii] Em resumo: não melhorou a distribuição funcional da renda entre capital e trabalho. A burguesia não tem porque se queixar do regime-liberal. Ainda assim uma fração burguesa, como o agronegócio e outros apoia o neofascismo e sua estratégia autoritária.

Os dados que indicam que, dentro do universo dos assalariados, diminuiu a desigualdade social são convincentes. Mas não porque diminuiu a injustiça, embora a miséria tenha sido reduzida. Este processo ocorreu porque se verificaram duas tendências opostas no mercado de trabalho. Uma delas é, relativamente, nova, e a outra é mais antiga. A primeira foi uma elevação dos pisos salariais dos setores menos qualificados e menos organizados. O salário mínimo veio se elevando acima da desvalorização de forma lenta, porém, contínua desde 1994 com a introdução do real, acelerado nos anos dos governos Lula e Dilma Rousseff.

Este fenômeno foi novo, porque nos quinze anos anteriores tinha acontecido o inverso. O salário mínimo é uma variável econômica chave porque ele é o piso da remuneração das aposentadorias do INSS, por isso a burguesia exige a desvinculação. A recuperação econômica favorecida pelo ciclo mundial de aumento da demanda de commodities permitiu, a partir do segundo semestre de 2005, uma diminuição do desemprego que culminou em 2014 em situação de quase pleno emprego.

A massificação da distribuição do Bolsa-família parece ter exercido, também, uma pressão sobre a remuneração do trabalho manual, sobretudo, nas regiões menos industrializadas. A segunda tendência foi a permanência da queda nas remunerações dos trabalhos com exigência de escolaridade média e superior, um processo que vinha desde os anos oitenta. Em conclusão: os dados disponíveis parecem indicar que o aumento da escolaridade deixou de ser um fator de ascensão social importante, como foi no passado.

A lealdade política das massas populares ao lulismo é expressão do primeiro fenômeno. A vida dos mais pobres melhorou nos anos dos governos liderados pelo PT. A divisão entre os assalariados que ganham acima de dois salários-mínimos expressa um ressentimento social que foi manipulado pelo bolsonarismo. Se a esquerda não reconquistar confiança nesta parcela dos trabalhadores o perigo para 2026 é grande.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]

Notas


[i] A desigualdade social é uma variável que procura medir a disparidade de condições econômico-sociais. O Radar Social, estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) confirma que 1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda equivalente a da parcela formada pelos 50% mais pobres. A autodeclaração tem margens de erro significativas, se os dados não forem cruzados com outras fontes como o IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) e o IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica). Esta incerteza sempre foi grande para se avaliar a desigualdade no Brasil. Conferir em: https://www.ibge.gov.br/

[ii] Outra dimensão do estudo da transição de uma sociedade predominantemente rural é a avaliação da demografia brasileira. Estamos no auge da transição demográfica. A população com mais de 60 ainda é de 15%, inferior aos países centrais em que atinge 20% ou até 25%, mas as crianças e jovens, que eram 50% caíram para pouco mais 20%. Em 1970 a mulher brasileira tinha, em média, 5,8 filhos. Trinta anos depois, esta média era de 2,3 filhos. Em 2016, era de 1,8 e caiu desde então para 1,5. A curva demográfica é, ao mesmo tempo, fascinante e inquietante: todos os anos, mais ou menos dois milhões de jovens procuram o primeiro emprego. Isso mostra o dinamismo da expansão da força de trabalho disponível, e a necessidade de altas taxas de crescimento do PIB para reduzir o desemprego. A dimensão desse crescimento da PEA pode ser avaliada, plenamente, se compararmos os dados do Brasil com os da França: a ampliação da população ativa passou de 20 a 26 milhões no espaço de 40 anos, de 1950 a 1990, ou seja, cresceu 30%, enquanto no Brasil duplicou em 30 anos.

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