A crise climática será central nos diálogos que podem construir um programa de desenvolvimento urbano no país. Outros quatros temas exigirão propostas urgentes. Entre eles o envelhecimento da população, que demandará a readequação dos serviços públicos
por Rudá Ricci, em Outras Palavras
O governo Lula está retomando os ciclos de conferências nacionais da cidade, realizadas entre junho e outubro deste ano.
Comecemos pelas cidades que temos. Segundo o último Censo, temos quase 4 mil (dos 5.570) municípios com até 20 mil habitantes. Contudo 29% dos brasileiros residem em cidades com mais de 500 mil habitantes. Este quadro cria uma diversidade de situações municipais e gera invisibilidade dos municípios rurais ou remotos que perfazem 65% do total. Também é o caso dos 700 municípios brasileiros em que a Prefeitura é o maior empregador local. Ao só reportarmos o que acontece em grandes municípios, onde reside a maior parte do eleitorado brasileiro, desconhecemos a origem do Centrão e do baixo clero.
Mas retornemos ao tema das conferências municipais das cidades. As conferências têm como tema central a construção das bases do Programa Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e os objetivos de redução das desigualdades, enfrentamento da crise climática e controle social. A pauta das conferências está organizada em três eixos: articulação interdisciplinar e de atores sociais com planejamento; gestão estratégica e financiamento e temas transversais (como sustentabilidade ambiental, transformação digital, segurança). O PNDU é, assim, um conjunto de ações públicas que envolve planejamento, gestão, preservação de cidades justas, democráticas e sustentáveis, para garantir o bem-estar e atender às necessidades da população
A pauta das conferências destacam nove desafios. Aqui destacarei cinco desses desafios: mudança climática, transformação demográfica, equidade socioterritorial, desenvolvimento econômico com justiça social e espaços públicos inclusivos.
Sobre mudança climática, o texto-guia das conferências destaca a importância da conscientização que viveremos ciclos de enxurradas, inundações, deslizamentos de terra, secas prolongadas, ilhas de calor, insegurança hídrica, insegurança alimentar e outros efeitos desta mudança. Assim, os governos locais precisam coordenar ações para reduzir os fatores que causam as mudanças do clima e na adaptação dos ambientes urbano. O foco deve ser proteger o ambiente e as pessoas, especialmente povos e populações em situação de vulnerabilidade social. Este, talvez, seja o maior desafio dos municípios brasileiros porque não há opinião pública consolidada para se entender que todas localidades serão afetadas pela mudança climática.
Sobre a transformação demográfica, lembremos que o Brasil acelerou o envelhecimento de sua população. Nossas cidades precisam adequar o sistema de mobilidade, a moradia, os serviços públicos e os espaços urbanos às necessidades de pessoas de todas as idades. Temos exemplos internacionais e nacionais inovadores e que indicam soluções nesta direção; é o caso do Canadá onde governos locais estimularam a formação de redes virtuais que conectaram idosos ou cuidadores que são servidores públicos municipais para atender a terceira idade.
O ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, quando prefeito de Neuilly-sur-Seine (uma das comunas mais ricas da França), de 1983 a 2002, implantou um serviço de cuidadores que auxiliavam até no pagamento de contas de idosos, além dos serviços regulares desta profissão. Belo Horizonte também adotou este sistema público.
Sobre equidade e justiça socioterritorial, o destaque é a superação da desagregação de dados dos territórios, articulando-o com condições de vida por classe, gênero e etnia. Sem isso, a cidade não percebe a desigualdade de oferta de serviços e as demandas específicas. Este tema é de fundamental importância, principalmente após a pandemia de covid-19 que afetou mães de cor parda sem carteira de trabalho e que dirigem sozinhas suas famílias, assim como avós que cuidam dos netos. O desalento e a saúde mental se multiplicaram no Brasil.
O penúltimo tema que destaco é o dos espaços públicos inclusivos. Tem relação direta com o anterior: trata-se de garantir a acessibilidade universal e construir a perspectiva de pertencimento aos territórios e reforçar identidades de vizinhança e cooperação. Há estudos que indicam que localidades que possuem maior cooperação comunitária se desenvolvem mais porque geram líderes com este perfil, além de criar uma rede de controle e fomento de políticas públicas.
Finalmente, desenvolvimento econômico com justiça social. Trata-se da criação de empregos formais, o fomento ao trabalho justo e a geração de renda, especialmente de forma descentralizada nos territórios e direcionada aos grupos socialmente vulnerabilizados.
Gostaria de fazer uma observação sobre geração de renda em municípios pequenos. Venho me dedicando a articular redes de formação e financiamento de mulheres de baixa renda para construção de seus negócios (individuais ou coletivos). Acredito que esta iniciativa pode quebrar o clientelismo em muitos pequenos municípios do país que são presas do patriarcalismo histórico que domina a política local. Além disso, pode ser a tão esperada porta de saída do Bolsa Família. É verdade que 64% dos beneficiários dependentes de 7 a 16 anos do programa Bolsa Família em 2005 não se encontravam mais no Cadastro Único 14 anos depois, em 2019. Contudo, os governos podem dar um empurrão na emancipação das mães.
Como percebem, temos espaço para discutir muitas propostas a partir desta pauta das conferências municipais. Tem hora para criticar e tem hora para colocar a mão na massa.
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Foto: Paulo Whitaker/Reuters