À Corte Interamericana, indígenas denunciam a inconstitucionalidade do marco temporal e da Lei 14.701

A 167º Sessão da Corte IDH buscou ouvir povos e comunidades tradicionais que têm seus direitos negligenciados em nome do desenvolvimento; o evento foi realizado em Brasília e Manaus

POR ADI SPEZIA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI E LIGIA APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE 1

“Esse termo ‘mudanças climáticas’ eu chamo mesmo de ‘vingança da terra’, de ‘vingança do mundo’. Nós, Yanomami, chamamos de transformação do mundo, tornar o mundo ruim já que os napëpë (brancos) causam a revolta da Terra”. É como Davi Kopenawa, o xamã Yanomami, define as mudanças climáticas que vêm, nos últimos anos, evidenciando suas transformações no mundo.

Esse também foi o tema do 167º Período Ordinário de Sessões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), realizada em Brasília (DF) e Manaus (AM), entre os dias 20 e 29 de maio deste ano. O evento reuniu 116 delegações de todo o mundo, além dos povos e comunidade tradicionais da Amazônia, que se somaram a sessão para discutir em Audiência Pública da Petição do Parecer Consultivo sobre Emergência Climática e Direitos Humanos.

“Mudanças climáticas chamo mesmo de vingança da terra, de vingança do mundo, de transformação do mundo”

No Brasil, os povos indígenas têm alertado para invasão e destruição de seus territórios pelos não indígenas. Em 2022, Davi alertou sobre as ações do “povo da mercadoria”, como ele se refere aos napëpë pela lógica do consumo. “Desmatamento, poluição dos rios, mercúrio, doenças, mineração (…). A Terra-Floresta está com raiva, está se vingando, está fazendo chover muito, ter grandes ondas de calor, em alguns lugares está faltando água e em outros está chovendo demais”, profetizou o xamã Yanomami.

Na visão do Bem-Viver dos indígenas, a raiz da crise climática que o mundo enfrenta tem um nome: sistema de produção capitalista. Uma forma de viver que impele as pessoas para a lógica da produção e consumo exacerbados de bens e riquezas, da mercantilização de tudo e de todos, que vê a natureza como recurso monetário e transformando a humanidade em “povo da mercadoria”.

“Na visão do Bem-Viver dos indígenas, a raiz da crise climática que o mundo enfrenta tem um nome: sistema de produção capitalista”

Foi na perspectiva dos direitos humanos violentamente afetados pelas emergências climáticas mundiais que Chile e Colômbia solicitaram um Parecer Consultivo à Corte IDH para esclarecer as responsabilidades estatais, tanto individualmente quanto coletivamente, em lidar com a emergência climática dentro do contexto do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Atendendo ao chamado para ouvir e “esclarecer o alcance das obrigações estatais, em suas dimensões individual e coletiva, para responder à emergência climática no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

Estados, grupos e organizações sociais dos países do Continente Americano se apresentaram como amicus curiae (amigos da Corte), para falar de suas realidades, ataques, violências e violações que sofrem em decorrência das mudanças no clima geradas por empreendimentos e empresas em seus territórios.

“Atendendo ao chamado para ouvir e esclarecer o alcance das obrigações estatais, em suas dimensões individual e coletiva, para responder à emergência climática”

As audiências têm o “propósito de estabelecer diálogos diretos, diversos e participativos que contribuam para que o tribunal chegue a pontos de julgamento sobre as responsabilidades dos Estados em matéria de direitos humanos frente aos desastres naturais que atingem a região”, explica a presidenta da Corte IDH, juíza Nancy Hernández López, na abertura da sessão. Ela considera necessário “realizar as sessões fora da sede para estar mais perto da realidade das regiões gravemente afetadas pelos impactos da mudança climática, como são os Estados insulares e a Amazônia”.

Anderson Guarani Kaiowá, da aldeia Guapoy, município de Amambai (MS), foi um dos amigos da Corte IDH e explanou aos juízes e juízas a gravidade da situação que vive seu povo, e disse que os povos indígenas, ao observar a natureza, já conheciam o que estava por vir.

“Busca-se estabelecer diálogos diretos, diversos e participativos que contribuam para que o tribunal chegue a pontos de julgamento sobre as responsabilidades dos Estados”

“Somos a segunda maior população indígena do Brasil. O Mato Grosso do Sul, considerado a ‘Faixa de Gaza brasileira’, é onde mais acontecem assassinatos de lideranças”, denuncia Anderson Guarani Kaiowá. Nos últimos dois anos muitas lideranças perderam suas vidas, pois atravessaram o limite do território para onde era plantio de soja e milho. Como aconteceu com “Alex [Lopes], que foi buscar lenha numa área de plantação de milho e foi alvejado com vários tiros. Os autores do crime até hoje não foram punidos. Todos os órgãos estaduais que poderiam nos proteger não o fazem”, completa o jovem indígena.

Na visão do Guarani Kaiowá, para além da degradação e do desmatamento ambiental, essa é uma estratégia de extermínio da vida indígena. “A gente percebe, através da nossa ligação [com a natureza] que a terra está doente. Através da nossa reza, a gente sabia que em algum lugar do Brasil ia acontecer um desastre climático”, disse o jovem Guarani Kaiowá se referindo à situação que passa o Rio Grande do Sul e à seca na Amazônia.

“Vai desaparecendo os nossos remédios tradicionais, a gente perde a nossa língua, a nossa reza, a nossa dança. Tudo seca. Isso, é um genocídio”

A crise climática afeta de forma copiosa os territórios indígenas. Com a destruição das florestas, o desmatamento, garimpo e roubo de madeira, as nascentes de água e rios estão secando, “vai desaparecendo os nossos remédios tradicionais, a gente perde a nossa língua, a nossa reza, a nossa dança. Tudo seca. Isso, é um genocídio” diz lamentando que “sem os seus remédios tradicionais, sem uma casa de reza, os Nhanderu – Ser Criador – e Nhandesy – Pajés –, perdem seu poder” e que “as crianças vão crescendo sem saber o que é tekoha e seu modo de viver”, expressa à Corte.

Anderson também falou da importância da demarcação dos territórios indígenas, em especial dos Guarani e Kaiowá, reivindicada há muito tempo à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e ao Governo Federal tanto a proteção e o sessar dos conflitos que levam a assassinatos de lideranças. “A gente tenta demarcar as nossas terras desde bastante tempo, mas até o momento o Estado brasileiro não demarcou. Acreditamos que a demarcação põe fim aos assassinatos de nossas lideranças”, disse com esperança.

“Acreditamos que a demarcação põe fim aos assassinatos de nossas lideranças, mas o Estado brasileiro não demarca”

inconstitucionalidade do marco temporal, tese que propõe que os povos indígenas somente tenham direito às terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal, e da Lei 14.701, que fixa tanto o marco temporal como outras normas de impedimento à demarcação de terras indígenas, foram apelos recorrentes das lideranças indígenas brasileiras. Assim, fizeram também um apelo para que o Brasil cumpra a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que garante o direito de consulta livre, prévia e informada – à qual o Brasil é signatário.

Em sua contribuição ao 167º Período Ordinário de Sessões, Anderson Guarani Kaiowá denunciou: “como defensores de direitos humanos e da natureza, enfrentamos a violência, a hostilidade e a discriminação”. Em sua fala, fez também um apelo: “pedimos que a corte recomende que o sistema de justiça concretize nossos direitos, emitindo decisões protetivas e alinhadas com os direitos humanos”.

“Pedimos que a corte recomende que o sistema de justiça concretize nossos direitos, emitindo decisões protetivas e alinhadas com os direitos humanos”

A convocação desta audiência pública, realizada em janeiro de 2023 por mais de 260 contribuições de cerca de 600 organizações da sociedade civil de todo o mundo, foi “a maior participação na história” do tribunal, assegura a presidente da Corte IDH.

A tamanha mobilização traz à tona a tamanha violência enfrentada pelos povos e comunidades tradicionais. Há a compreensão de que a violação do direitos humanos e da natureza tem sido um dos tentáculos do capitalismo, “um modelo de acumulação por despejo: só consegue acumular na medida em que esbulha, desapropria e expulsa”, explica Luiz Ventura, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em seu artigo “Crise climática é consequência da ação destrutiva do capitalismo”. “O agronegócio, a mineração e o desmatamento são apenas os novos-velhos rostos do mesmo processo colonial de exploração de corpos, saberes, sabores e territórios. (…) E que todos os dias agride e violenta as fontes da vida: a terra, a água, a floresta, o ar. E o clima”, resume Ventura.

A 167º Sessão da Corte IDH buscou ouvir povos e comunidades tradicionais que têm seus direitos negligenciados em nome do desenvolvimento. Foto: Corte IDH

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