O sentido da revolução em Clóvis Moura. Por Marcio Farias

O jornalista, sociólogo e historiador radical Clóvis Moura nasceu neste dia em 1925. Ao enlaçar raça e classe, ele legou uma das mais originais interpretações da formação do Brasil. Forjadas nas lutas dos movimentos comunista e negro, suas teses são incontornáveis para a estratégia revolucionária hoje em dia.

Na Jacobin

Clóvis Moura foi um dos importantes autores dispostos a pensar a revolução brasileira. Suas teses sobre ela são propostas que herdam pontos elencados no interior do movimento comunista no Brasil e se tornam originais ao dialogarem com o movimento negro contemporâneo. Menos conhecidas e exaltadas, suas teses, talvez, possam ser as que mais se aproximam do cenário atual: a situação em que se encontra a classe trabalhadora brasileira em meados da terceira década do século XXI.

Do ponto de vista histórico, desde as movimentações citadinas dos modernistas, passando pela emergência dos operadores políticos modernos, como os sindicatos, partidos, movimentos sociais ou, posteriormente, nas universidades – quando da instalação de quadros intelectuais forjados no marxismo nas cadeiras universitárias ao longo da segunda metade do século XX –, a utopia brasileira, ou, como transformar o impossível em possível, é, por dedução lógica, a identidade da esquerda marxista no Brasil, embora a tática e a estratégia da esquerda brasileira tenham variado muito, conforme a estrutura social e as formas de consciência que cada conjuntura histórica oferecia.

Nesse sentido, os caminhos diversos da revolução brasileira acompanham o desenvolvimento intelectual, político e cultural da esquerda canarinho, o que quer dizer que não se trata de um bloco, e sim de variadas perspectivas acerca de como o país poderia e deveria ser mudado.

Os modernistas à esquerda, como Manuel Querino, Mário de Andrade, Lima Barreto, Pagu, Oswald de Andrade, entre outras e outros, colocam de ponta cabeça as primeiras investidas sobre o que é Brasil feita pelos intelectuais do projeto brasileiro do século xix, tais como Van Marthuis, José Bonifácio e Joaquim Nabuco.

Com o intento dos modernistas, abriu-se uma agenda para o século XX ajustada aos novos tempos e aprofundada sobre as características que informam de uma particularidade que não é mera expressão dos rumos que a Europa tomou para ser moderno e desenvolvido.

O sujeito político

Em termos teóricos e políticos, é incontestável que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) seja um dos operadores mais relevantes no que se refere à questão da revolução brasileira e que seus intelectuais, como Octavio Brandão, Leoncio Basbaum, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr e o jovem Clóvis Moura, entre outros e outras, traduziram, entre as décadas de 1920 e 1970, para a teoria da história e da economia política essa agenda modernista e, a partir dela, deram as cores vermelhas para a estratégia revolucionária. Vale ressaltar ainda que, ao longo das décadas de 1920 a 1960, os influxos teóricos e políticos sobre a revolução brasileira no interior do PCB tiveram vetores internos e externos.

No campo externo e sua influência na leitura sobre a história brasileira, a teoria da revolução entraria, entre 1930 e 1960, numa fase em que predominou uma espécie de “esquematismos pré-estabelecidos” decorrentes da absorção das teses do Programa da Internacional Comunista, tanto do V Congresso quanto, principalmente, do VI Congresso Mundial realizado em Moscou no ano de 1928. Assim, as proposições para a compreensão dos países coloniais e semicoloniais presentes no documento final do VI Congresso e aqui absorvidas nas teses acerca da natureza semifeudal da estrutura agrária do país passariam a ser a leitura oficial do PCB até a década de 1960. As oscilações da tática giravam em torno das alianças que o operador político deveria fazer para as mudanças sociais disruptivas acontecerem: aliança circunstancial com a pequena burguesia e com burguesia urbana e industrial nacional contra o imperialismo e para a superação dos resquícios feudais da estrutura agrária do Brasil de então, segundo Brandão. Sodré, por sua vez, argumentava que a revolução brasileira seria uma revolução burguesa, mas que também incluiria elementos populares e socialistas. Com variações, ainda que não agudas, no início da década de 1930, Luiz Carlos Prestes, em vias de rompimento com o tenentismo e amplamente influenciado pelas ideias comunistas, em seu Manifesto de Maio, propõe a constituição de um governo baseado em conselhos de trabalhadores, camponeses, marinheiros e soldados, a exemplo dos sovietes.

Caberia à vanguarda revolucionária forjar desenvolvimentos do capitalismo em aliança com a burguesia nacional para, numa segunda etapa, a luta se orientar pela perspectiva socialista. Essa é a impressão que se tem ao ler a Declaração de Março de 1958 do PCB. A bem da verdade, o Brasil dual de estrutura agrária atrasada e de um capitalismo dividido entre o desenvolvimento nacional e a imposição exterior não era uma leitura exclusiva do Partidão, nem mesmo uma análise exclusivamente brasileira. O conjunto dos intelectuais brasileiros e latino-americanos, com raras exceções, comungavam dessa análise. O problema em si está nos desdobramentos políticos dessa interpretação. Nesse ponto, os vacilos do Partido não terão apenas reflexos políticos, mas também teóricos.

No campo interno, ainda que sob os impactos de determinações externas, a conjuntura do pós-Segunda Guerra – quando da derrota do nazismo, do avanço da União Soviética e do início do estabelecimento do comunismo no Leste Europeu – compõe os diversos fatores que favoreceram, na correlação política da época, a participação dos comunistas como uma força inserida no campo da luta democrática. Em 1945, o PCB conquistou espaços na vida política e cultural, tornando-se um partido nacional com lastro, atingindo, em 1947, a marca de cerca de 200 mil filiados. Nesse período, constitui importante bancada parlamentar e elege vários quadros nas mais variadas funções legislativas. Setor político importante desse período, o PCB tem forte inserção em vários âmbitos da sociedade, como o movimento sindical classista e a intelectualidade, por meio da criação de um conjunto variado de jornais e revistas que debatiam, além de política, cultura, estética e economia. Nasce, assim, a política de Frente Cultural do PCB, que se dedicou a acompanhar e promover diversas formas de expressão cultural, incluindo música, literatura, teatro e outras manifestações artísticas. Desse modo, a concepção geral da Frente era a de que a cultura tinha um papel importante na sensibilização política e na mobilização da classe trabalhadora e das camadas populares.

“Marxista vinculado à história do movimento comunista brasileiro, Moura se aproxima do PCB neste contexto, quando, ao se mudar para a Bahia na década de 1940, tem contato com as seções comunistas na cidade de Salvador e Vitória da Conquista.”

Chega a um PCB baiano em que figuras como Jorge Amado e Carlos Marighella são alguns de seus grandes quadros. Além disso, intelectuais comunistas como Edson Carneiro e suas reflexões sobre a cultura popular, em especial cultura negra baiana, influenciarão profundamente o jovem Clóvis Moura.

Inserido no contexto da política comunista da frente ampla pela democracia e sob as táticas das frentes culturais, Moura, por seu turno, começará a trilhar seu caminho de contribuições para uma teoria da revolução brasileira. Para isso, qualificará a discussão de cultura e sobre qual é o sentido histórico da colonização escravista para a compreensão do Brasil moderno e contemporâneo. De Caio Prado Júnior, Clóvis Moura absorve as teses sobre o sentido da colonização e o papel do Brasil como um empreendimento capitalista, desde o seu nascimento, comparecendo, numa divisão internacional do trabalho, como agente primordial da produção de bens primários para consumo na metrópole. No entanto, em um movimento de negação crítica, Moura aponta para a necessidade da compreensão das formas políticas que lastreiam a história brasileira desde a colônia. Ou seja, se a colônia explica o lugar que o Brasil ocupa na divisão internacional do trabalho, as lutas políticas internas desde esse período não deveriam ser negligenciadas.

Daí que se deve levar em conta a relação concreta e teórica com os movimentos culturais baianos com que Moura teve contato. As heranças do Sertão nordestino e das lutas camponesas, do cangaço, do Arraial de Belo Monte e dos camponeses de Canudos, atreladas à sua ação política na frente cultural do PCB são as bases para entender a noção de sujeito histórico para Clóvis Moura. É importante ressaltar que, nesse ínterim, tanto como militância, mas também como forma de ganhar a vida, Clóvis Moura escreverá tanto em jornais de circulação ampla, como também nos instrumentos de comunicação do PCB. Nessas duas esferas do jornalismo, Clóvis Moura escreveu sobre temas cotidianos e manifestações culturais, como por exemplo sobre o Carnaval. Também exerceu o papel de crítico literário, fez crítica de teatro, entre outros. Em síntese, suas vivências, memórias, experiência política e estudos teóricos resultaram numa reflexão sistematizada sobre a importância das lutas negras na história do país.

“Em 1959, publicou o livro Rebeliões Da Senzala, um panorama desse período de amadurecimento e proposição sobre as determinações gerais da formação social brasileira, com ênfase nas lutas políticas.”

Em seu livro de estreia, Moura marca a um só tempo uma tese inovadora sobre a história brasileira, indicando a origem da luta de classes na escravidão, confrontando, portanto, as teses culturalistas que observavam a acomodação, a aculturação, a assimilação ou sincretismo da cultura portuguesa em conluio com a cultura indígena e africana. Também indica, numa leitura de longa duração, a relação entre a estrutura social brasileira e as lutas sociais. Sua tese é de que a população negra compareceu enquanto sujeito político na formação social brasileira e, ao confrontar a ordem, também contribuiu para o dinamismo da sociedade originalmente conflituosa e violenta.

Se neste momento Clóvis Moura observa e apresenta a tese de um sujeito político, ao longo das próximas duas décadas o autor qualificará a compreensão das determinações mais gerais na formação social brasileira. Em termos históricos, a Ditadura burgo-militar e a derrota da esquerda serão o grande mote – não só para Moura, como para toda a sua geração – para a averiguação das teses sobre uma revolução nacional e reavaliação sobre os caminhos da revolução brasileira.

As teorias econômicas de caráter estruturalista debatidas na década de 1950 passarão sob o escrutínio de uma revisão e ganham novas versões na década de 70. Nesse período, o avanço das ditaduras militares na América Latina evidencia um caráter conservador e dependente das elites locais ao capitalismo internacional. Sendo assim, as teorias da dependência serão os novos marcos teóricos de uma interpretação sobre a característica do capitalismo latino-americano. A teoria marxista da dependência terá grande impacto sobre as formulações de Clóvis Moura deste momento em diante.

Teoria da revolução

Tendo qualificado uma caracterização do capitalismo brasileiro, que consiste na ideia de que aqui o capitalismo é de natureza dependente, com elites antidemocráticas e conciliadas com o capital internacional, Clóvis Moura volta-se agora, novamente, às formas políticas com intuito de adensar sua compreensão sobre o sujeito revolucionário e sua teoria da revolução. Em um cenário em que havia o avanço do assim chamado terceiro-mundismo, em que os fatos históricos reorganizaram as noções de sujeito político, estado, história e revolução, Moura observará com muita atenção as elaborações teóricas sobre política oriundas da América Latina, Caribe e África. Destes, o pensamento caribenho de extração anglófona terá grande impacto sobre as suas formulações acerca da política. C. L. R. James e Eric Williams são autores que ajudaram Clóvis Moura a compreender melhor a relação entre capitalismo e racismo e a observar, a partir disso, uma conexão mais elaborada sobre posição de classe, cultura, política e relações raciais de tal modo que, quando escreve Negro, de bom escravo a mau cidadão? (1977), analisa o papel relevante das religiões de matrizes africanas nos históricos levantes populares de africanos escravizados no Brasil, muito a reboque da forma como James explicita a importância do vodu no fomento cultural que posteriormente culminou na Revolução Haitiana.

Ao analisar a insurgência dos escravos de São Domingos, Clóvis Moura indica que o elemento religioso foi fundamental para que os escravizados, submetidos a um regime desumano, conseguissem responder com humanidade a esse processo. No caso, o vodu possibilitou aos escravizados restituírem complexos sociais como ética, hierarquia, diferenciação e devir. A religião operou como argamassa da revolta, permitindo ao segmento mais pauperizado acompanhar de forma direta as dimensões que a luta exigia e que estavam sendo elaboradas pelas lideranças “esclarecidas”. De certa forma, para Clóvis Moura existiram aspectos gerais das culturas africanas, ainda que sob novas condições, que foram mediações capazes de oferecer condições para a Revolução Haitiana acontecer.

Essa compreensão de cultura como resistência também existe nos primeiros textos de Clóvis Moura, mas ganhou, nesse ínterim, uma dimensão mais elaborada. A análise da participação do negro na emancipação da América Latina, principalmente na Revolução Haitiana, possibilitou a Moura um campo analítico mais preciso que, certamente, definiu os rumos da sua teoria. Não por acaso, na segunda parte de seu livro, quando estuda a inserção do negro na modernidade capitalista brasileira, Moura utiliza pela primeira vez as categorias “grupos específicos” e “grupos diferenciados” para entender o elemento cultural como componente de resignação identitária e instrumento simbólico recorrente nas lutas dos negros durante o século XX, em vista da marginalização imposta quando da emergência da sociedade de classes no Brasil.

Nessa obra, a inflexão de Moura sobre as relações sociais modernas no Brasil se torna mais ampla e busca abarcar a relação da população negra inserida enquanto sujeito social no segmento urbano. A teoria da revolução em Moura ganha novos contornos em Sacco e Vanzetti: o protesto brasileiro e Diário da guerrilha do Araguaia, ambos de 1979. Os livros são estudos exploratórios, situados em fontes históricas, jornais de época e depoimentos no primeiro caso e um diário no segundo.

Sacco e Vanzetti discute a repercussão do assassinato dos operários Sacco e Vanzetti. Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram dois militantes anarquistas italianos presos, processados, julgados e condenados à morte nos Estados Unidos, na década de 1920, sob a acusação de homicídio de um contador e um guarda de uma fábrica de sapatos. Alinha-se a história dos vencidos e busca repercutir sobre a tomada de consciência crítica da classe trabalhadora. Clóvis Moura persegue, a partir desse caso, uma linha analítica em que tenta captar as determinações gerais endógenas e exógenas do capitalismo estadunidense. Propõe-se, assim, a conexão entre as contradições entre capital e trabalho, crise e desemprego, e o tensionamento entre Estado e coerção permanente para setores da classe trabalhadora estadunidense e seus possíveis reflexos mundo afora, tendo em vista a emergência dos EUA como potência econômica imperialista no pós-Segunda Guerra.

“O novo movimento negro e a luta operária no ABC paulista eram presságios de um novo ciclo de lutas populares que se abria e, nesse sentido, Clóvis Moura se situava entre aqueles que vislumbravam a possibilidade de radicalização da luta e de uma transição revolucionária para o socialismo.“

A reconstituição do processo histórico que forjou a prisão injusta e política de Sacco e Vanzetti indica o que Moura falava dos EUA, mas trazia notícias para a emergente classe trabalhadora brasileira em luta. O livro foi publicado em 1979, em plena Ditadura, sugerindo que a relação entre capital e trabalho, em tempos de bonapartismo de estado, tende ao lado das elites dominantes, que fazem uso de meios coercitivos para manter o bloco de poder.

Num segundo momento, Moura analisa a repercussão mundial do caso, o apoio e solidariedade proletária mundo afora, incluindo o Brasil, demonstrando o modo pelo qual, nas principais praças de luta da classe trabalhadora brasileira, os operadores políticos reagiram em torno da causa dos operários italianos. No parlamento e no conjunto do campo progressista, as forças de esquerda foram veementemente críticas ao ocorrido, ainda que pesassem as diferenças ideológicas do período. A história cristalina e o sentimento de injustiça internacional forjaram, pela solidariedade, uma frente ampla de esquerda. Por outro lado, Clóvis Moura também pondera a maneira como o Congresso e a imprensa oficial repercutiram o fato.

O segundo livro, Diário da guerrilha do Araguaia, aborda temas contemporâneos à época. Numa contraposição à história oficial feito pelo Estado burgo-militar, Moura se vale de escritos feitos pelos dirigentes das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Por meio desse material, o autor realiza uma história “por dentro” e resumida desse momento de organização social contra a ordem autoritária, efetivado na região paraense de Xambioá-Marabá, entre 1972 e 1974. Moura fala de uma história que ficou “por tanto tempo como área proibida” apenas 5 anos após o ocorrido, momento em que ainda estava em curso a Ditadura Militar.

É interessante refletir como, no primeiro livro, ao analisar um fato histórico do início do século XX, a partir do cotejamento de fontes jornalísticas, Moura observa a feição coercitiva do estado estadunidense frente à luta dos trabalhadores. Elementos que se conectavam com o momento de publicação do livro, na medida em que o Brasil estava em plena Ditadura Militar, apoiada pelo imperialismo dos EUA e com ampla repressão aos trabalhadores. No segundo livro, Moura evidencia a mesma feição do estado coercitivo, agora observando a realidade brasileira.

Era história se repetindo, primeiro como tragédia, depois como farsa. Por outro lado, diante desse estado de sítio em que se encontrava o Brasil, Moura tenta discorrer, a partir daquele momento, sobre quais são os novos focos de resistência dos setores populares. O novo movimento negro e a luta operária no ABC paulista eram presságios de um novo ciclo de lutas populares que se abria e, nesse sentido, Clóvis Moura se situava entre aqueles que vislumbravam a possibilidade de radicalização da luta e de uma transição revolucionária para o socialismo.

Luta negra, revolucionária e socialista

A obra de Clóvis Moura se situa entre dois mundos que se complementam e se antagonizam ao mesmo tempo: o mundo comunista e o mundo negro. Embora sua elaboração teórica esteja nos marcos do desenvolvimento teórico e político do marxismo brasileiro, a extensão de sua obra e sua originalidade se dá pela sistematização teórica das lutas negras ao longo da história do país. No arco histórico, o movimento negro que surge e se insurge no contexto das lutas pela redemocratização do país apresenta, para ele, o quadro de um sujeito político perene, cujos anseios só serão plenamente atingidos numa sociedade que mude radicalmente sua matriz formadora.

Nesse sentido, propõe uma interpretação que desloca o eixo da luta de classes para a colônia, a partir das várias lutas dos escravizados contra o escravismo. A ideologia que conformou o dinamismo contraditório e violento do período colonial se metamorfoseia conforme o desenvolvimento das forças produtivas e a alteração das relações sociais de produção. Na moderna sociedade de classes brasileira, o racismo se transforma em uma ideologia complexa, que afirmou a inexistência das contradições de raça, justamente para conformar a exploração e a espoliação da população negra. Nestes termos, a emergência do movimento negro contemporâneo, que contestou o mito da democracia racial e passou a exigir reparação histórica a partir de um programa complexo, que envolvia o questionamento da história oficial e a explicitação da relação entre racismo, emprego informal, baixos salários, desemprego, violência de Estado em múltiplas matizes, reconhecimento e ampliação da cidadania do segmento negro da população, deslocava não só a luta negra, mas o conjunto da esquerda para um programa radical de transformação do país.

Na década de 1980, Moura intensificou sua produção teórica em torno da temática raça e classe, publicando um conjunto de livros que subsidiaram esses setores. Com os seguintes volumes o autor contribuiu para a batalha das ideias: Quilombos e a rebelião negra (1981), Brasil: as raízes do protesto negro (1983), A impressa negra (1984), Quilombos: resistência ao escravismo (1987), História do negro no Brasil (1989), As Injustiças da Clio: o negro na historiografia brasileira (1990).

“A conjugação entre raça, classe e questão agrária são os grandes nós da revolução brasileira, temas persistentes e que, se justapostos em termos políticos, podem consagrar um programa de transição revolucionário e socialista.”

Herdeira das lutas sociais de redemocratização, a esquerda consegue forjar uma Constituição de caráter social-democrata e garantidora de direitos, mas num quadro histórico adverso, em que as forças neoliberais pautaram os rumos da sociedade. Vive, assim, uma derrota histórica na hora de efetivar suas pautas e políticas. Neste contexto de refluxo das massas, Clóvis Moura escreve dois livros que situam sua perspectiva revolucionária: Dialética radical do Brasil negro (1994) e Sociologia política da Guerra Camponesa de Canudos: Da destruição de Belo Monte ao aparecimento do MST (2000). No primeiro, apresenta sua derradeira interpretação do Brasil: um país que se forja na exploração, mas também na luta negra. A superação da ordem desigual e violenta se dará quando ocorrer uma transformação que vá à raiz dos problemas fundamentais da sociedade brasileira. O segundo se situa na encruzilhada analítica entre a questão agrária, as lutas camponesas históricas e contemporâneas e a questão racial, analisando as conexões históricos estruturais entre Canudos e o MST. Para Clóvis Moura, a conjugação entre raça, classe e questão agrária são os grandes nós da revolução brasileira, temas persistentes e que, se justapostos em termos políticos, podem consagrar um programa de transição revolucionário e socialista.

Marcio Farias é professor do curso de Psicologia na PUC/SP, coordenador de pesquisa do Instituto Amma Psique e Negritude e editor da Editora Dandara, onde coordena a Coleção Clóvis Moura.

 

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