‘Diante da emergência climática, não dá mais para tratar o tema dos agrotóxicos como perfumaria’, diz pesquisadora

Larissa Bombardi destaca de forma positiva a iniciativa do presidente em debater o assunto perante interesses do agronegócio e das empresas europeias exportadoras de agroquímicos

por Claudia Rocha, em Fundação Perseu Abramo

Geógrafa, professora associada da Universidade de São Paulo, Larissa Bombardi mora atualmente na Europa. A pesquisadora foi obrigada a deixar o país por conta de ameaças que sofreu após a publicação do resultado de pesquisas que denunciavam os efeitos do uso dos agrotóxicos no Brasil, a partir do atlas “A Geography of Agrotoxins Use in Brazil and its Relations to the European Union” (Uma geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e suas relações com a União Europeia), em 2019.

Desde então, Bombardi, mesmo no exílio, continua a se relacionar de maneira intensa com o assunto. Em 2023, lançou o livro “Agrotóxicos e colonialismo químico”, pela editora Elefante, onde aborda o conceito por trás das origens da monocultura brasileira e a relação ambígua da União Europeia com países do sul global – com a exportação de uma lista de substâncias proibidas nos países do bloco.

Participando ativamente de alianças internacionais, a pesquisadora acredita no potencial da figura do presidente Lula enquanto um provocador do debate no âmbito das Nações Unidas. “Penso que seria muito auspicioso se o Lula for a pessoa tomar esse lugar de puxar os países a dizer que a gente precisa de uma regulação única”, opina. Confira a entrevista:

Recentemente, o presidente Lula deu uma declaração em uma reunião com os chefes dos poderes em que demonstrou insatisfação com o fato do Brasil receber boa parte dos agrotóxicos proibidos em países europeus. Ele sinalizou, inclusive, que quer tratar o assunto, com cautela, junto à bancada ruralista. Como você avalia a postura de Lula no tema?

Eu avalio de uma forma extremamente positiva, eu penso que é um novo momento do Lula e do PT, em que faz parte desse projeto político olhar com atenção o tema ambiental. Então, o Lula tenta, eu vejo, protagonizar essa pauta mundialmente e o tema dos agrotóxicos e da agricultura é algo central nisso. Acho que esse é o primeiro aspecto a ser ressaltado. Obviamente, que não é um ambiente fácil, a gente sabe que o Brasil é um país predominantemente urbano, mas a nossa representação tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado é majoritariamente vinculada ao agronegócio. Então, é um enorme desafio a ser enfrentado e, para mim, tem a ver com essa expressão que eu uso de colonialismo e colonialidade, mas eu já chego lá. E por que eu estou dizendo que é um enorme desafio? Porque a gente acabou de ver o projeto de lei que ganhou o apelido de “pacote do veneno” ser aprovado. Não só ele foi aprovado, como o presidente Lula propôs vários vetos, todos derrubados. Quer dizer, é um retrocesso que a gente tá vendo. Infelizmente, mesmo no curso do governo Lula, é um passo para trás enfraquecer a nossa própria lei de agrotóxicos. Mas, eu penso ser positivo o fato do Lula se mostrar consciente desse tema, que é um tema muito importante, que tem a ver, não só com o uso massivo de agrotóxicos no Brasil, mas tem a ver também com esse padrão duplo, essa enorme diferença entre a regulação europeia para agrotóxicos e a regulação brasileira. Ele inclusive citou a Alemanha na fala dele.

E, internamente, com relação às políticas para o setor…

O governo está empenhado. Já houve o adiamento de mais de uma vez da aprovação da política nacional de produção orgânica. E por quê? Por que houve esse adiamento? Porque era necessário que o Pronara, que o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, estivesse atrelado à política nacional de produção orgânica, porque seria um contrassenso, inclusive, se ele não tivesse. Não tem como a gente avançar na produção orgânica agroecológica, se a gente não fizer frente, se a gente não diminuir os agrotóxicos, se a gente não repensar a maneira como esses agrotóxicos são utilizados. Isso eu estou dizendo no curto prazo. No longo prazo, o que eu espero dessa sociedade é que a gente elimine essas substâncias, mas, a curto prazo, é óbvio que para poder aumentar a produção orgânica e agroecológica tem que estar atrelado a isso uma política de redução de agrotóxicos ou então uma coisa sufoca a outra. Quer dizer, esse intensivo de agrotóxicos, da forma como se dá, no volume em que se dá, sufoca a possibilidade de ampliação da produção orgânica e agroecológica, então, eu vejo um embate interno. Por um lado, por exemplo, a gente tem um Ministério do Desenvolvimento Agrário junto com o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Saúde empenhadíssimos nessa pauta, já temos frutos, eu diria, a gente vê frutos disso. Por outro lado, o Ministério da Agricultura, que representa o agronegócio, com muita força, barrando esse caminho. Então, eu penso que é o momento do Lula escolher em qual lado da história ele vai querer estar, entende? Porque a gente tá falando de um de um projeto de nação e, mais do que isso, de um de um pacto civilizatório, sabe? Diante da emergência climática não dá mais para fechar os olhos e achar que o tema dos agrotóxicos é qualquer coisa, que é perfumaria. A questão de como a agricultura acontece no mundo de hoje é central, inclusive, para entender a emergência climática, para fazer frente a ela. Obviamente que não é fácil. Por isso mesmo ele mesmo mencionou a bancada ruralista, né?

Você tem um livro que aborda essa situação em uma metáfora com o colonialismo… 

Sim, é sobre isso, o que é essa bancada ruralista que a gente tem hoje? É ainda o nosso histórico de colonialidade. Por que também eu falo de colonialismo químico, né, para entender quando o Lula diz ‘não é possível que no Brasil a gente continue consumindo substâncias que são proibidas na Alemanha, na Europa’. Então, a gente tem essas empresas europeias controlando mais de um terço das vendas mundiais de agrotóxicos, uma importante parte desses agrotóxicos são vendas de substâncias proibidas aqui na União Europeia que vão para países pouco regulados, o Brasil é o maior destino dessa substâncias. Eu vou dar um exemplo claríssimo da semana passada. A França adotou uma regulação, há dois anos, de proibir, independentemente das decisões da União Europeia, a produção, a estocagem e a exportação de agrotóxicos proibidos no próprio território. E foi feito um levantamento, por uma organização suíça chamada Public Eye, que descobriu que a França continua exportando, as empresas conseguiram encontrar uma brecha na lei e o país continuou exportando essas substâncias proibidas. Esse levantamento mostrou quais são as substâncias e para onde elas vão e o Brasil é o maior destino, por exemplo, dos neonicotinoides que a França segue exportando. Essas substâncias afetam diretamente a morte dos insetos, a gente sabe disso por causa das abelhas, sabemos que elas estão morrendo porque os produtores de mel relatam e denunciam, os neonicotinoides continuam proibidos na União Europeia pelo risco de perda de biodiversidade. E aí a gente olha o gráfico e o Brasil, e o país é o principal destino, com uma grande distância do segundo país, que é a Ucrânia. O que isso tem a ver com colonialidade, né? Se a gente for pensar no colonialismo histórico, no colonialismo clássico, como uma metáfora inclusive para a gente poder fazer um salto no tempo e no espaço, esse colonialismo clássico se estruturou por meio da devastação, por meio da eliminação, do despejo, da intimidação dos povos originários para que a Europa naquele momento pudesse se apropriar desses bens. E durante os séculos de colonialismo, a mão de obra utilizada para poder implantar as monoculturas na América toda foi a de pessoas escravizadas. Naquele momento, a escravização de pessoas seria uma coisa impensável no continente europeu, mas, companhias que estavam comercializando pessoas escravizadas eram companhias europeias, então elas comercializavam aquilo que elas não toleravam, o que era fora daquele pacto de sociedade. Então, a gente tem esse comércio mundial que envolve bilhões de dólares, cerca de 60 bilhões de dólares por ano, a gente tem uma Europa que exporta essas substâncias que ela não tolera aqui. Então, eles têm uma narrativa de dizer que é uma ação respeitosa, que é direito dos países. Obviamente que a gente não vive num momento colonial, não é isso que eu tô dizendo, mas as estruturas coloniais elas estão presentes tanto nas nas ações da União Europeia quanto nas ações do Brasil, por exemplo. A gente tem hoje um quadro de concentração fundiária enorme, e só aumentou nos últimos anos, onde os proprietários de terra decidem o destino de um território inteiro, e eles são muito bem articulados com os parceiros europeus que produzem os agroquímicos.

E me parece que algo que é bastante perverso nesse assunto é que, por mais que seja alarmante, o agrotóxico acaba quase invisível no prato enquanto o seu uso, como um todo, é bastante agressivo, com lançamentos em aviões, inclusive. Isso contribuiu para que o problema não seja debatido, reforça a voz do agro, né? Fica parecendo que o mais caro e inviável é a agricultura familiar e não o contrário. Por que, com tantos contras, ainda é tão lucrativo para o setor a utilização dos agrotóxicos? Você acha que é possível combater esse lobby que diz que eles são necessários para manter o plantio em larga escala tanto para o mercado interno quanto externo?

Eu acho que o melhor argumento para mostrar que, na verdade, isso não se sustenta são os dados sobre a fome. Os dados sobre a fome, mundialmente, mostram que a fome cresceu no mundo nas últimas décadas e que a gente não superou o problema, apesar de toda essa tecnologia. E os dados do Brasil são ainda mais chocantes, então a gente vê que a área agrícola nos últimos anos aumentou 30%, mas, mesmo assim, a fome também aumentou no Brasil nos últimos anos. Então é uma agricultura que não serve para alimentar a população brasileira. Obviamente que, em um primeiro momento, há um ganho de produtividade, mas o que acontece é que ao longo prazo isso não se sustenta porque essa tecnologia ela funciona em larga escala, ela funciona quando há possibilidade de homogeneizar, de ter monocultura, e a própria existência da monocultura, ela vai implicar no aparecimento de doenças. É uma agricultura que é feita com adubação química, então, as mesmas empresas que produzem os agrotóxicos são as mesmas que produzem os fertilizantes químicos, que é uma parte das mesmas que produzem as sementes que são comercializadas. Quando você começa adubando a terra com com adubo químico, esses adubos normalmente têm três minerais só, então há um empobrecimento ao longo prazo do solo, daquilo que as plantas vão se alimentar. O que passa a acontecer é que essas plantas potencialmente ficam doentes, a doença é no sentido de que ficam suscetíveis, elas vão ficar muito mais suscetíveis ao aparecimento de fungos. Lógico que quando você tá num lugar em que tem a biodiversidade preservada, em que você tem um consorciamento de culturas no mesmo lugar existe uma infinidade de possibilidades de alimentação para os insetos, mas em uma área com apenas um tipo de alimento, fica mais fácil para eles acessarem, e assim eles são chamados de pragas, nessa concepção. Falei tudo isso para dizer que, na verdade, essa agricultura em larga escala só se sustenta por meio do uso de agroquímicos. Uma agricultura artificializada, a monocultura, ela vai na contramão do arranjo da natureza, que precisa ser biodiversa. Os interesses de quem produz soja transgênica caminham junto de quem vende a semente transgênica.

Existe um caso bastante citado, que é o da Bayer, né? Produtora do agrotóxico, que causa uma série de doenças nos seres humanos e, ao mesmo tempo, uma grande expoente da indústria farmacêutica. Pegando esse gancho, a gente sempre se choca com os novos estudos que apontam os danos dessas substâncias no nosso organismo, são muitos dados nesse sentido. Em linhas gerais, o que você pode destacar dessa questão?

Olha, tem muitas pesquisas mostrando aumento de câncer relacionado com exposição ao agrotóxico em diversos lugares do mundo e no Brasil também, cada vez mais artigos mostrando essa conexão. Estamos falando de câncer, isso é uma coisa importante. Também são muitos casos de malformação fetal, são realmente muitos casos. A professora Silvia Brandalise mostra que 70% dos casos de malformação fetal são derivados de exposição ambiental ou do pai ou da mãe, ou seja, um agente externo e não um problema necessariamente genético. Abortos espontâneos, alterações hormonais, puberdade precoce, infertilidade, além de mal de Alzheimer e de Parkinson.

E com relação aos efeitos no solo para os nossos biomas?

Vou dar o exemplo de uma substância que se chama atrazina, que já é proibida na UE faz 21 anos. Além dela estar associada a diversos tipos de câncer de ovário, de tireoide, de próstata, de estômago, essa substância se dissipa facilmente, é altamente diluível em água. O uso dessa substância na Amazônia brasileira, por exemplo, aumentou 575% nos últimos 10 anos. E ela é considerada um castrador químico porque tem estudos que mostram que a exposição de alguns sapos a essa substância faz com que eles mudem sexo, os sapos machos viram sapos fêmeas, alterando os hormônios sexuais. Então imagina o que significa isso, por exemplo, no bioma da Amazônia. Uma substância que tem esse grande efeito perigosos ambiental porque se dissipa na água dessa forma, em um lugar que representa uma parte enorme da água doce do planeta, em que todos esses seres aquáticos estão presentes e você tem uma substância que além de tudo é um castrador químico.

Além dos neonicotinoides que estão ligados ao desaparecimento de insetos, que significa o fim da polinização e uma diminuição da biodiversidade, a longo prazo da própria produção agrícola. Temos pesquisas do professor Wanderlei Pignati no Pantanal que mostram os efeitos em diversos animais porque o bioma recebe a água contaminada, é um problema muito grave. Existem pesquisas que mostraram até onças pintadas e antas mortas intoxicadas.

Sobre o que você dizia no começo, do que é proibido na União Europeia e permitido aqui. Ao exportarmos o resultado da nossa agricultura cultivada com agrotóxicos, os países do Norte global também acabam consumindo por tabela, correto? Portanto, esse tema, na verdade, é uma discussão que precisa ser feita de maneira global, não é mesmo?

Sim, é realmente um tema para o mundo inteiro. A gente realizou uma conferência em Brasília, em 27 de junho, sobre a necessidade dessa regulação mundial e vamos finalizar com outra, no dia 12 de Dezembro, aqui em Bruxelas, no parlamento europeu. Isso se chama círculo de envenenamento ou efeito boomerang porque, de alguma forma, essas substâncias acabam chegando no prato da população europeia, tô falando isso baseada em dados da própria comissão. O levantamento que a comissão europeia fez, em 2019, mostra que 70% dos alimentos provenientes do Brasil tinham algum resíduo de agrotóxico e cerca de 8% tinham resíduo de substâncias ou proibidas na União Europeia ou com o nível de resíduo acima do limite permitido. Então, obviamente que eles não estão expostos da forma como a população no Brasil, mas, por exemplo, os disruptores endócrinos, essas substâncias que provocam a alteração hormonal, mesmo em minúsculas quantidades, elas provocam efeito sobretudo no corpo das crianças, no desenvolvimento infantil.

Para fazer sentido falar sobre agrotóxicos, é preciso discutir também a alimentação da população de uma maneira mais ampla, né? Sabemos que a população de baixa renda está, cada vez mais, refém dos ultraprocessados. Como esses temas se relacionam?

Acho que debater a alimentação é muito importante. Lógico a gente só vai seguir em frente nisso com políticas públicas, então, por exemplo, a política nacional de produção orgânica e agroecológica, o programa nacional de alimentação escolar, em que os alunos das escolas públicas recebem alimento orgânico. Eu acho que funciona como um espelho no qual as crianças estão comendo alimentos orgânicos, sabendo que estão comendo, e trazem isso para casa, só o fato da da gente tomar consciência, isso faz com que aumente a pressão para que isso se alastre, mas, obviamente que só acontece com política pública para possibilitar a venda, mediar essa venda, mediar o interesse tanto do do pequeno produtor quanto da população na cidade que vai consumir esses alimentos.

Reprodução/Divulgação

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