‘As políticas públicas precisam caminhar no sentido de que os alimentos saudáveis sejam mais baratos’

André Antunes, EPSJV/Fiocruz

Enquanto a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado recebe propostas de emendas ao texto do projeto de lei que regulamenta a reforma tributária, aprovada no final do ano passado, entidades que atuam na área da saúde têm se mobilizado para propor alterações ao projeto, visando atender a algumas pautas do setor. Uma delas é o Idec, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, cujos especialistas veem na discussão sobre a reforma tributária uma oportunidade de inibir o consumo de alimentos nocivos à saúde, como os ultraprocessados, bem como o uso de agrotóxicos no país. É o que diz a especialista em saúde pública do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Ana Maria Maya. Para ela, o novo sistema tributário brasileiro precisa criar incentivos ao consumo de alimentos saudáveis, como os produtos orgânicos – atualmente considerados muito caros para a maior parte dos brasileiros – bem como dificultar o consumo de alimentos associados a problemas como obesidade e doenças cardiovasculares.

Qual é a expectativa para a tramitação do projeto de regulamentação da reforma tributária no Senado? Há uma correlação de forças mais favorável do que na Câmara?

Este é um assunto que a gente acompanha desde que a discussão começou no Executivo. E o que percebemos é que tem sido um processo com muita interferência, principalmente da indústria de produtos alimentícios ultraprocessados. Ao longo desse processo acompanhamos a concessão de benefícios a alguns produtos que causam danos à saúde, como subsídios e incentivos fiscais para margarina, massas instantâneas, compostos lácteos. E para agrotóxicos que são insumos para produzir alimentos de forma insustentável e que vão causar impacto negativo no meio ambiente. A gente acompanha esse processo com preocupação, de qual será o impacto disso na saúde da população brasileira e no consumo alimentar.

Esse foi um dos pontos mais polêmicos do texto aprovado na Câmara, que votou pela inclusão dos agrotóxicos na mesma categoria de produtos como mel, leite fermentado e sucos naturais, o que significa uma isenção de 60% na alíquota padrão criada pela reforma, o chamado IVA, ou Imposto por Valor Agregado. O que significa uma perpetuação das isenções concedidas a esses produtos pelo Estado brasileiro há décadas: segundo a Receita Federal deixou-se de arrecadar quase R$ 6 bilhões no ano passado devido às isenções para os agrotóxicos. Há possibilidade de reverter essa distorção no Senado? Qual seria o impacto dessa aprovação?

A política tributária de um país vai orientar o consumo e o uso de determinados produtos. Ela tanto pode incentivar quanto ajudar a reduzir o consumo de determinado produto. Para a saúde, a gente tem um exemplo muito nítido que é o do tributo sobre os derivados do tabaco. A política tributária foi importante para a gente reduzir o tabagismo. E aí a gente olha como a reforma tributária tem sido discutida, no sentido de conceder incentivo fiscal para agrotóxico, no qual ele tem mesmo tratamento tributário que produtos considerados saudáveis, como mel, tapioca. Você está incentivando que ele seja usado. A gente também tem acompanhado com muita preocupação os impactos do uso de agrotóxicos na saúde de quem produz alimentos, mas também de quem consome. Hoje a gente não tem dúvidas do impacto negativo do consumo de agrotóxico e também do uso na produção. É muito preocupante que esses produtos não estejam sendo considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente.

A justificativa é de que é um produto essencial para garantir a soberania alimentar do país e a produção de determinados alimentos. O argumento é que a gente só vai conseguir produzir em larga escala para alimentar o país se tiver o uso desse subsídio. Só que a gente já tem iniciativas que mostram que a gente consegue fazer uma transição na forma de produção de alimentos, mais sustentável e saudável. O que a gente percebe é a interferência do lobby de quem vende esse produto e de quem usa esse produto. De forma irracional, abusiva, interferindo nesse processo de construção dessa política pública.

O chamado ‘imposto seletivo’, a alíquota mais alta de imposto criada pela reforma que reúne os produtos considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente, atualmente lista apenas os cigarros, as bebidas açucaradas, as bebidas alcoólicas e os produtos derivados da extração de minérios, petróleo e gás natural. Você citou anteriormente os alimentos ultraprocessados; a ideia é que eles sejam incluídos nessa categoria também?

O Idec fez uma pesquisa para identificação de agrotóxicos em produtos alimentícios ultraprocessados, que já está na sua segunda edição. A gente sabe da presença do agrotóxico em alimentos in natura, produzidos de forma convencional. Isso já estava mapeado. E havia o discurso de que os ultraprocessados poderiam ser mais saudáveis porque eles não teriam contaminação por agrotóxicos. E o que a gente viu é que isso não é verdade. Como a base para a maioria dos ultraprocessados vai ser milho, trigo, soja, que são grãos  produzidos com agrotóxicos, a gente tem encontrado resíduo nesses produtos. E até em produtos como presunto encontramos resíduos de agrotóxicos. Os ultraprocessados fazem mal para a saúde humana, para a saúde do meio ambiente, porque as práticas de produção deles também são insustentáveis, e além de tudo eles trazem a contaminação por agrotóxicos, o que piora o perfil nutricional desses alimentos e reforça ainda mais a importância de que eles sejam evitados.

Como o sistema tributário poderia contribuir para isso?

É importante olhar para o cenário epidemiológico do país. A gente acompanha o aumento do excesso de peso e de outras doenças crônicas relacionadas à má alimentação. O principal fator de risco que a gente tem para as doenças crônicas hoje é a má alimentação. E uma das estratégias mais efetivas é olhar para o preço do que as pessoas estão comendo. As políticas públicas precisam caminhar no sentido de que os alimentos saudáveis sejam mais baratos e acessíveis. E os menos saudáveis, como os ultraprocessados, têm que ser menos acessíveis, tanto física quanto financeiramente.

A reforma tributária é um processo importante que está olhando para isso, que vai dizer sobre os impostos que incidem sobre esses produtos. Mas infelizmente a gente não conseguiu incluir os ultraprocessados no rol de produtos a receberem imposto seletivo. A nível de saúde pública, o único avanço que a gente teve foi que o seletivo fosse aplicado a algumas bebidas açucaradas, que é um avanço, mas absolutamente insuficiente.

Se conseguíssemos incluir mais ultraprocessados dentro do imposto seletivo, ou pelo menos garantir que eles não recebam nenhum incentivo fiscal, seria um importante avanço para a saúde pública e para as nossas políticas sociais e econômicas de uma forma geral. Outra coisa é a inclusão dos agrotóxicos no imposto seletivo, e que também avancemos nas discussões de regulação do uso de agrotóxicos no país. Acho que são medidas essenciais para a gente falar de uma forma mais séria sobre os impactos em saúde que esses produtos têm causado para o nosso país.

Qual é a justificativa para conceder incentivos fiscais a produtos ultraprocessados, como a margarina?

Um dos critérios utilizados na Câmara foi relacionado ao consumo alimentar da população, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares [divulgada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE]. Entre os vários mapeamentos que essa pesquisa faz está o de com que o brasileiro está gastando mais. O que ele está comprando mais, mais consumindo. Então de acordo com essa pesquisa a margarina, por exemplo, é um produto que é muito consumido. Mas a gente sabe que a margarina só está sendo tão consumida porque é um alimento barato. E aí eu acho que tem essa discussão do que a nossa política tributária vai incentivar as pessoas a comerem, especialmente as que estão em situações de vulnerabilidade. As pessoas mais pobres são aquelas que comem pior no país. E por quê? Porque em geral elas comem o que está mais barato. Então é muito complicado a gente falar do que o brasileiro mais consome, sendo que ele está consumindo o que está mais barato, mesmo que prejudique a saúde, porque é o que ele consegue comprar e comer.

Então essa discussão tem que ser feita. O que a gente quer incentivar? O Brasil vai continuar incentivando o consumo, pelos mais pobres, de um produto que vai impactar negativamente a saúde deles. E eu acho que tem uma pesquisa também muito interessante para ser citada nesse cenário, que foi feita na periferia do Rio de Janeiro, que perguntou para os moradores de lá se eles sabiam o que era alimentação saudável, e eles sabiam [‘Percepção dos residentes de favelas brasileiras sobre o ambiente alimentar: um estudo qualitativo’, publicada em março de 2024 no periódico científico Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, a Ensp/Fiocruz]. Eles citam os alimentos orgânicos e dizem que gostariam muito de ter mais acesso a esses alimentos e eles só não compram e não comem porque eles são muito caros. Então reforçando que a nossa população mais vulnerável está comendo mal porque não tem acesso, e as nossas políticas precisam olhar e cuidar desses grupos populacionais.

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