Elas multiplicaram-se no contexto da pandemia. Já são 2.400 no país. Trazem outra visão de assistência alimentar. E estimulam a mobilização social e a agroecologia. Dicionário Marielle Franco reflete sobre seus desafios e as políticas públicas necessárias
por Flavia Cândido, em Outras Palavras
Em meio ao período eleitoral, as favelas chamaram atenção para a questão da fome e insegurança alimentar em todo o país. Movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) são a ponta de lança para a invenção de um mundo sem fome, disputando o sentido de atuação do Estado e da organização popular. A fome é (ou deveria ser) um tema central para as políticas municipais nos próximos quatro anos, com a municipalização de pactos globais pelo enfrentamento à fome e à miséria pelo mundo. Contudo, o debate apareceu pouco nas disputas eleitorais pelo país.
Como forma de incentivar o debate público e alertar autoridades sobre o tema, em maio de 2024, um estudo apresentado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro indicou que meio milhão de pessoas vivem com fome na capital fluminense e 2 milhões de pessoas convivem com alguma situação de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave). Os dados nos revelam, ainda, que a incidência da fome e insegurança alimentar é maior quando analisamos casas chefiadas por mulheres e por pessoas negras. Se analisarmos por território, observa-se maior incidência da fome em bairros mais pobres e em famílias cujos índices de escolaridade são menores. Um olhar para os números nos ajuda a entender e localizar que no Brasil a expressão da fome não é distribuída de forma isonômica entre todas as pessoas, mas se desenvolve pelos rastros de uma formação social em que gênero, raça, estrato da classe e território são fatores que podem facilitar ou dificultar acesso aos direitos humanos fundamentais – inclusive o direito humano à alimentação adequada, previsto expressamente em nossa Constituição.
Por outro lado, cresce também a preocupação com o Estado que lida com a fome a partir da perspectiva penal, com o aumento das prisões por furtos famélicos. Diante disso, a deputada federal Taliria Petrone (PSOL-RJ) apresentou um projeto de Lei que visa incidir nas altas taxas de encarceramento, indicando outras formas de responsabilização para pessoas acusadas de furtos que estejam em situação de extrema pobreza ou vulnerabilidade. A polêmica não foi sanada. A fome segue como uma poderosa força social que mata, encarcera e limita as possibilidades de viver.
Não à toa, durante a pandemia de coronavírus, centenas de grupos em favelas pelo país organizaram-se para enfrentar a epidemia de fome, com ações de entrega de coleta de alimentos, organização e distribuição de cestas básicas. No Dicionário de Favelas Marielle Franco, há o inventário de algumas das principais ações realizadas à época, com uma diversidade de modos de organização e também de objetivos. O tripé “nem tiro, nem fome, nem covid” organizou parte da população nas favelas e inventou uma possibilidade de vida em meio ao descaso do poder estatal à época. Grandes movimentos nacionais, como o MTST, fortaleceram-se e ampliaram suas bases a partir de lutas concretas, e hoje congregam cerca de 50 cozinhas solidárias distribuídas em 13 estados e no DF. Além das cozinhas coordenadas pelo MTST, há outras geridas pelo MST, pela ONG Ação Cidadania e por diversos grupos e movimentos sociais pelo Brasil. A estimativa do governo federal é de que hoje haja pelo menos 2.400 cozinhas em funcionamento. A nacionalização de tais iniciativas nos fornece uma pista de quão enraizado é o problema da fome no país.
Um breve olhar para tal cenário indica a urgência de políticas intersetoriais – aliando educação, assistência social, saúde e empregabilidade, por exemplo, sem deixar de lado a aposta em mudanças estruturais nos padrões globais de produção, distribuição e consumo de alimentos. No Rio de Janeiro, a criação de um Banco de Alimentos Municipal, gerido pela Prefeitura, é uma das iniciativas que pode contribuir para enfrentar tal cenário, ainda que tenha um limite baixo de abrangência (cerca de 5 mil pessoas por mês). O banco é fruto de uma parceria entre a prefeitura do Rio e a prefeitura de uma cidade alemã, bem como com uma rede privada de supermercado. Com a parceria, alimentos que não seguem padrões estéticos (mas continuam dentro dos parâmetros nutricionais mínimos para serem servidos) são distribuídos gratuitamente para a população cadastrada junto à Secretaria Municipal de Assistência Social, e recebem kits com cerca de 600g de alimentos, que podem ser frutas, verduras ou legumes. Pequenas iniciativas, coordenadas entre si, podem produzir grandes impactos no dia a dia da população, mas é fundamental que haja um esforço global coordenado para que a fome e a miséria deixem de ser uma presença marcante e constante na história do nosso país.
A nível nacional, vivemos um período de reestruturação de políticas de combate à fome, que congrega ações de estado – como o restabelecimento e ampliação dos programas de redistribuição de renda como o Bolsa Família – com a aprovação de legislações para regular o financiamento público para movimentações associativistas de base comunitária, como a criação e fortalecimento de Cozinhas Comunitárias e recriação do Programa de Aquisição de Alimentos (Lei 14.628/2023), de autoria do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP). O objetivo de tais medidas, de “promover o acesso à alimentação, à segurança alimentar e à inclusão econômica e social”, é alinhado com objetivos globais de desenvolvimento sustentável e enfrentamento à pobreza e miséria. Tal iniciativa inscreve-se em um conjunto maior de pactos que o Brasil tem participado, como a própria “Aliança Global contra a fome e a pobreza”, aprovada no Rio de Janeiro pelos representantes que estarão na reunião do G20 em algumas semanas. Tal aliança pretende, até o ano de 2023, apoiar e acelerar esforços para erradicar a fome e a pobreza em nível global, por meio de políticas de redução de desigualdades alinhadas com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Para uma boa estruturação dos pactos e alianças globais, estes devem prestar atenção especial aos importantes rastros que políticas associativistas tem deixado no cotidiano da população. A relação entre as políticas de Estado e as lutas dos movimentos sociais nesse contexto podem contribuir, com um espírito de colaboração, para a construção de medidas que sejam sustentáveis e duradouras, enfrentando de forma radical a situação da fome e insegurança alimentar e nutricional em nosso país. Seja a partir do olhar para as experiências de sucesso das Cozinhas Solidárias, seja pelo importante legado e atuação de organizações do terceiro setor, como a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, ou até mesmo pelo olhar atento e cuidadoso às histórias da fome, como as que Carolina Maria de Jesus nos conta em sua obra. O ponto de partida é o reconhecimento da fome como problema global, cujos governos locais possuem tarefas urgentes e necessitam buscar recursos para enfrentar. Políticas de compras de alimentos e apoio a pequenos agricultores, inauguração de restaurantes populares, mobilização de atores da sociedade civil como comerciantes e organizações sociais, conscientização da população em relação ao desperdício e à necessidade de promoção da solidariedade alimentar, fomento da produção de alimentos em cinturão verde das cidades, incentivos para o desenvolvimento científico e tecnológico para aumentar a eficiência dos programas de alimentação em relação à produção e com conservação de alimentos, além da logística, enfim, são muitas as iniciativas que correspondem ao poder público e à sociedade local. (Introdução: Caíque Azael)
Conheça o verbete sobre as Cozinhas Solidárias, no Dicionário de Favelas Marielle Franco:
Cozinhas Solidárias
As Cozinhas Solidárias emergiram em um momento crítico da história recente do Brasil, durante a pandemia de covid-19, um período em que a insegurança alimentar se agravou e milhões de brasileiros se viram em situações de vulnerabilidade extrema. Nesse contexto, essas cozinhas se tornaram um recurso fundamental de sobrevivência, organizadas por movimentos sociais como o Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Sem-Teto (MTST), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Ação da Cidadania, que se mobilizaram para oferecer refeições gratuitas e dignas para aqueles que mais sofriam com a fome.
As cozinhas solidárias transcendem o papel de apenas fornecer alimento. Elas são espaços de mobilização política e social, onde se articulam soluções coletivas para problemas estruturais, como a fome e a pobreza. Denise De Sordi, em seu artigo no “Le Monde Diplomatique Brasil“, descreve as cozinhas como uma porta de entrada para um futuro mais justo, construído pelas mãos de jovens, idosos, pessoas em situação de rua, trabalhadores precarizados e pequenos agricultores. Elas se tornam, assim, locais de resistência e solidariedade, onde diferentes segmentos da sociedade se encontram para enfrentar coletivamente a crise alimentar.
Essas cozinhas, espalhadas por favelas, periferias e até zonas urbanas centrais, operam com uma lógica que ressignifica a assistência alimentar. A comida, muitas vezes preparada com alimentos agroecológicos provenientes da parceria com pequenos agricultores e movimentos de reforma agrária, não é vista como caridade, mas como um direito. As refeições são distribuídas sem burocracia, sem investigações, acolhendo pessoas que estão em situação de extrema pobreza, trabalhadores informais, entregadores de aplicativo e famílias inteiras que se deslocam grandes distâncias em busca de alimentação.
As Cozinhas Solidárias também atuam como centros de integração e formação social. A interação entre os voluntários, as comunidades locais e os beneficiários vai além da distribuição de marmitas. Universitários, em projetos de extensão, participam dessas iniciativas, promovendo debates sobre saúde pública e políticas sociais, ao mesmo tempo em que desenvolvem novas abordagens para questões sociais emergentes.
As cozinhas funcionam como um elo entre o campo e a cidade, com pequenos produtores rurais fornecendo alimentos frescos e orgânicos diretamente para a preparação das refeições. Esse processo não só garante uma alimentação saudável para as populações vulneráveis, como também promove a soberania alimentar e fortalece a agricultura familiar. A parceria com movimentos como o MST é essencial para que os pequenos agricultores possam planejar suas safras e garantir uma fonte de renda estável, mesmo em tempos de crise.
Ainda que essas cozinhas tenham surgido em meio à emergência sanitária e social, sua relevância vai além da pandemia. Elas apontam caminhos para políticas sociais duradouras e estruturadas, necessárias para a reconstrução do tecido social brasileiro. Como Denise De Sordi destaca, as cozinhas solidárias apresentam uma alternativa ao modelo de assistência social baseado em soluções individuais e burocráticas. Elas mostram que o combate à fome deve ser coletivo e que o Estado precisa reconhecer e apoiar essas iniciativas como parte de uma política pública permanente.
O legado das Cozinhas Solidárias, especialmente durante a pandemia, demonstra que, apesar da falta de apoio governamental em muitos momentos, a sociedade civil pode se organizar de forma rápida e eficiente para garantir o básico: o direito à alimentação. Essas cozinhas não apenas alimentam corpos, mas também nutrem a esperança de um futuro mais justo e igualitário.
Objetivo
O objetivo principal das cozinhas solidárias é garantir o direito à alimentação de pessoas em vulnerabilidade social, oferecendo refeições saudáveis e gratuitas. Elas também atuam como espaços de integração comunitária, formação social e promoção da saúde, além de fortalecerem os laços sociais nas comunidades onde estão inseridas. O Programa Cozinha Solidária, regulamentado pela Lei nº 14.628/2023, institucionalizou essas ações, garantindo recursos para sua continuidade e expansão em todo o território nacional.
Políticas públicas e Cozinhas Solidárias
O Programa Cozinha Solidária, instituído pela Lei nº 14.628/2023 e regulamentado pelo Decreto nº 11.937/2024, foi criado pelo governo federal com o objetivo de fornecer alimentação gratuita e de qualidade para a população em situação de vulnerabilidade socioeconômica e insegurança alimentar, incluindo pessoas em situação de rua. A iniciativa faz parte de um esforço nacional coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (SESAN/MDS), que se comprometeu a apoiar mais de 2.000 cozinhas solidárias em funcionamento no Brasil.
Essas cozinhas estão organizadas em uma grande rede de solidariedade, ofertando refeições e serviços essenciais a populações em risco social, operando principalmente em territórios vulnerabilizados. O Programa Cozinha Solidária oferece apoio financeiro e logístico para que essas iniciativas possam se manter e expandir, fornecendo recursos complementares às doações de parceiros e indivíduos que já sustentam essas cozinhas. Além disso, o programa promove a compra de alimentos da agricultura familiar, garantindo que alimentos frescos e saudáveis cheguem às cozinhas e, consequentemente, às populações que mais precisam, através de uma articulação com outros programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Cada unidade de cozinha solidária possui gestão própria, desempenhando não apenas a função de fornecer refeições, mas também atuando como um espaço de formação comunitária. Entre as atividades complementares realizadas estão oficinas de educação alimentar e nutricional, além de ações que promovem a integração e o fortalecimento dos laços sociais nos territórios onde estão inseridas. Essas cozinhas são definidas como uma tecnologia social de combate à fome, um exemplo de como a sociedade civil se organiza voluntariamente para enfrentar a insegurança alimentar.
Para garantir a continuidade e a sustentabilidade dessas ações, o governo credencia entidades gestoras — entidades privadas sem fins lucrativos — que podem operar diretamente a cozinha solidária ou apoiar outras cozinhas com os recursos financeiros fornecidos pelo programa. Com isso, o governo federal reconhece e potencializa a importância das cozinhas solidárias como uma política pública essencial para a superação da fome no Brasil.
A importância durante a pandemia
A pandemia de covid-19 foi um momento crucial para a expansão das cozinhas solidárias. Com o aumento do desemprego e a intensificação da fome, essas iniciativas se tornaram fundamentais para milhões de brasileiros que passaram a depender de refeições gratuitas para sobreviver. Além da distribuição de alimentos, as cozinhas solidárias desempenharam um papel importante na educação sobre alimentação saudável e sustentável, incentivando o consumo de produtos locais e de hortas comunitárias, e conectando a luta contra a fome com a soberania alimentar.
Quantas Cozinhas Solidárias existem no Brasil?
Segundo dados do governo federal, há cerca de 2.400 cozinhas solidárias ativas no Brasil. Essas cozinhas são responsáveis por fornecer mais de 1 milhão de refeições por mês. Elas fazem parte de uma rede de apoio que começou de forma espontânea durante a pandemia e foi posteriormente estruturada com o apoio do Programa Cozinha Solidária, em colaboração com movimentos sociais e organizações da sociedade civil.
Diante da gravidade do problema da fome no país, que afeta milhões de brasileiros, os números de cozinhas solidárias e a cobertura que alcançam são, infelizmente, extremamente irrisórios. Será necessário um grande esforço de todos os níveis de governo em uma ação abrangente, abrangendo distintos aspectos envolvidos em uma resposta efetiva para o enfrentamento da fome. As cozinhas solidárias são uma ação importante, que brotou dentro da própria sociedade como resposta emergencial e que necessitam ser incentivadas e apoiadas pelas políticas públicas. Mas, será necessário ter políticas e ações da sociedade que criem uma rede ampla e abrangente para superarmos o quadro estrutural da fome no país.
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Foto: MTST/Divulgação