Vitória contra o PL do Estupro aponta: nunca deveríamos ter ficado em defensiva. Em temas como Educação, violência sexual e diversidade de gênero, há uma vasta pauta dos direitos das crianças e jovens – e combate ao autoritarismo familiar
por Moysés Pinto Neto, em Outras Palavras
O PL do Estupro nos permitiu ver que o mundo nos últimos anos foi invertido: de repente, a esquerda virou ameaça às crianças e a direita, sua defensora. Curioso, porque o imaginário popular sempre associou as crianças à rebeldia, à liberdade e à invenção, coisas que estão mais associadas à esquerda que à direita. Mas, por meio de pânicos morais em relação à pauta LGBTTQIA+ e a educação sexual, a direita vem atacando fortemente – desde o caso do Queermuseu – em nome das crianças. A cobertura midiática em geral fica na defensiva, apenas retratando o “exagero” ou “descabimento” das posições. A isso junta-se o ataque ao aborto como defesa do nascituro, recentemente regado pelo hediondo PL em questão.
Mas isso é mesmo real?
Para isso, basta percebermos qual segmento político defende o Estatuto da Criança e do Adolescente na sua integralidade. O principal foco de defesa dos direitos das crianças é da esquerda. A direita não defende as crianças, defende a família. O ECA pode inclusive ser, como veremos, obstáculo ao exercício dos “direitos” da família. E o que é a família, nesse caso?
Família é o direito de soberania dos pais, em especial o patriarca, sobre seus filhos. O que a direita defende não são as crianças, mas o poder autoritário do pai – e, em segundo escalão, da mãe – sobre as crianças.
A regra geral é que as figuras parentais sejam as principais condutoras da formação de uma criança e um adolescente. Mas a questão aqui não é a orientação, nem mesmo o cuidado. Isso não é apenas direito; é dever. Aqui se trata do poder de determinar o que deve ser pensado e como deve ser sentido pela criança ou pelo adolescente.
Vamos às demonstrações.
A extrema direita defende o homeschooling como uma ferramenta de não-exposição dos filhos a crenças morais que divergem das suas, possibilitando uma formação completa com base nos princípios da família.
A posição complementar disso, defendida em mais larga escala, é a crítica da doutrinação das escolas e as universidades, como recentemente vimos no viral terrível de André Valadão sugerindo que as famílias coloquem as filhas para “vender picolé na garagem” em vez de realizar seu sonho de ir à universidade, já que é melhor ser “mulher santa” que uma “vagabunda universitária”.
Nesse caso, quem está a favor da criança?
Valadão dirige-se aos pais, jamais às crianças. Ao contrário, ele admite estar ceifando os sonhos das crianças ao impedi-las de ir à universidade. Ou seja, o que ele defende não é uma proteção do “mundano” das crianças e dos jovens, mas o controle totalitário dos pais e suas crenças sobre os filhos. Afinal, esses pais creem saberem tudo que é preciso saber em relação ao que os filhos devem aprender, em geral baseados em alguma interpretação fundamentalista da Bíblia.
Mais uma vez, não estamos no papel trivial de, diante das infinitas opções do mundo, indicar caminhos: estamos diante da proibição de todos os caminhos exceto aquele que os pais entendem ser o único correto. A criança e o jovem não podem sonhar, eles estão confinados no mundo fechado das próprias figuras parentais. Há uma proibição de ir adiante, de construir seu próprio caminho de acordo com os valores que, cotejados com os da família específica, irão prevalecer.
E a esquerda? A esquerda luta primeiramente pela diversidade de ideias, que já em si é uma luta pela… liberdade! (Justamente o que é invocado pela direita – liberdade de ensinar – quando a rigor o que ela faz é o contrário da liberdade: controle). Mas não só isso: a esquerda luta pelo direito à autonomia intelectual das crianças. Esse é um direito fundamental das crianças e dos jovens. Elas não se desenvolvem no mundo apenas para estar de acordo com as projeções e os valores nutridos pelos pais. Elas não são coisas que têm dono. Conforme vão vivenciando o mundo, irão sendo apresentadas a diversas visões e aos poucos enquadrando-se em uma ou outra. Evidentemente, as visões não são simétricas: a palavra da mãe tem mais peso que a da influencer, a palavra da professora tem mais peso que a da vizinha. Mas isso se estabelece como? Por meio de diversos mecanismos de diálogo e momentos de imposição de regras que precisam ser seguidas pela criança. Não se confunde, por outro lado, com a doutrinação que proíbe contato com outras perspectivas. Aqui, há um suplemento de poder que viola o equilíbrio da relação, coisificando a criança como se fosse propriedade parental.
A Constituição e o ECA, e qualquer noção ética minimamente decente, estabelecem que os filhos não são coisas, não são propriedade dos pais, portanto têm direito à plena liberdade intelectual – que, no entanto, está em formação e é dever dos próprios pais colaborarem para que se desenvolva. Pais que negam aos filhos o contato com a diferença estão privando a criança de um direito.
De que Valadão e os conservadores têm medo? Têm medo de que as crianças e os jovens entrem em contato com ideias que irão permitir desenvolver sua própria autonomia e, com isso, divergir dos pais. Afinal, eles sabem, mas nunca admitirão, que as crenças teocráticas, fundamentalistas, os estereótipos e os preconceitos, enfim, tudo que é vendido pela extrema direita como “liberdade” só sobrevivem efetivamente em geral quando são privadas do contato com os argumentos e com o convívio público.
É aqui que parece termos caído, principalmente a mídia, na armadilha olavista e da escola sem partido: o discurso da “doutrinação” dos professores ainda é forte e serve como base para uma “defesa da liberdade” das famílias. Chega-se ao absurdo – já ouvi isso dezenas de vezes – de criar o meme de que o “professor não é educador” (é o que então?).
A armadilha consiste no seguinte: Olavo trouxe para o debate o significante “esquerda”. Assim, porque Adorno ou Rawls seriam de esquerda, seriam a mesma coisa. As bibliografias estariam impregnadas de autores de esquerda. Inclusive os clássicos, como Kant e Hegel, seriam de esquerda. E, portanto, haveria uma lavagem cerebral. E nós caímos na armadilha. A consequência dela é: é preciso oferecer tantos autores de direita quanto de esquerda, trazendo “diversidade” ao currículo.
Acontece que nenhum autor é escolhido por ser de esquerda. Os programas não são construídos a partir de esquerda ou direita, mas da qualidade do pensamento daquele autor. Deleuze, Marx, Butler e Adorno são, sim, lidos. Mas porque são bons. Mesmo que você não concorde, é indiscutível que os argumentos ali são poderosos e a leitura da realidade é interessante. Pelo mesmo motivo, ainda se lê Carl Schmitt e Martin Heidegger, pensadores que se associaram à extrema direita. Ou John Stuart Mill e John Locke, pensadores liberais. Críticos do socialismo como Raymond Aron, Castoriadis e Hannah Arendt. Ou clássicos como Tomás de Aquino e Platão. E pelo mesmo motivo não se lê Ayn Rand, Leandro Narloch, Murray Rothbard, ou próprio Olavo, pois são pensadores fracos, de baixa qualidade.
O que importa não é a diversidade política, mas a qualidade dos argumentos.
No último dia 19 de junho, o governador Jeff Landry, de Lousiana, assinou lei que obriga a leitura dos dez mandamentos em aula (curiosidade: pesquisei no Google e a notícia vem linkada em geral dos noticiários de extrema direita no Brasil). Numa cena cômica, parecida com uma foto da década de 50 do século passado, ao mesmo tempo em que assinava, sintomaticamente sua filha criança desmaiava na cerimônia.
Os conservadores irão dizer: que mal faz ler a Bíblia todos os dias?
A resposta é: na escola, é óbvio que faz mal! Não porque os Dez Mandamentos em si não devam ser lidos, ou porque as pessoas não possam ter sua fé na Bíblia. Mas porque, ao serem eleitos arbitrariamente, em um contexto de diversidade religiosa estabelecida como direito fundamental, para ser lidos obrigatoriamente todos os dias, constituem – adivinhem – DOUTRINAÇÃO religiosa!
Numa nova inversão, os conservadores religiosos alegam que defendem a “liberdade religiosa” quando praticam esse tipo de medida. Mas a pergunta é: que liberdade é essa de impor aos outros a sua crença? A única liberdade defensável seria se houvesse uma proibição de leitura da Bíblia ou de cultos religiosos, que efetivamente seria ilegal. Mas justamente quem costumar atacar terreiros e ameaça banir os islâmicos é o espectro do fundamentalismo cristão. Os cristão gozam a mais plena liberdade religiosa: o que é proibido não é manter sua crença, mas obrigar aos demais a segui-la.
Ou seja, quem efetivamente produz doutrinação é quem reclama dela. E reclama porque gostaria de conter as crianças e os jovens em um mundo fechado, instransponível pela realidade externa. Isso ocorre pelo motivo simples que repito: as crenças estapafúrdias, ortodoxas, muitas vezes venenosas (como o racismo ou a misoginia) compartilhadas interna corporis não conseguem sobreviver ao contato com a razão e a diferença. É contra isso que luta a extrema direita.
Quem está ao lado das crianças e da liberdade é, portanto, a esquerda. A direita não defende a liberdade, a não ser a liberdade de controlar autoritariamente as crenças das crianças e dos jovens. A direita não combate a doutrinação, mas o oposto: combate a diversidade de pensamento que permite escapar da sua doutrinação.
O mesmo ocorre, para dar outro exemplo, com a questão da sexualidade.
A esquerda promoveria, segundo a visão olavista, a “sexualidade precoce” das crianças. Mas isso é verdade?
A educação sexual nas escolas é, fundamentalmente, uma educação defensiva. Ou seja, não se trata de introduzir as crianças nas práticas sexuais, mas o contrário: fazê-las entender quando tais práticas estão em curso e possibilitar que possam se defender delas, a fim de que não sejam abusadas ou ajam sem responsabilidade.
Onde acontecem os abusos infantis? Sabemos que a maioria esmagadora dos casos acontece em ambientes de altíssima confiança, como a família, a vizinhança e a igreja. A quem quer delegar a autoridade absoluta e intangível pelo Estado a extrema direita? À família ou à igreja.
Quer dizer, a extrema direita, ao dizer que está combatendo a pedofilia – atacando a educação sexual e estabelecendo controle absoluto das famílias e das igrejas – está, na verdade, tornando as crianças menos capazes de se defender e mais expostas ao abuso em função da ausência de supervisão. A própria escola serve como elemento de supervisão. Escola que, mais uma vez, é atacada pela extrema direita.
Aliás, a única escola tolerada é a militar, curiosamente aquela que cala mediante disciplinamento extremo os alunos em relação a potenciais abusos.
Quem defende os direitos da criança nesse caso? A Esquerda! É justamente ela que reivindica a supervisão do Estado e da sociedade sobre os pais, parentes e outros círculos de confiança (igreja, vizinhança, inclusive a própria escola) e uma educação sexual que faça a criança ter consciência quando está diante de um abuso.
A direita é contra o aborto supostamente em defesa do nascituro. Mas a mesma direita é, por exemplo, contra um sistema de saúde pública que garanta um pré-natal adequado e de alta qualidade, uma vez que não para de atacar o SUS e defender a privatização dos serviços, garantidos, por isso, aos mais ricos apenas. Além disso, não cansa de buscar tomar a saúde para si a fim de estabelecer relações clientelistas para manter seus cargos institucionais mediante troca de favores.
Tampouco existe preocupação com o que acontece depois do nascimento, fornecendo creches gratuitas, base financeira para as mães pobres e tempo adequado para que possam cuidar ou ver cuidados os filhos até retornarem ao mercado de trabalho.
Inclusive, para coroar a contradição não-pensante da extrema direita, ao mesmo tempo que nega a interrupção até mesmo para crianças estupradas, é ela que costuma defender ideias de controle de natalidade entre pessoas pobres, como se o problema social fosse as famílias pobres continuarem existindo ao longo de tempo.
E pior que o parafuso da loucura dá mais uma volta: ao lado dos defensores do controle de natalidade, ainda há outro segmento que ataca medidas contraceptivas! Ou seja, loucura total: não pode se prevenir da gravidez a não ser pela abstinência sexual, não pode interromper a gravidez e, depois que a criança nasceu, “toma que o filho é teu”. É um festival de insanidade.
A Esquerda, por sua vez, tem nos seus pilares a ideia de um sistema público, gratuito e de qualidade em saúde, além da informação geral sobre riscos e contraceptivos. Por isso, ela quer produzir um acompanhamento adequado das mulheres ao longo do seu período de gestação, possibilitando inclusive que haja a interrupção segura.
É irrelevante o que se pensa moralmente acerca da interrupção da gravidez, ela é simplesmente um fato que não vai desaparecer. Países como Uruguai, EUA, Colômbia, Espanha, Argentina, França, Chile e Inglaterra têm mil diferenças entre si, mas todos descriminalizaram o aborto. O que a direita faz ao buscar proibir e punir, inclusive em relação a crianças vítimas de abuso, é simplesmente estabelecer o mesmo tipo de controle que atua sobre as crianças em relação às mulheres. O mesmo poder autoritário patriarcal. E, pasmem, em nome da liberdade. Orwell manda lembranças.
A extrema direita ainda costuma fazer a associação espúria entre diversidade sexual e pedofilia. Se de fato ela fosse pertinente, imaginem a quantidade de casos que veríamos todos os dias expostos nos jornais e no zap do reaça: “Gay estupra criança”, “Trans abusa de menina”. Mas não é o caso. Em geral, essas manchetes têm no seu polo ativo justamente as figuras que reivindicam para si a condição de protetores das crianças. Não raro, porque ao assumir esse papel esses abusadores buscam encontrar um acesso facilitado a elas. Os hipócritas, tarados, perversos que passam o tempo todo vociferando contra a pedofilia.
Uma educação sexual que envolva a orientação de gênero e sexualidade é algo que “sexualiza precocemente as crianças”?
Não, seu fundamento é óbvio: cada um tem direito de seguir seu próprio desejo, desde que não afete terceiros, e todos têm o dever de publicamente respeitar com o mesmo mínimo de dignidade garantido a qualquer pessoa.
Qual direito é violado quando a escola ensina que podem existir pessoas que não se sentem contempladas pelo seu corpo biológico, ou por uma identificação de gênero, e escolhem por isso outros caminhos? Temos, em primeiro lugar, não só o direito à liberdade e autonomia individual, mas também o direito à dignidade, à “honra” de não ser ofendido – seja por terceiros, seja por pessoas do círculo de confiança – em função do seu desejo. O direito de não ser humilhado ou exterminado por ser diferente.
De outro lado, que direito há? O direito de pensar o que quiser está garantido, porque é impossível entrar na cabeça de alguém. Portanto, a reserva moral pessoal está assegurada. Mas qual seria o outro direito? Direito de discriminar? Direito de esculachar e humilhar? Direito de ofender, de espancar, de torturar? Aos adversários da educação pela diversidade não resta nada a não ser reivindicar a “liberdade como controle”, uma vez que simplesmente não há argumentos.
Em síntese, a boa notícia do PL do Estupro é que a esquerda acordou para o fato de que nós nunca deveríamos ter ido para a defensiva. Somos nós que defendemos os direitos das crianças e dos jovens, enquanto a extrema direita não defende a família, mas o direito ao autoritarismo familiar.
–
Foto publicada no Diário de Pernambuco