Governo lança nesta quarta duas iniciativas para fortalecer a agroecologia, produzir comida saudável e reduzir uso venenos. O que preveem. Como articularam as experiências populares. Por que irritaram o “agro”. E o (muito) que falta para mudar o modelo agrícola
por Paula Vianna, em Outras Palavras
Coroando um longo processo de elaboração com participação popular, por meio de organizações da sociedade civil, que incluem a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), são lançados nesta quarta-feira, dia 16/10, dois planos que contribuirão para a promoção da agroecologia no Brasil. Ambos representam um grande passo para que o Estado brasileiro cumpra sua função de assegurar o direito humano à alimentação saudável e adequada. Ambos os planos também sinalizam possibilidades para o governo orientar suas estratégias políticas para o enfrentamento da questão climática.
O Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que terá a sua terceira edição, vem sendo alvo de grande polêmica, ao enfrentar a resistência de setores do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), uma vez que prevê, entre suas iniciativas, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara). Já o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar (Alimento no Prato) é uma iniciativa inédita, que pretende articular um conjunto de instrumentos para fazer com que a alimentação saudável e adequada esteja disponível e acessível para toda a população.
O lançamento simultâneo dos planos revela um aspecto inovador no tratamento da questão alimentar pelo Estado. Isso parte da constatação de que para alterar o padrão de alimentação da população brasileira, não basta incentivar a produção de alimentos saudáveis, é essencial apoiar a construção de sistemas de abastecimento que façam com que esses alimentos cheguem a quem mais precisa e não tem acesso.
O Planapo é resultado do trabalho coletivo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), composta por representantes de 21 órgãos de governo (sendo 14 ministérios) e de 21 entidades da sociedade civil. Já o Alimento no Prato foi criado com a participação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo). Para inspirar sua elaboração, várias organizações que integram a ANA apresentaram suas experiências de produção, distribuição e abastecimento alimentar em oficinas de trabalho
“O Brasil nunca teve uma política de abastecimento da forma como está sendo lançada agora, construída a partir da inspiração de experiências populares com a mediação de colegiados nacionais de participação social”, explica Paulo Petersen, da ONG AS-PTA e representante da ANA na Cnapo.
Para Petersen, trata-se do reconhecimento de que o alimento não pode ser tratado como uma mercadoria como outra qualquer, regulada pelo interesse de grandes empresas. “A lógica que infelizmente ainda domina as políticas agrícolas induz à produção de matérias-primas para a indústria de alimentos, que por sua vez entrega à sociedade alimentos ultraprocessados através de grandes empresas do ramo varejista”, ele explica.
Portanto, um aspecto importante dos planos é abordar a questão da alimentação a partir de uma visão de sistema, desde a produção até o consumo. “Se queremos de fato superar a tragédia da fome e da insegurança alimentar e nutricional de forma mais abrangente e profunda precisamos colocar novas perguntas: que alimentos são produzidos, quem produz, como produz, onde produz, como será distribuído e quem consumirá?”, aponta Petersen.
Segundo ele, o plano de abastecimento dá grande atenção para a desconcentração do sistema de distribuição dos alimentos. “O plano Alimento no Prato incorpora uma visão territorial na organização dos sistemas alimentares, buscando aproximar a produção do consumo, seja do ponto de vista físico, seja do ponto de vista social, reduzindo ou mesmo eliminando a cadeia de intermediação que, ao final, acaba se apropriando da maior parte da renda gerada. Portanto, além de democratizar a alimentação saudável, essas medidas contribuirão para distribuir renda para quem produz e para baratear a alimentação saudável”, explica Petersen..
Com o avanço das grandes cadeias de varejo, os mercados locais estão desaparecendo, destruindo as cadeias de intermediação de pequena escala. Além da concentração econômica em poucos grupos empresariais, esse processo induz a monotonia nas paisagens agrícolas, com o avanço das monoculturas que fazem alto uso de agroquímicos, e a monotonia no consumo, com a alimentação cada vez mais industrializada e padronizada.
Cabe destacar também que ambos os planos preveem instrumentos de políticas direcionados especificamente para a valorização do trabalho das mulheres agricultoras. Trata-se do reconhecimento do Estado com relação ao protagonismo das mulheres quando o assunto é produção saudável e diversificada.
Os dois planos, como visto, possuem muita sinergia entre si. Um exemplo disso é a presença em ambos do Programa Ecoforte de Agroecologia, do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
O papel dos planos não é, necessariamente, lançar novas políticas, mas articular e dar coerência ao conjunto de políticas implementadas por diferentes ministérios, visando alcançar determinados objetivos estratégicos. Dada a forte relação entre os dois planos, “uma das ideias que estamos debatendo é a de estabelecer um sistema compartilhado de monitoramento do Planapo e do Alimento no Prato”, conta Petersen.
A agroecologia e o Plano Clima
A reterritorialização dos sistemas agroalimentares é uma ideia chave da agroecologia. Entre outras coisas, a reterritorialização significa que parcelas importantes da alimentação consumida nos territórios devem ser produzidas nos próprios territórios.
Com o crescente controle exercido pelas grandes corporações sobre os sistemas alimentares, eles foram sendo desterritorializados. Na prática, isso significa que a maior parte do que produzem não é consumido no próprio território e o que consomem é trazido de fora do território. A definição do que se produz, como se produz e o que se consome deixa de ser feita pelas populações locais, a partir de suas culturas alimentares e da valorização da agrobiodiversidade local.
A construção da soberania alimentar está diretamente associada à necessidade de retomada desse poder de decisão pelos atores do território. Esse é o sentido principal da reterritorialização dos sistemas agroalimentares e essa é a função da agroecologia.
No Brasil, os sistemas alimentares são os principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa. Isso por vários motivos conjugados: o desmatamento para abertura de novas áreas de cultivo e expansão das pastagens, o uso intensivo de agroquímicos, derivados da indústria petroquímica, o transporte à longa distância dos alimentos, a necessidade de processamento industrial, de congelamento e empacotamento dos alimentos ultraprocessado, etc. Além disso, as monoculturas são muito vulneráveis às mudanças do clima.
Por outro lado, a agricultura diversificada, que escoa sua produção em circuitos curtos de comercialização, reduz bastante o consumo energético, sobretudo, o de recursos fósseis, uma vez que pode ser realizada com base na otimização da energia solar através da fotossíntese.
Sistemas alimentares pouco dependentes de energia fóssil e mais resilientes aos efeitos das mudanças climáticas devem ser promovidos pelo Plano Clima, que está em fase de construção pelo governo brasileiro. “Por essa razão, entendemos que os planos que serão lançados nesta semana deverão ser assumidos como grande contribuição brasileira para o enfrentamento das emergências climáticas”, defende Petersen.
“Nos preocupa a influência exercida por corporações empresariais na elaboração do Plano Clima. As soluções defendidas por elas estão ligadas a novos pacotes tecnológicos que são desenvolvidos e comercializados por elas mesmas. Além de não enfrentar a crise climática em sua raiz, essas falsas soluções só agravarão os níveis de insegurança alimentar e nutricional da população brasileira. Temos convicção de que somente a abordagem agroecológica pode dar respostas combinadas a essas questões emergenciais do Brasil e do mundo”, ele conclui.
Pronara, já!
Programado inicialmente para julho passado, juntamente com o anúncio do Plano Safra da Agricultura Familiar, o lançamento do Planapo foi adiado quatro vezes. Após o último adiamento, dia 13 de setembro, as organizações integrantes da Cnapo enviaram uma carta ao presidente Lula.
A carta explicava que o impasse em torno do lançamento do Planapo era resultado da intransigência da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura (SDA/Mapa), que não aceitava a inclusão no plano de iniciativas voltadas à redução de agrotóxicos no país.
Em resposta, o presidente Lula reiterou sua preocupação com o uso dos agrotóxicos, que já havia sido manifestada quando exerceu seu direito ao veto em diversos dispositivos da nova Lei dos Agrotóxicos, aprovada pelo Congresso Nacional, no final de 2023, sem os vetos presidenciais. Em reunião com os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, Lula lembrou o papel de “republiqueta de banana” que o país adquire ao aceitar aqui o uso de substâncias banidas na Europa e nos Estados Unidos.
Para o lançamento do Planapo, o presidente se comprometeu a considerar as diretrizes do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que será revisado e atualizado, com a expectativa de lançamento até o fim deste ano.
O Pronara começou a ser elaborado em 2014, pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), criando mecanismos de restrição para o uso, produção e comercialização de agrotóxicos com alto grau de toxicidade e incentivando a redução do uso de venenos por meio da transição para sistemas de produção orgânicos e de base agroecológica. O Programa previa também a promoção de ações educativas sobre os agrotóxicos e alternativas técnicas ao seu uso.
A proposta nunca chegou a ser implementada, exatamente em função da negativa unilateral do Ministério da Agricultura, àquela época chefiado pela ministra Kátia Abreu. No final do ano passado, com a restauração da Cnapo, o tema voltou a ser discutido. Em novembro de 2023, durante o Congresso Brasileiro de Agroecologia, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA) anunciou a intenção de lançar o Pronara.
Segundo Petersen, o Pronara foi criado como uma proposta de redução de agrotóxicos factível do ponto de vista técnico, pois não coloca em risco os níveis de produtividade, não afeta a balança comercial. “Forças reacionárias que insistem em tentar barrar o Pronara acusam os defensores do programa de ideológicos. Trata-se de uma postura em si ideológica, que escamoteia o real interesse de um grupo reduzido de indústrias, que são as únicas beneficiárias de o Brasil se manter no posto de maior consumidor de agrotóxicos do mundo”, afirma Petersen.
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Foto: Ricardo Stuckert / PR