‘Deplorável’ e ‘completamente desequilibrada’: acadêmicos repudiam nota do Itamaraty sobre o 7 de outubro de 2023

Comunicado omitiu dados sobre mortes e destruição em Gaza, evitando chamar de ‘genocídio’ o que ocorre no enclave; para intelectuais, texto é ‘ato de insubordinação’

Rocio Paik, Opera Mundi

A nota publicada pelo Itamaraty sobre o aniversário de um ano dos acontecimentos do dia 7 de outubro de 2023 gerou uma série de questionamentos. Diversos acadêmicos e especialistas classificaram a mensagem como “desequilibrada”, especialmente pela omissão ao massacre cometido por Israel na Faixa de Gaza a partir dos eventos ocorridos naquela data.

“Deplorável” foi o termo utilizado pelo historiador Valter Pomar sobre o comunicado. A Opera Mundi, avaliou que a manifestação feita pelo Itamaraty falhou em três perspectivas: na diplomática, na humana e na política.

“Não dá para falar do que ocorreu no dia 7 de outubro e não falar de tudo o que ocorreu depois do 7 de outubro. Não dá para fazer referência à Gaza e ao Líbano sem fazer referência ao terrorismo de Estado de Israel e à imensa quantidade de pessoas assassinadas pelo exército em Gaza e em outras regiões”, explicou, acrescentando que o comunicado não apenas demonstrou um “desequilíbrio diplomático”, como também uma falta de “sensibilidade humanística” diante de um genocídio televisionado.

“Do ponto de vista político, sinceramente, parece ter sido escrita por uma inteligência artificial ‘made in USA’. É uma nota desequilibrada, sem sensibilidade humana, escrita com inteligência artificial estadunidense. Ou existe dentro do Itamaraty quem não esteja de acordo com a orientação do presidente Lula a respeito do tema”, disse.

No dia que completou um ano desde que Israel passou a intensificar suas operações militares contra o território palestino depois de uma ofensiva lançada pelo Hamas, o Itamaraty lançou uma declaração lamentando unicamente os “ataques terroristas do grupo Hamas em Israel”.

Para a professora de Relações Internacionais, Maria Carlotto, a nota é “completamente desequilibrada” porque “não toca no essencial”, em referência ao genocídio em curso em Gaza. De acordo com a acadêmica, deveria ser papel do governo condenar ataques contra os civis. No entanto, “se é para fazer isso de um lado, precisa fazer do outro”.

“Foi uma nota muito desequilibrada. Vai na contramão da orientação e do discurso presidencial. É uma confrontação, porque a posição do presidente Lula é de condenação do genocídio. Essa é a tônica geral do genocídio do povo palestino. Então, foi uma nota muito desequilibrada”, afirmou.

Carlotto ainda apontou que o posicionamento manifestado pelo Itamaraty condiz com a forma pela qual o ministro da Defesa, José Múcio, agiu nesta semana, que ela descreveu como uma “insubordinação das Forças Armadas à orientação do governo”, ao confrontar a política externa do país.

“Pela Constituição brasileira, as Forças Armadas estão subordinadas ao Executivo, portanto não cabe ao ministro da Defesa criticar a política do governo em nenhuma área. […] Então, é à luz desse fato que eu leio a nota do Itamaraty, também como uma insubordinação, porque confronta o discurso geral do governo Lula e especialmente a diplomacia presidencial”, explicou a docente.

A posição de Carlotto está alinhada com a do professor Reginaldo Nasser, chefe do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele destacou que o Itamaraty, como órgão diplomático do governo, tem a responsabilidade de refletir o que é de orientação do presidente Lula, que tem sido a condenação do genocídio promovido por Israel em Gaza.

“A palavra genocídio foi empregada pelo Lula, que inclusive citou o Holocausto. É importante ter referência ao próprio Itamaraty. O embaixador do Brasil em Israel foi humilhado várias vezes. O corpo diplomático de Israel publicou seguidos tuítes de baixo nível atacando o governo do Brasil, atacando o Ministério das Relações Exteriores. Portanto, atacando o Itamaraty. O ataque do Hamas foi um dia. O ataque de Israel foi seguido por 365 dias, e mais um pouco. A caracterização do ocorrido, por todas as instituições internacionais, vai caminhando formalmente para uma acusação de genocídio”, analisa Nasser.

O professor também concorda com Carlotto ao frisar que “começa a se desenhar algo preocupante dentro do governo do presidente Lula, que tem que retomar sua autoridade. O Ministro das Relações Exteriores, em primeiro lugar, deve se manifestar sobre isso”.

Segundo a analista internacional Ana Prestes, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a nota do Itamaraty “é uma vergonha”, e aponta que o principal erro foi “tratar o 7 de outubro como se fosse um acontecimento isolado no mundo”.

“Não tem um antes nem um depois. O mínimo que deveriam ter feito, se eles queriam fazer uma nota ponderada, é dizer que o Brasil reitera que a solução tem que ser negociada, pacífica. No mínimo eles tinham que fazer tributo às milhares de pessoas que perderam a vida, em grande parte crianças”, acrescentou.

Prestes também critica as falas do ministro da Defesa, José Múcio, que considera “absurdas sob vários aspectos”, e enfatiza “a ignorância deliberada sobre o genocídio que o povo palestino sofre há um ano”.

“Ele (Múcio) atribui ao próprio governo o antissemitismo contra o povo judeu, sendo que o que o governo Lula tem falado é que o governo de Netanyahu que não merece créditos da comunidade internacional enquanto não parar o genocídio em Gaza. O próprio governo do qual o José Múcio faz parte busca restringir contratos e a relação como forma de condenação deste governo genocida do Estado de Israel”, acrescenta a acadêmica.

Resposta do Itamaraty

A reportagem de Opera Mundi procurou o Itamaraty, para perguntar por que a nota publicada na última segunda-feira (07/10) omite o genocídio do povo palestino, que vinha sendo tão criticado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em resposta, o Ministério das Relações Exteriores afirmou que “a nota mencionada se refere especificamente à data de um ano dos atentados de 7 de outubro”, e que, posteriormente àquela data, “o Itamaraty emitiu 100 notas à imprensa sobre a situação em Gaza e na região”.

“Na maioria dessas manifestações, o que pode ser comprado pelo teor das notas, o Itamaraty, em nome do governo brasileiro, condenou a resposta desproporcional de Israel aos atentados do Hamas, seu impacto na população civil e a consequente tragédia humanitária em Gaza. Expressou, igualmente, posição em favor de um cessar-fogo imediato, da liberação incondicional dos reféns e da facilitação de entrada de ajuda humanitária em Gaza”, diz a nota do Itamaraty.

Leia a íntegra da mensagem publicada pelo Ministério de Relações Exteriores do Brasil no dia 7 de outubro:

Um ano dos ataques do Hamas: Governo repudia terrorismo e pede libertação dos reféns

O Brasil volta a exortar pela libertação imediata de todos os reféns e por negociações que levem ao cessar-fogo em Gaza e no Líbano.

Ao solidarizar-se com o povo israelense, o Governo brasileiro reitera seu absoluto repúdio ao recurso ao terrorismo

O governo brasileiro registra, com profundo pesar, que a data de hoje marca um ano desde os ataques terroristas do grupo Hamas em Israel. Os atentados resultaram na tomada de 251 reféns e na morte de cerca de 1.200 pessoas, em sua maioria civis, entre elas as dos cidadãos brasileiros Michel Nisembaum, tomado como refém, e Karla Stelzer Mendes, Bruna Valeanu e Ranani Nidejelski Glazer, assassinados no dia da invasão do território israelense por terroristas a partir da Faixa de Gaza.

A crise dos reféns permanece sem solução, com dezenas de israelenses ainda em poder do Hamas em Gaza.

Ao solidarizar-se com a família de todas as vítimas e com o povo israelense, o Governo brasileiro reitera seu absoluto repúdio ao recurso ao terrorismo e a todos os atos de violência.

O Brasil volta a exortar pela libertação imediata de todos os reféns e por negociações que levem ao cessar-fogo em Gaza e no Líbano.

Imagem: Anas al-Shareef. 11.out.23 /Reuters

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