Expansão das energias renováveis ameaça assentamentos da Reforma Agrária no Nordeste

Famílias assentadas e povos do campo na região enfrentam luta constante pelo acesso às energias renováveis e ameaça aos territórios conquistados

Por Morgana Souza e Matheus Mendes/Comunicação do MST no RN
Da Página do MST

A energia é uma necessidade fundamental à vida. A apropriação da água, do ar e do sol vem acontecendo e traz uma série de conflitos. O capital, a partir da sua dinâmica de exploração, acaba tendo maior poder de dominação, sobretudo nos territórios onde realizam-se os processos da execução, reprodução e planejamento da vida. Nesse sentido, lutar por uma transição energética justa, soberana e popular, é uma tarefa necessária para garantir a autonomia dos povos e a preservação do meio ambiente.

São inúmeros os desafios relacionados à  pauta da produção de energia ao tempo em que vivemos uma crise ambiental, econômica e social. O Brasil tem quase 70% da sua matriz energética derivada de combustíveis fósseis, hidrelétricas ou renováveis. Ao mesmo tempo que temos um elevado nível de produção, existe uma forte dualidade com a desigualdade no acesso à mesma, com muitas comunidades enfrentando diversos desafios para ter acesso à energia, a exemplo do assentamento popular Maria Aparecida, no Rio Grande do Norte, que rodeado por parques eólicos há quase uma década, passou a ter energia elétrica apenas no ano de 2019. Dentre outras comunidades, sobretudo em áreas remotas, como na região Amazônica, que convivem com a falta de eletricidade.

A transição energética é uma das pautas de maior visibilidade no mundo na última década. E no cenário nacional, todos os olhos seguem voltados para os estados do Nordeste. Concebidos como espaços de luta e resistência, territórios ocupados pelos povos do campo, das águas e florestas enfrentam novas tensões e conflitos, trazidos por um inimigo com nova roupagem, através da expansão de empreendimentos de energias renováveis.

A partir da intensa produção agropecuária e dependência de combustíveis fósseis, o Brasil é um dos principais emissores de gases do efeito estufa, trazendo desafios no âmbito da geração de energia em consonância com a sustentabilidade ambiental.

O modelo capitalista neoliberal, na atual hegemonia do capital financeiro, cria novas e diferentes formas de transformar as contradições (do próprio sistema) em possibilidades de acúmulo de capital na dimensão ambiental. As formas clássicas de exploração dos bens da natureza dão espaço para as formas “verdes”, que se desenham sob a égide do “capitalismo verde”. Assim, se exploram os bens comuns em detrimento de uma falsa solução para descarbonização do planeta. Sendo esta, uma prática econômica que visa inserir elementos da natureza no processo de financeirização, apresentado-se como um agravante para a crise climática.

Mercantilização e privatização da natureza

Essa nova forma de exploração do capital sobre os bens da natureza, através da financeirização, possui um conjunto de mecanismos de mercado, como REDD (Redução  de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), TEBB (Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade) e MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo). Eles tem por finalidade mercantilizar e privatizar os bens da natureza, precificando e negociando nas bolsas de valores. Possibilitando que as grandes corporações mundiais adquiram esses títulos para se desresponsabilizar dos crimes ambientais cometidos. Adquirindo o aval para continuar desmatando e destruindo a sociobiodiversidade, passando por cima do clima, de povos, das comunidades tradicionais e seus bens tangíveis e intangíveis.

Estas falsas soluções agudizam ainda mais os conflitos no campo e florestas, promovem o aumento da violência e a violação de direitos das populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas (TERRA DE DIREITOS, 2023). Impedindo que estas populações realizem seus modos tradicionais de produção e de vida, de forma harmônica com a natureza. Impedem também o acesso aos bens comuns como a terra, o território, a água, a biodiversidade e as sementes, bens indissociáveis das vidas destas populações. O capitalismo verde, mais voraz e perverso, busca gerar novas formas de lucro, alimentando a crise do capital financeiro e especulativo.

Na corrida pela transição energética, o Estado brasileiro abre uma fronteira no desenvolvimento sobre os bens comuns da natureza a partir do uso extensivo de terras agrícolas, permitindo a implantação de projetos energéticos em larga escala territorial. Desde então, entramos em um novo capítulo da questão agrária e fundiária no país, a partir do protagonismo dos parques e fazendas de energia eólica e solar.

Parques de energia eólica

A maior concentração desses empreendimentos, sobretudo de energia eólica, encontra-se na região Nordeste, com significativa aglomeração nos estados do Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará e Piauí. A predominância de altos índices de radiação solar e ventos fortes durante boa parte do ano faz com a região seja alvo de uma elevada concorrência entre empresas que se apropriam da pauta do desenvolvimentismo sustentável.

A territorialização feita pelas empresas de energia, em grande parte sob domínio do capital estrangeiro, traz consigo uma série de consequências além do desequilíbrio ambiental que ocorre nas áreas afetadas, alavancando um processo de apropriação dos territórios e despossessão (expulsão de áreas de posse) das famílias camponesas. Desse modo, usando um falso discurso de desenvolvimento e sustentabilidade, as empresas utilizam-se de contratos de arrendamento ou cessões de uso de terra, acessando os territórios. As famílias ficam restritas à gestão de suas terras, em troca de receber da empresa, por tempo determinado, valores irrisórios, que colocam em risco a perda de direitos como, por exemplo, a aposentadoria.

Um exemplo é o relato da agricultora Sem Terra, Katiana Barbosa, assentada da Reforma Agrária no assentamento Arizona, localizado em São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, uma das áreas com maior concentração de parques eólicos do estado.

“Eles foram de casa em casa para convencer as famílias a assinar o pré-contrato. Nós levamos para apresentar ao advogado da associação e ele nos disse que não tinha nenhuma benfeitoria para a agricultura familiar. Que só ia trazer benefícios para as empresas, porque as famílias arrendam todo o seu lote e não podem fazer nada sem consultar a empresa. Não pode sequer plantar uma árvore ou cuidar da sua produção. Não podem nada. Várias famílias assinaram e depois se arrependeram. Não tinha mais o que fazer”, descreve a agricultora.

A  partir do potencial energético, a apropriação privada dos recursos naturais acarreta diferentes formas de exploração econômica das regiões. Problemas de saúde, fauna, flora, água, acesso à terra, concentração de renda, privatização do sol e do vento, englobando um cenário de injustiça e racismo ambiental, contrariando o discurso positivo das renováveis.

Agrotóxicos são utilizados para a raspagem do solo durante o processo de instalação de parques de energia eólica e solar. Com isso, há a degradação do solo e a contaminação dos recursos naturais. Assim, assentados que reproduziam a vida nos seus territórios, já não podem mais fazer isso.

O avanço desenfreado desse modelo de exploração energética no campo gera também casos de transtornos mentais, insônia, problemas de pele, surdez, entre outras doenças nas populações atingidas. Existe uma interrupção das dinâmicas de vida, ameaçando a permanência das juventudes em seus territórios. E famílias que tanto lutaram para conquistar sua terra, veem o êxodo como a única alternativa para encerrar o problema.

Energias renováveis na Reforma Agrária Popular

A questão energética cumpre um papel importante no Programa Agrário do MST, estando diretamente relacionada com a produção de alimentos e a reprodução dos modos de vida. Na Reforma Agrária Popular, o debate sobre as energias renováveis assume um papel crucial na luta pela terra. É necessário que a produção energética esteja de acordo com as necessidades do povo, na produção de alimentos, na garantia da saúde coletiva e na preservação do meio ambiente.

Para o MST, alguns elementos são extremamente importantes para uma transição energética justa e soberana. “A energia é um bem da natureza que pode servir para, inclusive, diminuir custos na produção de alimentos. Ela é um patrimônio do povo e deve estar a serviço do povo.” explica Dilei Schiochet, do setor de produção e membro do coletivo de energias renováveis do Movimento.

Considerados espaços de Bem Viver, os assentamentos devem ser lugares acolhedores, de cooperação e solidariedade. Um dos aspectos fundamentais na discussão acerca das energias renováveis nos territórios de Reforma Agrária é a busca pela autonomia energética, primeiro para a produção e consumo de energia, segundo para a geração de renda através da redução dos custos produtivos. Em contraponto ao modelo de exploração e expulsão das famílias, o movimento defende que a descentralização energética dialoga com o desenvolvimento coletivo, seja por meio de cooperativas ou associações, atendendo ao consumo das famílias, a produção agroindustrial e também os espaços comunitários, como unidades de saúde, escolas e centros culturais.

“O MST tem se desafiado em buscar esse conhecimento científico das energias, também buscando capacitar os nossos camponeses e camponesas para que se apropriem não só do conhecimento como da ciência, da técnica. É necessário fortalecer e fazer lutas para que haja políticas públicas para beneficiem e tragam autonomia para as famílias”, enfatiza Dilei.

Além de promover a autonomia energética, o sistema de produção descentralizado também fortalece as estratégias de produção de alimentos saudáveis. Focar no desenvolvimento social e na sustentabilidade ambiental está estreitamente ligado à prática agroecológica, englobando o cuidado com o solo, a água, a biodiversidade e as relações humanas, estabelecendo uma conexão verdadeira entre o homem, a natureza e a Mãe Terra.

Proteger os territórios de Reforma Agrária e defender uma política de autonomia dos povos é primordial, finaliza Dilei:

Estamos vendo diariamente as consequências acarretadas pela destruição da natureza, criando um caos e expulsando as pessoas dos seus territórios. Nesse mês de Jornada do Meio Ambiente, precisamos dizer não a esse capital energético que dita normas, projetos e falácias, acumulando riquezas e impondo a destruição dos biomas e vidas humanas.”

*Editado por Solange Engelmann

Assentamento popular Maria Aparecida – São Miguel do Gostoso/RN. Foto: Morgana Souza

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