Parecer emitido por especialistas no tema apontou que estudos realizados no Brasil não consideraram as condições reais esperadas nas lavouras, que pode reunir até quatro tipos diferentes de agrotóxicos
Por: IHU e Baleia Comunicação
O Brasil deve se tornar o laboratório global no plantio de uma soja transgênica de propriedade de Monsanto capaz de suportar, ao mesmo tempo, quatro tipos diferentes de agrotóxicos. Evidentemente, para o risco da população, há no pacote produtos químicos banidos na União Europeia. A frouxidão nas leis que autorizam o uso desses produtos químicos deriva de um conjunto de fatores, dos quais o lobby do agronegócio e a reprimarização da economia em detrimento da industrialização, impactando na balança comercial, parecem ser os mais determinantes.
“O fato de o Brasil ser um país que opera na periferia do sistema capitalista o coloca nessa condição subalterna de receber agrotóxicos cujo uso foi já banido em países como Suíça ou Alemanha, sede das fabricantes justamente por sua elevada e comprovada periculosidade. A atuação exitosa dos atores do ‘Agro’, que se dizem ‘tech’, coloca o país nessa condição subalterna e bloqueiam as alternativas”, avalia o pesquisador e representante suplente do Ministério do Meio Ambiente na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, Gabriel Bianconi Fernandes, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Gabriel e Leonardo Melgarejo, representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio, apresentaram um parecer pedindo a rejeição da liberação comercial, mas o documento foi rejeitado por 16 votos a 2. “Uma das questões que apontamos em nosso parecer é que os estudos de campo feitos no Brasil foram baseados em um único ciclo agrícola e que além disso avaliaram a eficácia da aplicação sequencial e não em combinações e misturas dos quatro herbicidas. Isso indica que o ensaio não reproduziu condições reais a serem esperadas nas lavouras, deixando de gerar informações úteis para uma adequada avaliação de riscos”, destaca.
Gabriel Bianconi Fernandes é mestre e doutor em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (UFRJ, 2015, 2020) e Engenheiro Agrônomo (Esalq/USP, 2000). Professor do curso de Pós-graduação em Direito Ambiental Brasileiro da PUC-Rio. Integra o Grupo de Trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia e é membro do Grupo de Especialistas em Agrossociobiodiversidade (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2023). Representante suplente do Ministério do Meio Ambiente na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (2024-2026). Integrou a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – CNAPO (2012-2017), onde coordenou a subcomissão temática Sementes e foi representante da CNAPO no Comitê Consultivo do Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos (2015-2017). Coordenou o projeto multipaís Aliança pela Agroecologia (2014-2017).
Confira a entrevista.
IHU – O senhor pode explicar o que é a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações?
Gabriel Bianconi Fernandes – Conforme a Lei 11.105/2005, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança “é instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB) de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvem pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base no risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente”.
Ou seja, na prática, é a CTNBio quem dita os rumos da política de biossegurança no Brasil, embora a Política Nacional de Biossegurança – PNB em si não tenha saído do papel até hoje, passados quase 20 anos desde a promulgação da Lei de Biossegurança. A Comissão é composta por 27 membros titulares e 27 suplentes, representantes de ministérios, academia e alguns setores da sociedade civil, além da secretaria e assessoria técnica do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – MCTI. As decisões sobre pesquisa, liberação e importação de OGMs passam pela Comissão, assim como a autorização do funcionamento de instituições que manipulam Organismos Geneticamente Modificados – OGMs e desenvolvem pesquisas na área. A CTNBio reúne-se mensalmente. Ainda segundo a Lei de Biossegurança, questões de oportunidade e conveniência socioeconômicas devem ser analisadas pelo Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), formado por 11 ministros de Estado. Essa instância se reuniu duas vezes desde sua criação em 2005.
IHU – Nos últimos anos, talvez na última década, o Brasil tem sido muito leniente em autorizações para uso de agrotóxicos no território nacional, inclusive produtos químicos proibidos em outras partes do planeta. Por que isso ocorre?
Gabriel Bianconi Fernandes – O que vemos hoje é uma crescente presença do setor chamado de agronegócio na economia, na política e mesmo no imaginário do país. Esse setor se organiza, entre outros, em torno da Confederação Nacional de Agricultura, do Instituto Pensar Agropecuária, da Frente Parlamentar de Agropecuária, mais conhecida como bancada ruralista, das associações de produtores e do próprio Ministério da Agricultura. A ação coordenada desses e de outros órgãos tem entre seus temas, como é de conhecimento público, a defesa da simplificação do registro de agrotóxicos. Atuam, por um lado, para facilitar a produção, importação e uso desses produtos e, por outro, para impedir uma agricultura mais racional que reduza a dependência desses produtos sabidamente danosos para a saúde e a natureza. O exemplo mais recente é o bloqueio que o MAPA vem impondo ao lançamento do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que é um componente central do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
O fato de o Brasil ser um país que opera na periferia do sistema capitalista o coloca nessa condição subalterna de receber agrotóxicos cujo uso foi já banido em países como Suíça ou Alemanha, sede das fabricantes justamente por sua elevada e comprovada periculosidade. A atuação exitosa dos atores do “Agro”, que se dizem “tech”, coloca o país nessa condição subalterna e bloqueiam as alternativas.
IHU – Pode explicar como costumam ser os processos de análise e, eventualmente, aprovação do uso dessas substâncias químicas por parte do Estado, especialmente no âmbito federal?
Gabriel Bianconi Fernandes – A lei de agrotóxicos foi drasticamente mudada no final do ano passado. O Congresso Nacional retirou competências da Anvisa e do Ibama no registro e na avaliação de agrotóxicos. O Presidente Lula vetou alguns dispositivos, que depois foram derrubados pelos congressistas. Os processos de registro e avaliação ficaram concentrados no Ministério da Agricultura. Importante destacar que essa medida não é inédita. Em 2005, ao aprovar a Lei de Biossegurança, o Congresso Nacional retirou competências de Ibama e Anvisa no licenciamento de organismos transgênicos. Como já comentado, essas atribuições estão desde então concentradas na CTNBio. Cumpre lembrar que cerca de 95% das sementes transgênicas aprovadas para uso comercial no Brasil são tolerantes a pelo menos um tipo de herbicida, que são agrotóxicos usados para matar plantas espontâneas que nascem no meio das lavouras. Além disso, órgãos estaduais não têm competência legal para fiscalizar o plantio de transgênicos. Então, a concentração de funções em poucos órgãos federais eleva-se ainda mais.
IHU – O Brasil pode se tornar o primeiro país a aprovar uma semente transgênica de soja, desenvolvida pela Monsanto, resistente a uma combinação de quatro agrotóxicos: 2,4-D, dicamba, mesotriona e glufosinato de amônio – este último banido na União Europeia. O que isso significa e quais os riscos que corremos?
Gabriel Bianconi Fernandes – Sim, na verdade essa variedade de soja GM foi aprovada no início de agosto pela CTNBio. Sou representante suplente do Ministério do Meio Ambiente na Comissão, e junto com o Dr. Leonardo Melgarejo, representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário, apresentamos um parecer em que recomendamos a rejeição ao pedido de liberação comercial bem como ao pedido de dispensa de monitoramento pós-liberação comercial dessa nova soja. Nosso parecer foi rejeitado por 16 votos a 2.
Uma das questões que apontamos em nosso parecer é que os estudos de campo feitos no Brasil foram baseados em um único ciclo agrícola e que além disso avaliaram a eficácia da aplicação sequencial e não em combinações e misturas dos quatro herbicidas. Isso indica que o ensaio não reproduziu condições reais a serem esperadas nas lavouras, deixando de gerar informações úteis para uma adequada avaliação de riscos. O relatório da empresa também não apresentou resultados de resíduos nas análises foliares, de raízes e de grãos, ocultando, desta forma, informações relevantes para subsidiar a análise de riscos. O que se espera são misturas em tanque, não se sabe em que concentração nem em quais proporções entre esses produtos.
Há também estudos que concluem que a própria planta geneticamente modificada pode ter seu metabolismo negativamente alterado em decorrência da interação com o herbicida, envolvendo impactos adversos sobre a fotossíntese, metabolismo da energia e do carbono, bem como sobre o sistema de defesa da planta.
Nossa conclusão é que a liberação comercial dessa soja piramidada (que acumula quatro transgenes) tenderá a complexificar o problema de controle de plantas indesejáveis na medida que induzirá o surgimento de populações de plantas com tolerâncias múltiplas. Trata-se de fenômeno já conhecido desde a aprovação comercial da primeira soja tolerante a herbicidas à base de glifosato, que deve servir como base da realidade a ser considerada nas avaliações atuais.
IHU – O que está sugerido no pedido de autorização, por parte da Monsanto, da plantação da semente resistente a quatro diferentes agrotóxicos, é que o cultivo deste OGM pode gerar uma maior economia, visto ser possível reduzir as aplicações formando um coquetel com os quatro tipos de agrotóxico. Neste contexto, por que autorizar o cultivo desta semente pode ser perigoso?
Gabriel Bianconi Fernandes – A empresa busca uma alternativa ao número crescente de plantas que já desenvolveram resistência e não são mais controladas por herbicidas à base de glifosato (“Roundup” é o mais conhecido deles). Dez das 19 variedades de soja transgênica aprovadas são tolerantes ao glifosato. Entre 2003 e 2023, 12 espécies espontâneas desenvolveram resistência ao glifosato em áreas de soja no Brasil, sendo 9 delas com resistência múltipla a até quatro herbicidas diferentes, além do glifosato. 2003 foi o ano que a soja transgênica plantada ilegalmente no Brasil foi legalizada.
O perigo que argumentamos em nosso voto é que essa decisão possa favorecer a utilização de um coquetel de agrotóxicos que vai ampliar a contaminação dos solos, das águas e das populações do entorno dessas plantações. Não se sabe qual será a adoção dessa nova semente pelos produtores, mas a análise de risco deveria considerar que a soja ocupa cerca de 46 milhões de hectares do território nacional, em sua maior parte sobre o aquífero Guarani. O foco da avaliação de risco está centrado nos elementos genéticos empregados na modificação da planta em questão. Não se considera o sistema produtivo e seu entorno. É um exemplo do que o filósofo da ciência Hugh Lacey considera como ciência descontextualizadora.
IHU – No pedido de cultivo da Monsanto, por que a multinacional solicitou à CTNBio o não monitoramento do cultivo por parte dos órgãos reguladores?
Gabriel Bianconi Fernandes – A isenção de monitoramento pós-liberação comercial é uma medida que está prevista no artigo 18 da Resolução Normativa 32/2021 da CTNBio. As requerentes devem solicitá-los no momento em que apresentam o pedido de liberação comercial do OGM. A Comissão entende que o monitoramento pode ser dispensado “quando a avaliação de risco realizada pela Comissão Interna de Biossegurança [da empresa requerente] e ratificada pela CTNBio não identificar risco não negligenciável”. Por se tratar de um produto inédito e que implicará na utilização de combinações desconhecidas de produtos sabiamente tóxicos, defendemos a manutenção do monitoramento. Essa votação ocorreu em separado. Foram 10 votos a favor e 8 contrários, mas no final o monitoramento foi derrubado porque não se atingiu o quórum mínimo de 14 votos como manda a lei.
IHU – Esta semente foi plantada nos Estados Unidos em 2020, mas não foi autorizada a ser cultivada lá. Qual a chance de o Brasil estar sendo cotado como laboratório global desse novo OGM?
Gabriel Bianconi Fernandes – Nos Estados Unidos foram liberados testes de campo. A decisão de liberar o plantio comercial é inédita aqui do Brasil.
IHU – Considerando o histórico brasileiro, que expectativa podemos relativamente à aprovação desta nova semente, que tem poucos estudos sobre ela, mas muito interesses financeiros?
Gabriel Bianconi Fernandes – A expectativa é que a adoção dessa nova semente eleve o uso de agrotóxicos, incluindo a atrazina além dos quatro outros herbicidas já mencionados. Citamos no parecer MDA-MMA ensaios realizados pela empresa envolvendo diferentes tratamentos com herbicidas que examinavam a eliminação de plantas “tiguera”, aquelas que germinam na área a partir de grãos caídos durante a colheita. Os melhores resultados apontam para o uso de atrazina, que assim se coloca como parte adicional ao pacote tecnológico desta nova soja GM. Depreende-se, dessa forma, que o controle de plantas remanescentes poderá envolver a ampliação no uso de herbicidas à base de atrazina, conhecido disruptor endócrino, carcinogênico e de efeitos negativos sobre o sistema reprodutivo, de uso proibido na União Europeia desde 2003 (BETHSASS & COLANGELO, 2006), desde 2007 na Suíça, país sede da fabricante e com solicitações de proibição de uso no Brasil por parte do Ministério Público do Trabalho.
IHU – Qual o papel da sociedade civil diante do avanço das autorizações e do uso de produtos químicos nocivos à saúde nas monoculturas do agronegócio?
Gabriel Bianconi Fernandes – O modelo atual de regulação de transgênicos e de agrotóxicos não favorece o controle social nem a participação da sociedade civil. Embora essas decisões ocorram em espaços diferentes, seus efeitos práticos, no mundo da vida, se dão de forma indissociável. Por outro lado, como revelado recentemente pelo projeto Lobby na Comida, empresas e representantes do setor têm trânsito facilitado na Esplanada. Isso mostra um problema grave de equidade na forma como o governo trata o assunto e que decisões relevantes se dão de forma não pública. O Ministério Público pode ter um papel importante para ajudar a reduzir essas distorções.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Gabriel Bianconi Fernandes – Ao longo do tempo a CTNBio tem ampliado o escopo do sigilo sobre documentos inteiros e partes de documentos, sobrepondo o interesse privado ao público, ao ponto de ter adotado como rotina a realização de reuniões separadas (processos sigilosos e não sigilosos). Não vejo sentido, por exemplo, na concessão de sigilo sobre informações como o rendimento da cultura e outros aspectos referentes ao protocolo experimental e resultados de estudos de campo. Um dos aspectos centrais da atividade científica é a replicabilidade dos experimentos. Chamo ainda a atenção para a demora para nomeação dos representantes da sociedade civil na área dos consumidores na Comissão, indicados em junho.
Para concluir, lembro que muitos estudos mostram que a consolidação do modelo do agronegócio tem levado o país ao duplo fenômeno de desindustrialização precoce e reprimarização da sua economia, cada vez mais baseada na exploração de commodities agrícolas e minerais. Esse é um modelo que amplia os desafios de se atingir segurança alimentar para todos e combater os efeitos das mudanças climáticas. O governo precisa reunir força política e se posicionar, começando pela defesa e lançamento do Pronara na sua íntegra. A parte da sociedade menos vista na Esplanada apoiará.
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De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, a alteração do Marco Regulatório vai colocar em risco a saúde do trabalhador rural