Estudo da organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA) identificou o sumiço de 4,9 milhões de hectares sobrepostos a desmatamentos, embargos ambientais e áreas protegidas do perímetro declarado em terras privadas na Amazônia
Por Daniela Penha | Edição Bruna Borges, em Repórter Brasil
PROPRIETÁRIOS DE TERRAS na Amazônia Legal têm alterado o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de suas propriedades e, como consequência, eliminado do perímetro declarado registros de infrações ambientais como embargos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e sobreposições com Terras Indígenas. É o que revela um estudo da organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA) lançado hoje.
Ao “apagar” no papel as irregularidades ambientais de suas fazendas, os proprietários evitam também restrições para a obtenção de financiamentos com recursos públicos, já que as regras do Banco Central vedam a concessão de crédito para propriedades com áreas embargadas ou sobrepostas a Unidades de Conservação (UCs).
Entre 2019 e 2024, o estudo mapeou 14.223 propriedades em estados da Amazônia Legal que modificaram seus registros do CAR suprimindo áreas com restrições ambientais. São 9.621 casos de alterações envolvendo a exclusão de áreas com desmatamento, 4.358 casos de exclusão de embargos e 1.770 mudanças envolvendo a exclusão de sobreposições com áreas protegidas. Ao total, são 15.750 alterações, já que é possível que uma mesma propriedade tenha mudanças de perímetro por mais de uma questão.
Essas alterações fizeram desaparecer 4,9 milhões de território que antes constavam dentro do perímetro de propriedades privadas nos registros do CAR. O estudo identificou até propriedades que, pela localização informada no CAR após alterações feitas por seus proprietários, estariam em teoria situadas dentro de rios (463 casos). “Não faz sentido o sistema permitir que o cadastro seja deslocado para um local desses. Essas brechas devem ser identificadas e corrigidas”, comenta Heron Martins, coordenador do laboratório de geotecnologia do CCCA. “Os usuários entendem a lógica dessas brechas e atuam para se beneficiar.”
Essas modificações contribuem para a ocupação irregular de terras indígenas e são usadas por produtores rurais para burlar as regras ambientais, afirma o estudo do CCCA. A pesquisa foi feita com o apoio da Repórter Brasil, que cedeu à organização informações sobre o seu próprio banco de dados de registros do CAR.
O estudo alerta para o impacto dessas alterações em efeito cascata sobre os órgãos de controle ambiental, já que uma rede de instituições utiliza dados do CAR para checar irregularidades. Esse contexto acaba “minando iniciativas destinadas a reduzir o desmatamento e a fazer cumprir a proteção da terra”, aponta a organização.
As mudanças impactam todo o sistema de checagem, dificultando a identificação de fazendas que cometem crimes ambientais. Para mapear os casos, o CCCA cruzou dados do CAR de 2019 a 2024, dados de desmatamento mapeados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), embargos de áreas desmatadas aplicados pelo Ibama e informações sobre áreas protegidas, referentes aos limites oficiais das unidades de conservação e terras indígenas.
Criado em 2012 pelo Código Florestal, o CAR é um registro obrigatório para os imóveis rurais, que centraliza as informações ambientais das propriedades em um sistema eletrônico. O CAR é utilizado por órgãos públicos e privados na verificação de restrições ambientais da área, como embargos e desmatamentos, e na identificação de áreas de proteção, reservas e remanescentes. A declaração das informações da propriedade é feita pelos próprios proprietários no sistema, que oferece a possibilidade de editar e retificar dados de forma rápida e on-line, sem justificativas ou documentações que expliquem a alteração. Em 2023, de acordo com o estudo, havia mais de 7 milhões de registros no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) em todo o Brasil, sendo mais de 1 milhão na Amazônia Legal.
Pará é recordista em alterações de CAR
O Pará é o estado recordista em mudanças de CAR por desmatamento, seguido de Rondônia, Mato Grosso e Acre.
Em 2023, o Pará foi um dos estados que mais desmatou no Brasil, ocupando o quarto lugar no ranking, atrás do Maranhão, Bahia e Tocantins, de acordo com o MapBiomas. Foram 184,7 mil hectares perdidos no Pará. A agropecuária foi responsável por 93% do desmatamento, também segundo o MapBiomas.
Além da obtenção de financiamentos, a exclusão de restrições ambientais do perímetro declarado também colabora com a venda da produção das fazendas. “O desmatamento é empecilho para que os frigoríficos possam comprar. Os proprietários podem regularizar a área ou fazer uma edição no CAR. É rápido, não tem burocracia. Eles optam por essa opção”, explica Martins.
Entre as alterações por embargo, Pará e Rondônia “brigam” pelo pódio. Juntos, os dois estados representam 56% do total de casos.
A Repórter Brasil questionou as secretarias de meio ambiente dos estados do Pará, Rondônia, Mato Grosso e Acre sobre o monitoramento em alterações de CARs.
A Secretaria do Meio Ambiente do Pará informou que “analisa os CARs constantemente” e que “já cancelou 2.374 cadastros e suspendeu outros 3.654 cadastros inscritos em terras indígenas”. A Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso respondeu que “todas as informações e alterações inseridas ficam gravadas no sistema, o que possibilita a auditagem dos dados” e que esse procedimento é feito “no momento da análise”, porém não informou quantas alterações de CAR foram identificadas. A pasta também informou que, quando há identificação de alterações, atua com a “autuação do interessado e do responsável técnico, encaminhamento ao Ministério Público para providências cíveis e criminais e à Delegacia Especializada de Meio Ambiente, quando há indícios de cometimento de crime ou necessidade de investigação para materialidade da conduta”, mas não respondeu quantas foram as situações identificadas.
As secretarias de Rondônia e Acre não enviaram posicionamentos até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Alterações crescem ano a ano
A avaliação da regularidade dos registros dos CARs são feitas pelos estados, mas o sistema é gerenciado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Para Martins, a solução para corrigir as brechas deve mobilizar as duas esferas: “Todo o processo de validação é dos estados, mas o governo federal agrega e gera as ferramentas. Eu desconheço se existe um monitoramento ou processo ativo de buscas desse tipo de situação”, aponta.
Os dados mostram que a prática tem aumentado. Segundo o CCCA, o número de alterações de CAR cresce ano a ano. Entre 2019 e 2020, foram identificadas 1.091 alterações motivadas por desmatamento. Entre 2023 e 2024 o número subiu para 2.682 alterações. Martins alerta que a prática está avançando na Amazônia.
“É como se a notícia se espalhasse. Quem está oferecendo a solução? Em muitos casos, são responsáveis técnicos”, salienta Martins.
A Repórter Brasil também questionou o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima sobre o monitoramento em alterações de CARs e o funcionamento do sistema digital que integra os cadastros, porém o órgão não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue disponível para esclarecimentos.
Para Martins, é necessário que os governos aprimorem o sistema de registros do CAR, criando filtros para barrar situações descabidas como a alteração de uma área para dentro de um rio. Ele recomenda a implementação de uma ferramenta que obrigue os proprietários a justificarem – e documentarem – as alterações no cadastro.
“É preciso priorizar a análise dos casos que já aconteceram e verificar quais deles devem ser cancelados”, ressalta Martins.
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Áreas de pasto avançam sobre áreas de roça e de coleta de açaí a castanha, fundamentais para subsistência das comunidades. (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)