O descontrole na urbanização das áreas úmidas do RS construiu a maior catástrofe climática do nosso tempo. Entrevista especial com Nina Moura

A tragédia da ocupação das áreas úmidas no Rio Grande do Sul ficou mais evidente após o Estado passar por sua maior catástrofe ambiental

Por: Patricia Fachin | Edição: Cristina Guerini, em IHU

Os números das enchentes no RS, em que todos os recordes de inundações, municípios afetados e pessoas atingidas foram ultrapassados, são explicados por diferentes fatores, mas seu principal vetor é, segundo os cientistas, o novo regime climático. Entre as outras causas que levaram ao colapso de muitas cidades está a ocupação urbana das áreas úmidas, como destaca Nina Simone Vilaverde Moura, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Segundo a pesquisadora, os “espaços urbanos assentados sobre áreas úmidas têm intensificado o escoamento e acúmulo de água devido às alterações antrópicas, como a impermeabilização do solo, retificação e assoreamento de cursos d’água. Este modelo de urbanização, com a ocupação das planícies de inundação e impermeabilizações ao longo das vertentes e dos fundos de vale, mesmo em cidades de topografia relativamente plana, onde, teoricamente, a infiltração seria favorecida, podemos observar que os resultados têm sido catastróficos”, ressalta.

Nina Simone frisa que os projetos de apropriação privada do espaço urbano são antigos em Porto Alegre. “Desde 1956 a orla do Guaíba, localizada entre os Pontais da Cadeia e do Melo, vem sendo aterrada, com o objetivo de expansão da área urbana e prevenção de enchentes”, explica.

Na década de 1980, o projeto de urbanização da Orla do Guaíba tomou nova forma a partir do Projeto Praia do Guaíba, que visava a criação de “um plano de viabilidade urbanístico […] para a construção de shopping center, hotel de luxo, centro de convenções, escola de marketing, passarela de eventos culturais, edifícios comerciais, além de vias, viadutos e pontes”, enfatiza a professora do Departamento de Geografia Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Contudo, ao mesmo tempo já soava o alerta dos pesquisadores acerca das consequências da execução desse projeto urbanístico. O trabalho de “Suertegaray, Nunes e Moura (1988), publicado no Boletim Gaúcho de Geografia, da Associação dos Geógrafos Brasileiros”, destacou, diz que “os aterros pela sua topografia plana e extensão dificultam o escoamento das águas pluviais proveniente dos arroios que fluem das colinas e morros em direção ao arroio Dilúvio e ao Guaíba”, diz Nina Simone. “Ainda com relação às implicações ambientais do projeto, o estudo ressaltou que a área de aterro prevista para a implantação do Projeto Praia do Guaíba através da construção de prédios tenderia a compactação e posterior impermeabilização do solo, acarretando numa menor infiltração da área, causando maior escoamento de águas pluviais. Sabendo-se da precariedade do sistema, o alagamento na área tenderia a aumentar”, complementa a pesquisadora.

No fim, ao explicar a importância da Geomorfologia “no planejamento e ordenamento urbano e territorial” para evitar novos desastres, a entrevistada aponta “as soluções baseadas na natureza” para adaptação ao antropoceno. Entre as sugestões, estão “a restauração das áreas de captação de água e a ampliação de espaços verdes”, tido como “essenciais para a adaptação às mudanças climáticas nas cidades”.

Nina Simone Vilaverde Moura é licenciada e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em Geografia Física pela mesma instituição (2001). Realizou estágio pós-doutoral na Michigan State University (2014-2015) e coordenou a criação e a comissão de graduação do Curso de Licenciatura em Ciências da Natureza para os Anos Finais do Ensino Fundamental na modalidade EaD da UFRGS (2015-2019). Leciona no Departamento de Geografia e é professora do PPG em Geografia da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU – Em artigo publicado em 1988, a senhora e outros geógrafos informavam que desde 1956 a orla do Guaíba vem sendo aterrada. Quais razões justificaram o aterramento e que consequências são observáveis ao longo das décadas?

Nina Simone Vilaverde Moura – Desde 1956 a orla do Guaíba, localizada entre os Pontais da Cadeia e do Melo, vem sendo aterrada, com o objetivo de expansão da área urbana e prevenção de enchentes. Através do Convênio entre a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, o Estado do Rio Grande do Sul e o extinto DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), firmado em 28 de abril de 1973, previu-se a expansão do aterro da Praia de Belas. A área aterrada desde então totalizava 229ha, e estende-se desde a Ponta da Cadeia à Ponta do Melo. Esta área, através do Plano Diretor à época, estava destinada ao lazer público e abrigava, desde 1976, quando foi inaugurado, o Parque Marinha do Brasil com a extensão de 74ha e o Parque Harmonia (65ha), inaugurado posteriormente.

A construção do aterro teve como consequência a diminuição do espaço ocupado pelas águas do Guaíba. Assim, para manter a regularidade da vazão, houve a necessidade de aprofundamento e constante manutenção do talvegue através da dragagem. Sua manutenção e retenção das águas em épocas de cheias deve-se à construção de diques, à instalação de coletoras e a casas de bombas com o objetivo de coletar as águas que escoam de montante e lançá-las ao Guaíba.

IHU – Neste mesmo artigo, vocês se manifestaram tecnicamente contrários ao projeto “Praia do Guaíba” por causa das implicações ambientais do projeto. Pode explicar em que consistia esta proposta à época, quais eram as implicações ambientais apontadas e como a crítica ao projeto foi recebida pelo poder público?

Nina Simone Vilaverde Moura – Em 1987, o prefeito de Porto Alegre contratou uma empresa de arquitetura para desenvolver um plano de viabilidade urbanístico, objetivando “urbanizar” a orla do Guaíba, denominado Projeto Praia do Guaíba. Tal projeto previa a construção, numa faixa de 6km entre os dois pontais anteriormente descritos, para a construção de shopping center, hotel de luxo, centro de convenções, escola de marketing, passarela de eventos culturais, edifícios comerciais, além de vias, viadutos e pontes.

Na época, grupos de pesquisadores e professores questionaram uma série de questões relativas às implicações ambientais no Projeto Praia do Guaíba. Entre os questionamentos estavam aqueles relativos às alterações na dinâmica geomorfológica-geográfica e o aumento da inundação, publicado em um artigo de Suertegaray, Nunes e Moura em 1988 no Boletim Gaúcho de Geografia, da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), de Porto Alegre. Nesse trabalho, foi destacado que os aterros pela sua topografia plana e extensão dificultam o escoamento das águas pluviais proveniente dos arroios que fluem das colinas e morros em direção ao arroio Dilúvio e ao Guaíba. Além disso, salientou que o alagamento das áreas baixas se tornam mais acentuados devido, além dessa baixa declividade, ao grande acúmulo de detritos e entulho que atingem os bueiros receptores de águas do escoamento superficial.

Este fato bastante agravante em toda Porto Alegre, apresenta de forma mais delicada, exatamente na área a retaguarda do aterro, onde situam-se os bairros Menino Deus e Cidade Baixa, pois são as áreas críticas em alagamentos, segundo relatório do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais) de Porto Alegre em 1987. Ainda com relação às implicações ambientais do projeto, o estudo ressaltou que a área de aterro prevista para a implantação do Projeto Praia do Guaíba através da construção de prédios tenderia a compactação e posterior impermeabilização do solo, acarretando numa menor infiltração da área, causando maior escoamento de águas pluviais. Sabendo-se da precariedade do sistema, o alagamento na área tenderia a aumentar.

IHU – Em que outras áreas de Porto Alegre e da região metropolitana houve uma apropriação inadequada do relevo, ocasionando impactos ambientais e desastres? Pode nos dar alguns exemplos? A mudança climática exige que tipo de reconfiguração urbana das cidades?

Nina Simone Vilaverde Moura – O município de Porto Alegre está localizado numa região de contato entre compartimentos de relevo do estado do Rio Grande do Sul, sendo eles o Planalto Uruguaio Sul-riograndense, constituído por rochas cristalinas e caracterizado por um relevo mais elevado e, as formações de origem sedimentar, referentes à Planície Costeira e ao aporte de sedimentos da Depressão Periférica, constituídos por um relevo mais plano e baixo. Inseridos nessas unidades foram identificados os seguintes padrões de relevo: padrão em morros; em colinas; em terraços; em planícies e em áreas planas de origem antropogênica (aterros). As áreas mais elevadas e com maiores declividades correspondem ao padrão de morros localizado na parte central do município numa faixa de sentido nordeste sudoeste. As áreas mais planas e com menores altitudes correspondem ao padrão de planícies e/ou áreas úmidas localizadas ao sul e ao norte do município (bairros Sarandi e Humaitá). As áreas de aterros se estendem ao longo da orla do Guaíba.

Em condições naturais, as áreas úmidas (banhados, planícies, deltas, lagos, lagoas e fundos de vales) apresentam lento escoamento superficial das águas das chuvas, pois servem como “esponjas” que absorvem, retardam o escoamento das águas e armazenam para épocas de seca. No entanto, espaços urbanos assentados sobre áreas úmidas têm intensificado o escoamento e acúmulo de água devido às alterações antrópicas, como a impermeabilização do solo, retificação e assoreamento de cursos d’água. Este modelo de urbanização, com a ocupação das planícies de inundação e impermeabilizações ao longo das vertentes e dos fundos de vale, mesmo em cidades de topografia relativamente plana, onde, teoricamente, a infiltração seria favorecida, podemos observar que os resultados têm sido catastróficos.

Nesse cenário, temos um conjunto de áreas úmidas identificadas como banhados, planícies e deltas com ocupação urbana nos municípios mais atingidos da Região Metropolitana de Porto Alegre com São Leopoldo, Novo Hamburgo, Gravataí, Cachoeirinha, Canoas, Eldorado, Guaíba e a própria capital do Estado. Destacam-se o município de Eldorado e o bairro “planejado” Mathias Velho em Canoas, ambos totalmente localizados em áreas de banhado e planície de inundação.

Tais áreas foram agora severamente modificadas pelas inundações de maio de 2024, em decorrência do grande aporte de sedimentos, misturados a rochas e a vegetação deslocadas das encostas e que estão sendo depositados nas áreas úmidas de topografia essencialmente planas e baixas. As áreas urbanas suscetíveis à inundação devem ser rigorosamente evitadas devido à alta probabilidade de ocorrência de outros eventos de precipitação extrema. Nessas áreas sujeitas à inundação é fundamental que haja medidas técnicas-científicas para gestão e planejamento urbano e ambiental adequados à esta nova realidade imposta pela crise climática e que, portanto, impeça a ocupação em áreas de risco e que possa oferecer à população atingida, direta ou indiretamente, condições de moradia digna e socialmente justa.

IHU – Quais são hoje os projetos em curso em Porto Alegre que apresentam riscos socioambientais?

Nina Simone Vilaverde Moura – A dinâmica atual do espaço urbano de Porto Alegre apresenta dois vetores principais de crescimento: adensamento e verticalização nos bairros já consolidados das zonas leste e norte, enquanto na zona sul se destaca a expansão horizontal periurbana onde ainda predomina a paisagem natural. Na última década, os empreendimentos imobiliários lançados na zona sul para os extratos de média alta renda procuram vincular as amenidades naturais existentes (pôr do sol, vegetação, fauna, cursos d’água) às amenidades produzidas nos loteamentos e condomínios horizontais (segurança, conforto, equipamentos de lazer e recreação). Com isso, observa-se que o crescimento urbano vem se expandindo sobre essa área, passando a incorporar padrões diferenciados de uso do solo, transitando de uma área caracterizada pela predominância de patrimônio natural que propicia atividades de lazer e turismo, uso residencial rarefeito e atividades vinculadas ao setor primário (chácaras, sítios, haras) para uma área de ocupação mais densa, destacando-se o setor de serviços e de uso residencial nas tipologias de condomínios horizontais e loteamentos, além de vazios urbanos para fins especulativos.

Nesse sentido, a bacia hidrográfica do Arroio do Salso, localizada na zona sul de Porto Alegre é a única que ainda apresenta predomínio de áreas não urbanizadas. Na bacia hidrográfica do Arroio do Salso estão inseridos, total ou parcialmente, 11 bairros do município de Porto Alegre, que são: Lomba do Pinheiro, Restinga, Hípica, Serraria, Ponta Grossa, Belém Velho, Cascata, Chapéu do Sol, Guarujá, Lageado e Campo Novo. Também fazem parte da bacia, as localidades de Aberta dos Morros e a vertente norte do Morro São Pedro. Dentre as grandes aglomerações destacam-se os bairros Restinga e Lomba do Pinheiro.

Em estudo realizado por Moura e Dias (2010), foram mapeadas as áreas suscetíveis à inundação na bacia hidrográfica do Arroio do Salso, basicamente sobre as áreas de planícies ou formas de relevo cujos processos deposicionais são predominantes na sua formação. A suscetibilidade aos processos de inundação foi classificada em área de baixa, média, alta e muito alta suscetibilidade à inundação. As áreas com muito alta suscetibilidade à inundação são aquelas que apresentam as menores altitudes (menores de 5m) associadas com as declividades mais baixas e estão representadas por grande extensão de terras ao longo do trecho inferior do Arroio do Salso, próximo ao Guaíba, contribuindo para um escoamento superficial de baixa velocidade.

Com isso, pode-se afirmar que muitas áreas inundáveis das planícies do Arroio do Salso e de seus afluentes ainda se encontram pouco ocupadas, ao contrário do que acontece em outras bacias hidrográficas do município, por exemplo, a bacia hidrográfica do arroio Dilúvio. Esse fato é fundamental já que permite a adoção de medidas de proteção “não estruturais” para essa bacia, isto é, a aplicação de medidas preventivas às áreas sujeitas a inundações e à contaminação dos recursos hídricos, entre outras.

Sobre esses aspectos, caberia um estudo mais aprofundado; salientei não um projeto, mas a tendência de crescimento urbano para zona Sul, extremamente suscetível à inundação, e a importância de conservação e cuidados.

IHU – Em um artigo, a senhora diz que “a identificação das formas de relevo tecnogênicas é um dos principais subsídios para a mitigação dos riscos hidrogeomorfológicos, para a sustentabilidade das cidades e para a melhoria da qualidade de vida urbana”, em um contexto de mudanças climáticas. Pode explicar em que consistem essas formas de relevo e suas implicações?

Nina Simone Vilaverde Moura – A Geomorfologia é a ciência que tem o relevo e a sua dinâmica como objeto de estudo. O relevo se apresenta para o ser humano como o suporte físico para a apropriação, ocupação e produção do espaço geográfico. É sobre o relevo que as cidades e a agricultura se desenvolvem, impondo limitações para o desenvolvimento da urbanização e da produção de determinadas culturas. Nesse sentido, a compreensão do relevo é de suma importância no planejamento e ordenamento urbano e territorial, pois a apropriação inadequada do relevo pode ocasionar inúmeros impactos ambientais e até mesmo desastres, como a erosão acelerada, os deslizamentos, as enxurradas, as enchentes e as inundações. A Geomorfologia Antropogênica entende o ser humano enquanto um agente geomorfológico que é capaz de criar, induzir, acelerar ou atenuar os processos geomorfológicos que, por sua vez, originam formas de relevo e depósitos denominados de relevo tecnogênico.

Nesse sentido, o fator antrópico sobre o relevo é o tema central das pesquisas nessas temáticas. As soluções baseadas na natureza como a restauração das áreas de captação de água e a ampliação de espaços verdes são essenciais para a adaptação às mudanças climáticas nas cidades. Portanto, a identificação das formas de relevo tecnogênicas se torna um dos principais subsídios para a mitigação dos riscos hidrogeomorfológicos, para a sustentabilidade das cidades e para a melhoria da qualidade de vida urbana, pois estas pesquisas identificam não somente as áreas que mais foram modificadas pela ação humana, mas também as áreas com maior suscetibilidade natural aos processos geomorfológicos.

Referências

MOURA, N. S. V.; DIAS, T. S. Estudo sobre a suscetibilidade à inundação no setor sul do município de Porto Alegre-RS: bacia hidrográfica do Arroio do Salso. Simpósio Nacional de Geomorfologia, Recife, 2010 p. 12-16.

SUERTEGARAY, D. M. A.; NUNES, J. O. R.; MOURA, N. S. V. Implicações ambientais: uma avaliação do Projeto Praia do Guaíba. Boletim Gaúcho de Geografia. Porto Alegre; 1988 n. 16 (1988), p. 45-59.

Orla do Guaíba foi construída sobre o aterro do curso d’água | Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

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