O brechó e a pablomarçalização do mundo da política… e do Direito. Por Lenio Luiz Streck

Na Revista Consultor Jurídico

1. Qual é o tamanho do mundo que queremos? Menos linguagem, menos mundo

E proliferam, como se fosse uma disputa, os modos de simplificar a linguagem. Em todos os segmentos. Mormente do Direito. Que no fundo significa simplificar o próprio Direito. Isso porque menos linguagem, menos mundo. Os limites de minha linguagem acabam sendo os limites do meu mundo. Vejam isso com vocês mesmos. Depois de ler um livro e, portanto, aumentar o “tamanho” de sua linguagem, o seu mundo não muda de dimensão?

Se a resposta for negativa, é porque ou você não leu ou não entendeu lhufas do livro. Ou o livro é ruim, algo como autoajuda e quejandices. Sim, porque ler livros como “Faça do Coaching um Hábito” ou “Jesus é o maior empreendedor” ou “Direito Penal Resumido” encurtará seu mundo.

Não falarei hoje dos ensinamentos da filosofia da linguagem. Já falei demasiadas vezes aqui em autores como Wittgenstein e Gadamer. Ou “como fazer coisas com palavras”, lembrando John Austin. Mas está implícito no texto.

Digo isso porque as redes estão em festa com recente decisão judicial que, atendendo a recomendação do projeto do CNJ, simplificou sentença (ver aqui). Não comentarei nem essa decisão nem qualquer outra. E nem comentarei publicações que defendem a simplificação da linguagem e do Direito. É deveras desgastante e se torna um debate impossível de avançar. No meu novo livro Ensino Jurídico e(m) Crise, coloquei o subtítulo de Ensaio Contra a Simplificação do Direito”. São mais de 300 páginas sobre o tema.

Por isso, limito-me a trazer o grande Machado, para, com ele, compreender de forma didática e lúdica o significado do “limite da linguagem como limite do mundo”. Ou algo assim. É gostoso ler Machado. Optei aqui por Ideias de Canário. Poderia também ter trazido Teoria do Medalhão, com os conselhos do pai ao jovem néscio Janjão.

2. Ideias de Canário – o conto!

Veja-se o conto Ideias de Canário. O senhor Macedo vê um canário em uma gaiola pendurada em uma loja de quinquilharias (brechó). Ao indagar em voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, o próprio canário responde: “– você está enganado”. Ninguém o prendera.

O Sr. Macedo então indagou-lhe se não tinha saudade do espaço azul e infinito, ao que o canário retrucou: “– Que coisa é essa de azul e infinito?” Então, o homem afinou a pergunta: “– Que pensas do mundo, ó canário?” E este respondeu com ar professoral: “O mundo é uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; e eu sou o senhor da gaiola que habito e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão”. E acrescentou: “Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-me comida e água todos os dias”.

Encantado com a cena, o Sr. Macedo comprou o canário e uma gaiola nova. Levou-o para a sua casa para estudar o canário, anotando a experiência. Três semanas depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe repetisse a definição do mundo. “– O mundo”, respondeu ele, “é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar fresco e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira”.

Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu de cara com o canário. “– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?” O Sr. Macedo pediu, então, que o canário lhe definisse de novo o mundo. “- O mundo”, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”. E o resto é mentira e ilusão!

Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “– Sim, o mundo era tudo, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias!”. Ao que o canário disse: “– Que loja? Que gaiola? Estás louco?”.

Pois então. O que é o mundo? O que é o mundo jurídico? É a simplificação e o resto é tudo mentira e ilusão?

O Direito é “aquilo sem as partes difíceis”? A política é a lacração? É a pablomarçalização? É a disseminação da fake news? O Direito é a soma dos compêndios desenhados, mastigados, tuitados, resumidos e resumidos a partir de resumos e mostrado com flechinhas usadas em power point? Ou, ainda, é uma coletânea de ementas descontextualizadas? Ou é o coach “ensinando” que Kelsen separou o Direito da moral? Ou é o visual law? Ou legal design? Esse é o “tamanho do mundo jurídico”? E o resto é mentira e ilusão?

Leiam Machado. E depois me falem. Porque eu desisti dessa discussão sobre a simplificação da linguagem, que é, mutatis mutandis, a simplificação do próprio mundo jurídico.

Tudo vira um brechó (atenção: trata-se de uma alegoria). E o resto é mentira e ilusão, como dizia o grande filósofo Canário. Perguntem ao Sr. Macedo.

Post scriptum: O reencantamento do mundo.

Com a modernidade, desencantamos o mundo. Rompemos com o “mito do dado”.  E iniciava a nossa angústia. Só que tínhamos angústia — gerada por esse desencantamento — e nem sabíamos que a tínhamos. Trato disso em um artigo recente As raízes da discricionariedade: o textualismo e o voluntarismo sob a ótica psicanalítica, publicado na Revista Psicanálise em Tempos desvairados II (Scriptura 14).

Hoje, na contramão do que denunciava, por exemplo, Max Weber sobre esse “desencantamento do mundo”, buscamos mecanismos para reencantar o mundo. Saudades, talvez, da pré-modernidade. Em que tudo estava dado. O mito do dado retorna. Estamos à procura de psicotrópicos epistêmicos.

Queremos atalhos. Somos ávidos por coisas prêt-à-porter. E prêt-à-penser. Se pudéssemos, eliminaríamos as palavras e ficaríamos com coisas e emojis, como tão bem denunciou Swift com a Academia de Lagado. Estamos no meio desse reencantamento. Entre o primeiro cientista que inventou os emojis e o segundo, que propôs eliminar as palavras.

Portanto, não estranhem o surgimento da “pablomarçalização” da política. E do Direito. E do mundo. É inexorável. O mundo virou um brechó! O resto é mentira e ilusão!

Vivemos na era da busca de uma modalidade de psicotrópicos epistemológicos que nos livrem da angústia de pensar. No fundo, instituímos uma “fábrica de próteses para o pensamento”.

E, convenhamos: também contribui para isso tudo uma espécie de “Direito fofo” que vem sendo construído paulatinamente. Daqueles que ninguém pode ser contra. Faça um teste e se pergunte: quem seria contra que… Quem criticaria uma decisão que… Você seria contra um livro que tratasse de… e pense em algo fofinho, dúctil… ou “você não é um bom sujeito se pensar que…”. Nunca se viu tanta gente afetiva…

A questão é: será que também não deveríamos aprender a dizer não? Para platitudes e para fofismos e esse mundo prêt-à-porter?

O resto você imagina.

Imagem: Bob Al-Greene

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