A antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado vem realizando estudos de campo com habitantes da periferia das grandes cidades há mais de uma década. Nos últimos tempos, ela investigou os motivos pelos quais uma percentagem significativa das classes populares acaba votando na extrema-direita. Antes de Jair Bolsonaro chegar ao poder, Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco publicaram um estudo revelador sobre a periferia de Porto Alegre. Muitos dos potenciais eleitores de Bolsonaro não foram meras vítimas de notícias falsas. Votaram com consciência, motivados por diversos motivos, principalmente pela necessidade de se sentirem mais seguros diante da violência. “Eles não são fascistas, pelo contrário, têm argumentos para defender a sua posição”, observou Pinheiro-Machado às vésperas das eleições que levariam Bolsonaro ao poder.
A entrevista é de Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, publicada por Ctxt.
Atualmente, pela University College Dublin, a antropóloga coordena o estudo internacional WorkPoliticsBIP, focado no Brasil, na Índia e nas Filipinas. A sua principal hipótese é que existem fortes evidências de que os setores que escaparam à pobreza e ascenderam na classe apoiam políticos autoritários. A insuficiência do setor público e a precariedade do mercado de trabalho proporcionam o cenário perfeito para que figuras conservadoras do marketing digital se tornem novos líderes políticos. “É um fenômeno global de populismo conservador alinhado com o que chamo de ideologia do mercado livre, que é uma lógica de empreendedorismo que se distancia do autoritarismo e do fundamentalismo religioso”, afirma Rosana Pinheiro-Machado em videoconferência com a CTXT.
Pablo Marçal, ex-coach que dinamitou a campanha eleitoral em São Paulo e estava a poucos décimos de passar para o segundo turno, não pegou de surpresa a equipe do WorkPoliticsBIP. “Há anos que ele aparece no nosso estudo como uma pessoa inspiradora que cresceu com o seu próprio esforço”, explica a antropóloga, que denuncia que figuras como Marçal se aproveitam de uma ideia distorcida de meritocracia, ligada ao individualismo exacerbado. Mas também critica a incapacidade da esquerda em compreender o fenômeno do empreendedorismo, que no Brasil tem a ver com o cotidiano de muitos moradores da periferia que só querem melhorar suas condições de vida vendendo alimentos ou oferecendo seus serviços no Instagram. A maioria dos influenciadores estudados pelo WorkPoliticsBIP alinham-se com a extrema-direita não por razões ideológicas, mas porque aspiram a estilos de vida ancorados no individualismo.
Eis a entrevista.
Pablo Marçal, candidato às eleições municipais de São Paulo, foi uma grande surpresa política ao obter 28,4% dos votos no primeiro turno. Mas você o conhecia há pelo menos dois anos. Apareceu em sua pesquisa acadêmica. À primeira vista, parece que o marketing não tem muito a ver com política. De onde vem Pablo Marçal?
É um fenômeno global. No Brasil, Pablo Marçal representa um movimento que desde a redemocratização incentiva a lógica do consumo e do empreendedorismo. A partir da década de noventa chegaram as igrejas evangélicas, incentivando a prosperidade e a lógica do crescimento individual. O marketing digital é um dos maiores fenômenos sociais do Brasil. Praticamente todo o mercado de trabalho tem que se adaptar ao Instagram. Os treinadores dominaram esse mercado. Marçal é um dos grandes nomes, com doze milhões de seguidores. E isso acaba sendo político. Não vende apenas coisas, mas um estilo de vida baseado em uma ideia muito individualista de prosperidade que exige conservadorismo para um modelo específico de família. Mas Marçal se distancia do evangelismo. É mais uma forma moralista de se colocar no mundo do que uma questão de fé. Eu diria que as terapias energéticas e de enriquecimento pessoais são um campo mais amplo que o evangélico. Pessoas em situação precária sempre viram o Instagram como uma possibilidade de escapar da pobreza, e por isso investem na mentoria de coaches.
Em 2022, o estudo já revelava que dos 212 influenciadores que então estudavam no Brasil, 187 se alinhavam ao bolsonarismo. Não tanto por razões ideológicas, mas por seguir um estilo de vida baseado na riqueza, na beleza e na suposta independência financeira. Estilos de vida sem patrões, ancorados em si mesmo. Como esses estilos de vida individualistas influenciaram as escolhas?
É um individualismo muito específico, ligado a uma ideia distorcida de meritocracia que reproduz as próprias desigualdades do Brasil. Nosso projeto está mostrando que existe uma bolha de extrema-direita e uma bolha de marketing digital, e bem na intersecção entre as duas estão os influenciadores. A hipótese do nosso projeto é que uma pessoa entra nesse mercado porque quer melhorar de vida e cai em uma rede de extrema-direita. Os influenciadores ensinam-lhes a técnica do Instagram e a motivação e fé de que precisam. Na campanha de 2022, esses influenciadores foram muito tímidos. Não pediram voto porque temiam perder seguidores. Mas esse mercado cresceu tanto que produziu um campo político próprio, Pablo Marçal, que toca no ponto que mais dói no Brasil, a precariedade. O estado cria promessas que nem sempre são cumpridas. As pessoas estão começando a ter uma vida melhor, mas querem mais.
O impressionante é que Pablo Marçal teve um resultado incrível nos bairros pobres que são a base eleitoral de Lula. Como o fenômeno é explicado?
Estudamos a precariedade, basicamente as pessoas que vivem nas periferias. Marçal aparece no nosso estudo há anos como alguém inspirador. A esquerda ainda não reconhece que está perdendo a periferia. Pessoas que ganham até dois salários mínimos, que sempre votaram em Lula, não associam Marçal ao bolsonarismo. Dizem: “gosto do Lula e aceito o Bolsa Família, e gosto do Marçal, porque ele está me motivando a enriquecer, porque é uma pessoa que tem uma carreira invejável, que cresceu com a própria esforços“. Conheço pessoas do terreiro que votaram em Lula, mas estão decepcionadas e admiram Marçal.
Marçal tem um domínio muito bom das redes sociais, da sua linguagem, das suas narrativas. Cresce graças aos algoritmos, surfando na onda das polêmicas. Ao contrário de Bolsonaro, ele é um nativo digital.
Bolsonaro se encaixou no populismo porque era bruto, violento e dizia o que queria. Aprendeu o que era o populismo com os filhos, que estudaram como isso era feito nos Estados Unidos. Eles o estavam transformando em um candidato digital. Marçal vem desse mundo. Ele domina a oratória, pois fala para milhares de pessoas em eventos. Conhece todas as técnicas populistas. Domina redes, algoritmos, fala, invade o cérebro das pessoas, estuda neurolinguística.
Ele chegou com um partido político minúsculo e encontrou lacunas nas redes digitais que nem a lei eleitoral regulamenta, como pagar seguidores para editar vídeos e distribuí-los organicamente.
Ele chegou com tudo pronto. É incrível um cara que vem sozinho, com seu Instagram, e faz tantos votos. Isso reflete o tamanho desse mundo. Temos que ficar atentos, porque muitos influenciadores vão querer ser candidatos. Esse mundo também quer ocupar a política.
Bolsonaro fechou acordos nestas eleições com partidos políticos tradicionais. Marçal tornou-se o verdadeiro candidato antissistema. Você acha que o bolsonarismo se tornou algo sistêmico e que sua narrativa outsider se esgotou?
Sim. Todo mundo que passa pelo governo, ainda mais depois de uma pandemia, é visto como político. Muitos eleitores de Bolsonaro nunca gostaram muito de política. Estão alinhados com modos de vida conservadores, mas votaram em Bolsonaro porque o consideraram antissistema. Aí vira um sistema e aquele eleitor procura outro candidato. Bolsonaro passou pelo governo como uma máquina de poluição. Ele se sujou e agora entra alguém mais puro naquela máquina suja e limpa.
Então, está ocorrendo uma renovação da extrema-direita? Marçal já disse que quer ser candidato presidencial em 2026.
É um fenômeno global de populismo conservador alinhado com o que chamo de ideologia do mercado livre, que é uma lógica de empreendedorismo que se distancia do autoritarismo e do fundamentalismo religioso. Pablo Marçal se afasta do bolsonarismo tanto no sentido religioso quanto no sentido político. O bolsonarismo é uma doutrina muito clara de autoritarismo com passado ditatorial. Uma doutrina de grande convicção na tortura, na violência contra pessoas queer. Marçal, alinhado por orientações conservadoras, não demonstra convicção política em nada. É outra lógica religiosa mais flexível. Mais aberto e mais focado nesse mundo da tecnologia, dos gamers, do novo empreendedorismo. O novo perfil da extrema-direita tem mais uma face de mercado do que de ditadura.
O WorkPoliticsBIP está focado no Brasil, na Índia e nas Filipinas. Estará o fenômeno acontecendo de alguma forma numa Europa cada vez mais precária?
Na Europa, a tradição do pleno emprego e da democracia liberal é mais forte. Mas a Europa tem de olhar para o que está acontecendo no Sul global, que é a vanguarda da precariedade. A precarização conduzirá cada vez mais à radicalização na Europa, seja em Espanha, na Irlanda ou no Reino Unido, com a dificuldade de pagar a renda. Já não é possível viver como uma classe média no Reino Unido com um salário normal. A precariedade é o grande caldo ideológico da extrema-direita, no Brasil com a criação de inimigos internos, na Europa, com o seu inimigo tradicional, o externo.
Quero falar da esquerda brasileira nesta última campanha eleitoral municipal. Por que teve um desempenho fraco? Guilherme Boulos em 2020 fez uma campanha para prefeito de São Paulo bastante casual e irreverente. Neste último, moderou sua imagem.
A autenticidade é um valor na política de hoje. Todo mundo gosta de Marçal porque ele parece alguém autêntico. Boulos passa por um processo de soar menos autêntico, de se tornar um sistema, de sair de uma posição radical. Quando ocorreu o golpe político no Brasil, houve uma nova reconfiguração para apoiar Lula. O lulismo é uma política totalmente sistêmica, certo? Então, Boulos tenta se tornar Lula, paz e amor [em referência à campanha de 2002] sem ter passado pelos anos que levaram Lula a isso. Em 2020, o Boulos fez uma excelente campanha, porque é uma excelente figura. O Brasil precisa de gente com raiva e ele não demonstra mais essa raiva. Sua campanha voltada ao amor não dialoga com ninguém, apenas com uma bolha do mundo da arte, da classe média. É uma estética que envelheceu. A esquerda passou a ser o sistema e Boulos acabou representando o sistema. Perdeu a autenticidade, parece velho.
A esquerda também não parece estar conseguindo lidar bem com o empreendedorismo.
Não é por acaso que Pablo Marçal explodiu e a esquerda não viu. Sempre esteve lá. Esse mundo online oferece oportunidades para as pessoas venderem coisas, comida e dinheiro extra. Nas periferias, onde o Estado está completamente ausente e só aparece para cobrar impostos, para pedir votos nas eleições ou com violência policial, as pessoas estão indignadas com a política tradicional. É legítimo que as pessoas tenham um sentimento de rejeição da política tradicional. Mas aí vem a fórmula populista, que diz: “o problema não é você, mas os corruptos”. O cenário é perfeito para que essas figuras cresçam e cooptem esse sentimento. Uma parte da esquerda não consegue pronunciar a palavra empreendedorismo a não ser para estigmatizá-lo. Quando tentam abordar isso, é de forma artificial, como aquele videogame que Boulos e Lula fizeram porque identificaram que o mundo dos gamers era de extrema-direita. Foi artificial porque foi feito na campanha e não veio do mundo gamer.
Os movimentos sociais de esquerda cerraram fileiras com a Frente Democrática tecida por Lula em 2022. Silenciam, sem criticar Lula. Algo compreensível após quatro anos de governo Bolsonaro. Onde está a nova esquerda que nasceu após os protestos de 2013, que você descreve em seu livro Amanhã vai ser maior?
O Brasil viveu um momento muito eletrizante em 2012, quando começaram os movimentos esquerdistas e de base anarquista contra a Copa do Mundo. Depois explodiu 2013 e depois as ocupações secundárias (ocupação de institutos de ensino secundário). Depois veio o golpe, justamente quando a esquerda rompia com o lulismo. 2013 foi um estouro. O golpe foi absolutamente brutal contra a democracia brasileira. Por isso foi tão importante derrotar Bolsonaro e agora é tão importante deixar Lula governar. Ao mesmo tempo é muito triste, porque há um certo silenciamento, talvez um autosilenciamento. Não gosto de culpar a esquerda. O Brasil ainda está muito dolorido. O autosilenciamento faz parte do trauma dos movimentos que vieram daquele momento de explosão e depois sofreram o bolsonarismo. Você vê mulheres feministas, movimentos, todos os tipos de pessoas, literalmente traumatizadas. Tem que passar algum tempo.
Que nova liderança você vê na esquerda? Existe possibilidade de renovação? Podemos vencer sem a figura de Lula?
Todos esses movimentos estão conseguindo vereadores e deputados. O feminismo ainda é forte. O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) cresceu. Temos de tudo, desde mulheres negras até policiais antifascistas. Existe uma grande variedade. Essas pessoas estavam nas enchentes, na periferia. Essas lideranças locais estão crescendo muito, mas o petismo, baseado em grandes figuras nacionais, está estagnado, e isso é preocupante. Porto Alegre é um bom exemplo. Havia muitas figuras possíveis para as eleições municipais, como o deputado Edgar Pretto, mas o PT escolheu Maria do Rosário (ex-ministra de Dilma Rousseff), como sinal de hierarquia. Para a renovação da esquerda é fundamental não contratar empresas de marketing político para fazer a campanha digital. Devemos apostar nestes novos políticos. Devemos fortalecê-los, porque essas pessoas falam organicamente com a população e vão falar no Instagram. Elas também são influenciadores. Esta é a única forma de evitar a chegada destes novos políticos coach.
–
Foto: Joana Berwanger/Sul21