Myles Burke, BBC
“Histórias — francamente, histórias humanas são sempre sobre uma coisa — a morte. A inevitabilidade da morte”, disse o autor de O Senhor dos Anéis, JRR Tolkien, em um documentário da BBC em 1968, ao tentar explicar do que de fato se tratava sua obra-prima de fantasia.
O romance, cujo primeiro volume completa 70 anos de publicação esta semana, conquista leitores desde que chegou às prateleiras em 1954. O Senhor dos Anéis, com sua complexa construção de mundo e histórias detalhadas de terras povoadas por elfos, hobbits e magos, ameaçadas pelo malévolo Sauron, já havia se tornado, na época da entrevista, um best-seller e um marco do gênero de fantasia.
Para explicar melhor o que ele queria dizer com a história sendo sobre a morte, Tolkien enfiou a mão no bolso do paletó e pegou sua carteira, que continha um recorte de jornal. Ele leu em voz alta o artigo, que citava Uma morte muito suave, de Simone de Beauvoir, um relato comovente de 1964 sobre o desejo da mãe de se agarrar à vida em seus últimos dias.
“Não existe morte natural”, ele leu. “Nada que acontece a um homem é natural, já que sua presença coloca o mundo em questão. Todos os homens devem morrer: mas para todo homem sua morte é um acidente e, mesmo que ele saiba e consinta, é uma violação injustificável.”
“Bem, você pode concordar com as palavras ou não”, ele disse. “Mas essas são as molas de sustentação de O Senhor dos Anéis.”
O espectro da morte pairou sobre a infância de Tolkien, e essas experiências moldaram profundamente a maneira como ele via o mundo, influenciando os temas que revisitaria repetidamente ao escrever seus contos da Terra-média.
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 1892, filho de “dois pais muito ingleses e extremamente britânicos”, na África do Sul, para onde se mudaram levados pela carreira do pai no setor bancário.
Em uma visita à Inglaterra com a mãe e o irmão mais novo Hilary, o pai – que planejava se juntar a eles – morreu inesperadamente de febre reumática. Sendo ele a fonte de renda, a morte repentina deixou a família desprovida. A mãe, Mabel, decidiu ficar no Reino Unido, estabelecendo-se em uma casa de campo barata na vila de Sarehole, perto de Birmingham.
O retorno à Inglaterra foi “uma espécie de retorno duplo para casa, o que tornou o efeito dos prados ingleses, das pausas no campo, imensamente importante para mim”, disse Tolkien à BBC.
A mistura da zona rural da área do entorno com a industrializada Birmingham influenciou fortemente as paisagens que ele mais tarde evocou em O Senhor dos Anéis.
Tolkien era extremamente próximo de Mabel, que ensinava os filhos em casa e despertou nele o amor por contar histórias, mitos e por botânica. Ela nutriu neles seu notável dom para línguas, ensinando latim, francês e alemão desde cedo, e inspirando Tolkien a inventar suas próprias línguas mais tarde, puramente por diversão.
Quando ele tinha 12 anos, Mabel foi diagnosticada com diabetes tipo 1, que antes da descoberta da insulina em 1921, era um prognóstico fatal. A mãe de Tolkien se converteu ao catolicismo na virada do século e, quando morreu em 14 de novembro de 1904, os dois meninos órfãos foram deixados sob a custódia de um padre, o padre Xavier Morgan, e depois com uma tia.
A proeza acadêmica de Tolkien garantiu-lhe uma vaga na Universidade de Oxford, onde estudou clássicos antes de mudar para filologia por causa de seu talento para línguas. Quando a Primeira Guerra Mundial estourou em 1914, ele conseguiu adiar o alistamento devido aos estudos. Mas no ano seguinte, após formar-se, e diante de crescente pressão social e familiar, ele foi comissionado como segundo tenente nos Fuzileiros de Lancashire e enviado para a Frente Ocidental.
‘ Lama, caos e morte ‘
O batalhão de Tolkien chegou ao Somme no início de julho de 1916. A batalha provaria ser um dos conflitos mais sangrentos da história humana. O horror brutal da guerra de trincheiras que ele suportou lá, com lama, caos e morte, deixou uma marca indelével nele e permeou seus escritos posteriores.
Os campos de batalha devastados pela guerra da França e da Bélgica podem ser vistos em suas descrições da paisagem infernal e desolada de Mordor em O Senhor dos Anéis. Ecos do imenso sofrimento e carnificina que ele testemunhou – forjados pela nova guerra mecanizada – podem ser encontrados em seu retrato das terríveis máquinas de guerra orcs e do desmatamento da Terra-média pelo mago corrompido Saruman.
O autor do livro Tolkien and the Great War, John Garth, disse à BBC em 2017 que acreditava que o romancista usava sua escrita como um “exorcismo” dos horrores que viu na Primeira Guerra Mundial. A febre das trincheiras não foi a única maneira pela qual a guerra afetou o romancista, ele sugere. “Ele perdeu dois de seus amigos mais queridos no Somme e, você pode imaginar, ele deve ter ficado tão destruído por dentro quanto fisicamente”, disse ele.
Essa crença é compartilhada por Malcolm Guite, poeta e teólogo. Ele disse ao podcast BBC Great Lives, em 2021, que “há detalhes que eu acho que vêm diretamente de sua experiência de guerra, e que provavelmente ele não não poderia ter escrito imediatamente (depois). Ele ficou traumatizado. Então, os cadáveres nas piscinas dos pântanos olhando para cima, o terrível desperdício na frente de Mordor com vapor venenoso saindo da terra, tudo isso é da Frente Ocidental.”
Da mesma forma, a experiência de Tolkien sobre a profunda camaradagem estabelecida entre soldados que vivem tais atrocidades acrescenta um realismo sutil e significativo ao vínculo inabalável entre os dois principais hobbits em O Senhor dos Anéis, Sam e Frodo.
“Tolkien disse especificamente que esse era o relacionamento daqueles jovens oficiais que foram massacrados e seu batman (um soldado designado a um oficial como servo pessoal), como eram chamados”, disse Guite.
Em novembro de 1916, após meses de batalha, Tolkien contraiu febre das trincheiras, uma doença causada por piolhos, e foi invalidado e enviado de volta à Inglaterra. No final da guerra, quase todas as pessoas com quem ele serviu em seu batalhão foram mortas.
Embora as experiências de Tolkien durante a guerra possam ter acrescentado profundidade e autenticidade ao mundo mitológico que ele criou, o próprio autor sempre afirmou que não escreveu O Senhor dos Anéis como uma alegoria para a Primeira Guerra Mundial, ou qualquer outro evento específico da história.
“As pessoas não entendem completamente a diferença entre uma alegoria e uma aplicação”, disse ele à BBC em 1968.
“Você pode ir a uma peça de Shakespeare e pode aplicá-la a coisas em sua mente, se quiser, mas elas não são alegorias… Quero dizer, muitas pessoas aplicam o Anel à bomba nuclear e acham que eu tinha isso em mente, e a coisa toda é uma alegoria disso. Bem, não é.”
Mas parte do apelo duradouro de O Senhor dos Anéis é que ele é mais do que meramente uma alegoria direta. Os temas que ele explora – guerra e trauma, industrialização e a destruição do mundo natural, a influência corruptora do poder e como o vínculo de amizade pode ajudar as pessoas a suportar adversidades e perdas – ressoam muito além de um único evento ou tempo.
O romance de fantasia foi, às vezes, descartado por alguns críticos como apenas uma história de aventura de amigos corajosos lutando contra um mal indescritível. Mas O Senhor dos Anéis não é uma glorificação da guerra – é uma reflexão sobre como a morte e o trauma do conflito mudam irrevogavelmente aqueles que os testemunham e os vivem.
A sensação de deslocamento sentida por muitos soldados da Primeira Guerra Mundial ao retornarem para casa, recebidos por aqueles que não conseguiam compreender o que eles tinham visto e feito, aparece no último livro quando os hobbits retornam ao Condado.
Eles encontram seu mundo mudado após a batalha, e os companheiros hobbits incapazes de entender por que Frodo e Sam, assombrados pelo que viveram, nunca mais conseguirão ser tão inocentes.
“Um crítico disse uma vez que era um livro muito alegre, não é?” Tolkien disse à BBC. “Todos os garotos certos voltam para casa e todos ficam felizes e contentes. Não é verdade, é claro. Não é possível que ele tenha lido a história.”
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Imagem: Legenda da foto, Ao final da guerra, quase todas as pessoas com quem Tolkien serviu tinham morrido – Getty imagens