Por Jeffer Castelo Branco, Rafaela Rodrigues da Silva, Mari Polachini e Dra. Cecília Zavariz*
O Governo de São Paulo poderá, nos próximos dias, sancionar e converter em Lei o Projeto nº 1475 de 2023. Aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado (ALESP), o PL visa resguardar inicialmente a reprodução humana e, para isso, proteger crianças, grávidas, lactantes, pessoas atingidas por doenças específicas, bem como profissionais que atuam na área odontológica e em territórios rurais e urbanos; além de defender a saúde e o meio ambiente e as diversas formas de vida da toxicidade do mercúrio, pelos motivos apresentados a seguir.
A odontologia, setor extremamente avançado tecnologicamente no país, deve agora fazer a transição para o fim do uso do mercúrio em suas atividades; o uso de amálgama dentário contendo o metal tóxico deve terminar. Os materiais substitutos disponíveis são seguros, eficazes e econômicos; essas restaurações que substituem o amálgama estão cada vez mais modernas, duradouras, não são prejudiciais aos dentes e evitam a formação de cáries.
Nas últimas décadas, todos os dentistas têm sido formados e treinados nas faculdades e universidades para usarem materiais que já substituem o amálgama de mercúrio, que são mais benéficos aos dentes e à saúde das pessoas. Entretanto, a velha guarda, ou seja, os dentistas mais arraigados a procedimentos ultrapassados há bastante tempo, não querem alterar seus hábitos e desta forma, ensejam que o Governador vete o projeto de lei, para poderem continuar a usar o amálgama dentário de prata, que contém 50% de mercúrio, um material primitivo, tóxico e muito poluente.
O amálgama dentário tem sido usado por mais de 150 anos, supostamente introduzido na Inglaterra em 1819 por Joseph Bell. Em 1876, o dentista francês Onessiphore Taveau, defendia o uso da “pasta prata” para as restaurações dentárias. Contudo, há alguns séculos verificaram-se os malefícios à saúde. Em 1840, a Sociedade Americana de Cirurgiões-Dentistas reconheceu o amálgama e todas as substâncias com mercúrio como nocivas aos dentes e para todas as partes da boca. Alfred Stock (1926) identificou o amálgama como fonte de vapor de mercúrio e alertou que este deveria ser abolido da odontologia. Muitos outros estudos têm sido publicados contraindicando o uso de amálgama de mercúrio nos tratamentos odontológicos[1],[2].
Na América do Norte, as duas agências reguladoras de saúde, a US Food and Drug Administration e a Health Canada, alertam que o amálgama dentário apresenta riscos substanciais à saúde de crianças, mulheres que estão grávidas ou que podem engravidar e pessoas com problemas renais e condições neurológicas pré-existentes, recomendando que seja evitado o uso nestas populações.
A Convenção de Minamata sobre Mercúrio, cujo objetivo é proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos de emissões e liberações de mercúrio e seus compostos, a qual o Brasil é signatário, preconiza, desde 2023, o fim do uso do amálgama em crianças menores de 15 anos, em grávidas e lactantes, portanto, agora o Estado de São Paulo estará em consonância com o tratado internacional.
A União Europeia anunciou neste ano de 2024 que vedará o uso do amálgama já a partir de 1º de janeiro de 2025 para toda a sua população. A decisão é válida para seus 27 países-membros.
Como o mercúrio é o mais volátil dos metais pesados, os riscos no local de trabalho são reais para os trabalhadores do setor odontológico, tais como, gravidez problemática, infertilidade, entre outros. Muitos dentistas no Estado de São Paulo já pararam de usar o amálgama de mercúrio, mas outros ainda usam o metal tóxico e colocam os funcionários em perigo, devido às muitas horas diárias de respiração aos vapores de mercúrio. Os consultórios que utilizam mercúrio têm concentração mensurável do metal, que é bioacumulativo no organismo.
Mas também, por causa dos danos ambientais, o amálgama é um problema para todos nós. Por ser tóxico ele contamina o solo e as águas atingindo os vegetais e os peixes que adulto e, crianças consomem, o que pode causar danos cerebrais permanentes, conforme alerta a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos da América (EPA). A preparação, armazenamento e destinação final adequada dos amálgamas de mercúrio nos serviços, além de difícil é ineficiente e, os custos secundários desses serviços recaem sobre os contribuintes.
Não é aceitável que a odontologia, um setor que hoje realiza, com tanta eficácia, procedimentos de alta complexidade, continue a transferir os custos das antigas restaurações de mercúrio, de forma direta e indireta, para a sociedade.
O Parecer Técnico do Ministério da Saúde sobre orientações quanto ao uso do amálgama dentário no Brasil, reconhece que defender o uso do amálgama de mercúrio, por ser de menor custo, não condiz com a condição atual, pois: “o amálgama dentário de mercúrio [antigamente] possibilitava a realização de restaurações dentárias sem necessidade de infraestrutura e equipamentos, por exemplo, facilitava o uso em comunidades afastadas sem energia elétrica. No contexto atual em que se introduziu o amálgama encapsulado, o uso de equipamentos adicionais e energia elétrica são indispensáveis (BRASIL, 2022)”.
O referido Parecer também elucida sobre o avanço dos materiais substitutivos que retiram menos tecido dentário, sendo minimamente invasivos, portanto, mais amigáveis aos dentes: “Estudos clínicos longitudinais indicam que restaurações de resina composta podem apresentar grande durabilidade clínica, com longevidade comparável às restaurações de amálgama[3],[4].
A exemplo dos materiais modernos permite que reparos sejam realizados em restaurações que apresentem falhas localizadas, com boa durabilidade clínica e num contexto de prática restauradora minimamente invasiva. Neste sentido, a falta de adesividade do amálgama de mercúrio aos tecidos dentários requer que maior quantidade de estrutura dentária seja removida para realizar a restauração, contribuindo para uma prática mais invasiva. A resina composta e outros materiais adesivos, por sua vez, concordam com procedimentos menos invasivos (BRASIL, 2022)[5].
No mesmo documento ministerial é citado o Comitê Científico sobre novos e emergentes riscos identificados à saúde[6]: “o uso de restaurações de amálgama deve ser evitado em gestantes e em mulheres que estão amamentando, visando reduzir a exposição do feto”, reconhece também que o futuro chegou e que o foco da formação do profissional da odontologia está “no ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico contemporâneos em materiais adesivos, que permitem procedimentos restauradores menos invasivos”.
Os dados atuais de restaurações odontológicas demonstram que o Estado de São Paulo, nos últimos 4 anos, foi responsável por cerca de 49% de todas as restaurações com amálgama de mercúrio no Brasil, somando 351 mil restaurações com o metal tóxico (Gráfico 01)[7].
Por outro lado, nesse mesmo período de 4 anos, São Paulo fez com afinco a lição de casa, sendo que cerca de 93% das suas restaurações, em torno de 5 milhões, foram realizadas sem amálgama de mercúrio. Assim, é uma pequena parte da população que ainda recebe restaurações e obturações de mercúrio em seus dentes.
O Estado de São Paulo pode ser o pioneiro no Brasil e exemplo, se assumir a liderança para acabar com esse atraso socioambiental. Ademais, está claro que o Estado se encontra devidamente preparado para avançar ainda mais na proteção dos usuários dos serviços odontológicos (Gráfico 02)[1], indo em favor da saúde e do meio ambiente.
Portanto, São Paulo pode estar em consonância com os dispositivos mais protetivos da Convenção de Minamata ao vedar o uso do amálgama de mercúrio em mulheres gestantes, lactantes ou em idade reprodutiva; crianças e adolescentes até 14 anos; pessoas com doenças neurológicas ou renais e; em pessoas com antecedentes de exposição prolongada ao mercúrio ou diagnóstico prévio de intoxicação pelo mercúrio e, com um prazo de três anos para estender à toda a população.
São Paulo é o Estado mais rico do Brasil, respondendo por cerca de 30% do PIB do País. No entanto, ainda é o que mais usa esse material odontológico tecnologicamente ultrapassado, levando, sem necessidade, perigo para o meio ambiente e, de forma direta e indireta, para a saúde das pessoas.
Os dados oficiais disponíveis do último ano (2023), revelam que apenas 6,66% de todas as restaurações realizadas no serviço público, no Estado de São Paulo, foram com amálgama de mercúrio. A conversão integral do Projeto de Lei 1475/2023, em LEI ESTADUAL, colocará o Estado na vanguarda da Saúde Bucal e entre os mais avançados do planeta e vai sinalizar ao país as medidas mais seguras que devem ser tomadas para preservar a saúde e o meio ambiente, conforme disposto no Artigo Primeiro da Convenção de Minamata, cujo Brasil é signatário juntamente com cerca de 140 países.
Adicionalmente, estudos que consideraram escolaridade, tipo de acesso ao serviço odontológico, idade, cor de pele, concluiu que pessoas negras têm menor chance de substituição de amálgama de mercúrio por restaurações de resina composta, em relação às brancas, assim como indivíduos com alto nível de escolaridade aos 31 anos foram mais propensos de terem as suas restaurações posteriores de amálgama substituídas por resinas compostas[8]. Esses dados podem estar configurando uma injustiça socioambiental, inclusive na perspectiva do Racismo Ambiental, já que estamos falando de maior possibilidade de exposição química das minorias a um dos maiores poluentes do mundo.
*Dr. Jeffer Castelo Branco, Dra. Rafaela Rodrigues da Silva, Engª. Mari Polachini; Dra. Cecília Zavariz – Aliança Mundial para a Odontologia Livre de Mercúrio no Brasil.
O presente artigo tem como base a carta enviada ao Governo do Estado de São Paulo. A versão completa, com todos os subscritores, está disponível no endereço: https://acpo.org.br/mercurio/carta_governador.pdf
Referências
[1] Idem a referência 3.
[1] GRIGOLETTO, JC.; OLIVEIRA, AS.; MUÑOZ, SS.; ALBERGUINI, LBA.; TAKAYANAGUI, AMM. Exposição ocupacional por uso de mercúrio em odontologia: uma revisão bibliográfica. Ciência & Saúde Coletiva, 13(2):533-542, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/hD4MCXzbj7jBzLgq4JXMwrg/?format=pdf&lang=pt. Acesso: jul. 2024.
[2] SAQUY, P. C. Identificação qualitativa de vapor de mercúrio captado de resíduo de amálgama de prata, em diferentes meios de armazenagem. Programa Incentivo à Produção de Material Didático do SIAE – Pró – Reitorias de Graduação e Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, 1999. Disponível em: https://www.forp.usp.br/restauradora/Teses/Paulold/Paulold.html . Acesso: jul. 2024.
[3] TOBIAS G, CHACKARTCHI T, MANN J, HAIM D, FINDLER M. Survival Rates of Amalgam and Composite Resin Restorations from Big Data Real-Life Databases in the Era of Restricted Dental Mercury Use. Bioengineering (Basel). 2024 Jun 7;11(6):579. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/38927815/ . Acesso: jul. 2024.
[4] HOFSTEENGE JW.; SCHOLTANUS JD.; ÖZCAN M.; NOLTE IM.; CUNE MS.; GRESNIGT MMM. Clinical longevity of extensive direct resin composite restorations after amalgam replacement with a mean follow-up of 15 years. J Dent. 2023 Mar;130:104409. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36623686/. Acesso: jul. 2024
[5] BRASIL, Ministério da Saúde. Parecer Técnico nº 6/2022-CGSB/DESF/SAPS/MS. Secretaria de Atenção Primária, Departamento de Saúde da Família, Coordenação de Saúde Bucal. Brasília, 2022. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/image/?file=20220916_N_ParecerAmalgama_5748663761191058646.pdf . Acesso: jul. 2024.
[6] SCENIHR (Scientific Committee on Emerging and Newly-Identified Health Risks). Opinion on the safety of dental amalgam and alternative dental restoration materials for patients and users (update), 29 April. European commission. DG Health and Food Safety. 2015. Disponível em: https://ec.europa.eu/health/scientific_committees/emerging/docs/scenihr_o_046.pdf. Acesso: jul. 2024.
[7] BRASIL, Ministério da Saúde. Produção Ambulatorial (SIA/SUS). DATASUS, [Dados Online, 2020-2023]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/producao-ambulatorial-sia-sus/. Acesso: jul. 2024.
[8] CHISINI, LA.; et al. Skin color affect the replacement of amlagam for composite in posterior restotations: a birth-cohort study. Braz Oral Res. 2019;33:e54, Published 2019 jul 29.Skin color affect the replacement of amlagam for composite in posterior restotations: a birth-cohort study. Braz Oral Res. 2019;33:e54, Published 2019 jul 29.