Saúde global: a nova infiltração das corporações

Em cúpula paralela à Assembleia da ONU, países aprovaram documento que promove reforma no funcionamento do sistema multilateral. Suas diretrizes promovem a intrusão do poder corporativo nas decisões globais – inclusive na Saúde

Por Gonzalo Terrón e Pedro Villardi, para a coluna Saúde não é mercadoria, em Outra Saúde

Nos últimos tempos, com o avanço da ultradireita, temos visto os ataques ao sistema multilateral intensificaram-se tanto no Sul quanto no Norte globais. Em uma de suas primeiras ações no governo, em meio à pandemia de COVID-19, Trump retirou o financiamento dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em maio deste ano, durante a Assembleia Mundial da Saúde, grupos de ultradireita organizaram manifestações contrárias ao evento, além de disseminarem teorias conspiracionistas sobre uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro da Eslováquia, por supostamente não ter aderido ao chamado Tratado das Pandemias. Por isso, é cada vez mais urgente repensar a governança global para que o multilateralismo ofereça respostas às múltiplas crises que caracterizam a atualidade.

É nesse contexto que, na segunda-feira (23/9), em um evento paralelo à 79ª Assembleia das Nações Unidas em Nova Iorque chamado Cúpula do Futuro, foi adotado o documento “Pact of the Future, Global Digital Compact, and Declaration of Future Generations”, que definirá em que termos a ONU funcionará nas próximas décadas.

Nele, se fala de “acelerar esforços para alcançar a cobertura universal de saúde” e “proteger o direito de usufruir do mais alto padrão de saúde mental e física”, além de paz e segurança, desenvolvimento sustentável, mudanças climáticas, cooperação digital, direitos humanos, gênero, juventude e futuras gerações e governança global. Mas apesar dos títulos pomposos e temas atuais e relevantes, as soluções apontadas pelo Pacto não apontam para um futuro com mais justiça social, igualdade, saúde, menos fome, e com o planeta preservado.

O documento adotado pavimenta o caminho para que as empresas e os poderosos grupos de interesse participem cada vez mais profundamente do funcionamento das Nações Unidas, e da governança global no papel de “partes interessadas”. Porém, após décadas de influência das grandes empresas nas decisões globais, está claro que essa abordagem só piorará a situação, que já é crítica.

Vivemos em um mundo cada vez mais desigual, os países não conseguem financiar adequadamente seus sistemas de educação, saúde e seguridade social; testemunhamos a devastação ambiental para a expansão do agronegócio, que ameaçam biomas inteiros. Ao mesmo tempo, no nível multilateral, corporações sentam-se à mesa, propondo falsas soluções, tais como o mercado de crédito de carbono. O que nos choca é ver diversas organizações da sociedade civil, de todas as partes do mundo, celebrando a consagração da captura corporativa da governança global. Não há o que comemorar.

Unir os povos contra a intrusão das corporações no sistema multilateral

Durante os dias 19, 20 e 21 de setembro, o Transnational Institute (TNI), uma ONG baseada na Holanda, em parceria com diversas outras organizações e movimentos sociais, tais como Movimento pela Saúde dos Povos (MSP), Amigos da Terra (AdT), FIAN Internacional, entre outros, organizou um evento em Nova Iorque com o tema “Stop Neoliberal Globalization, Corporate Capture and the Far-Right”, ou “Paremos a globalização neoliberal, a captura corporativa e a extrema direita”.

Nos três dias de discussão, nos quais foram analisados cada capítulo do Pacto pelo Futuro, o objetivo foi avançar demandas por um sistema multilateral mais eficaz, democrático e justo, construir conjuntamente soluções transformadoras para os principais problemas do nosso planeta e desafiar a “ONU 2.0” do Secretário-Geral da ONU, que traz um papel maior para as corporações transnacionais, o multistakeholderismo e a “governança em rede”.

Buscamos uma nova visão para a cooperação internacional, uma visão de um mundo que se concentra nas necessidades das pessoas e na preservação e recuperação do meio ambiente, afastando a ideia de um mundo controlado por corporações, em que a busca do lucro vale mais do que a vida e coloca em risco a própria existência do planeta como o conhecemos hoje.

Acreditamos, defendemos e nos organizamos para alcançar um multilateralismo centrado nos povos e na defesa do planeta. Um multilateralismo que diferencie interesses públicos e interesses privados e que priorize necessidades de populações inteiras, frente ao avanço dos privilégios corporativos. Que coloque, enfim, a vida antes do lucro.

Acreditamos que o multilateralismo pode ser um veículo de mudança, de avanço da justiça social e da preservação do planeta. Mas para isso, países do Sul Global precisam tomar o protagonismo — respaldados por seu poder numérico, demográfico e econômico — e lutar pela sobrevivência de suas próprias populações. Ao mesmo tempo, movimentos sociais e organizações da sociedade civil que aplaudiram a consagração da captura corporativa da governança global, no lugar de participarem do circo, precisam mobilizar e apoiar o campo de organizações e movimentos sociais que realmente busca mudanças substantivas.

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