É o Centro, não a esquerda, que está em crise e dele emerge a dissidência fascista. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto

Voltas aos mitos, a uma ecologia da ação e pragmáticas podem ser saídas às encruzilhadas contemporâneas. O que nos falta, sugere o entrevistado, é tesão para reconstruirmos afetos que façam frente à extrema-direta

Por: IHU e Baleia Comunicação

Compreender o governo Lula III pressupõe compreender conceitos políticos antes antagônicos na plasticidade da política atual. É por isso, por exemplo, que o oxímoro “neoliberalismo progressista” se converte, hoje, como postulou Nancy Fraser, numa dinâmica neoliberal distributiva e políticas inclusivas de reconhecimento. Esse parece ser o tipo de “esquerda” que a agenda econômica tolera. Neste cenário emergem dois tipos de centro político: o Picaretão e o Tecnocrático.

“O Picaretão é o testa de ferro do capital, tanto porque suas manobras opacas estão constantemente favorecendo os interesses dos mais poderosos – como fundos de investimento, latifundiários, planos de saúde, companhias de seguro, empresas de infraestrutura, associações médicas, oligarquias jurídicas – quanto porque eles próprios, enquanto representantes de famílias com ascendência dominante sobre os territórios locais que os elegem, são ‘coronéis’ espalhados pelo Brasil todo”, propõe o professor e pesquisador Moysés Pinto Neto.

“O ‘centro tecnocrático’, por outro lado, é o centro verdadeiro. Ou seja, ele representa a perspectiva de conciliação entre direita e esquerda, entendendo-se como um ponto equidistante entre socialismo e capitalismo. Como a ‘terceira via’ de Giddens e Blair, pretende equilibrar programas sociais com meritocracia, lucro com responsabilidade social, livre mercado com reconhecimento de minorias”, complementa o pesquisador em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Porém é precisamente este centro que está em crise. “Como ocorre em geral no mundo, ‘the Centre cannot hold’, o Centro não se sustenta mais, a crise é dele mesmo, é seu modelo que está produzindo a dissidência fascista”, avalia.

Há, como defende o entrevistado, saídas à esquerda, desde que ela seja percebida para além do cacoete paulistocêntrico. “Esses dias vi um vídeo do Haddad em que defendia algo do gênero, em defesa do iluminismo e da ciência – e me parece que o uspianismo vai muito por aí, e nossa esquerda é tremendamente uspiana e paulistocêntrica. Eu diria que é preciso ir na direção contrária: se o nosso problema é o afeto, é preciso voltar aos mitos. O que vem sendo pensado acerca do encantamento por pessoas como Nego Bispo, Luiz Antonio Simas, Victor Galdino, Morena Mariah, Aílton Krenak, entre outros, a meu ver tem mais capacidade de conectar as pessoas”, projeta.

“Precisamos de movimentos politicamente incorretos, capazes de se conectar pelo afeto que está ligado à errância, menos ligados a nomenclaturas e terminologias academicistas que a posturas afetivas no dia a dia, uma ecologia da ação, uma pragmática da aliança. (…) Estamos muito preocupados com os programas, mas, antes de qualquer problema, nos falta tesão”, provoca.

Moysés da Fontoura Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, com período-sanduíche no Centre for Research in Modern European Philosophy, no Reino Unido. É editor do canal Transe e fundador da plataforma educacional Alternativa Hub.

Confira a entrevista.
IHU – Olhando em perspectiva, o que hoje continua representando a vitória de Lula cerca de dois anos atrás e o que mudou?

Moysés Pinto Neto – O que restou de 2022 foi que evitamos o pior. É verdade que o bolsonarismo e suas variantes seguem fortes, como as eleições municipais mostraram, mas justamente por isso podemos imaginar o que seria um segundo mandato de Bolsonaro. Provavelmente, os últimos freios institucionais seriam derrubados e estaríamos diante de um quadro semelhante à Hungria, chamado eufemisticamente de “democracia iliberal”. Por mais fraco que possa estar o governo, ainda assim o processo de aparelhamento miliciano e militarizado da burocracia foi suavemente interrompido – e, ainda que esse “suave” deixe a desejar, ainda é melhor que seu oposto, o “brutal” aparelhamento. De resto, o governo Lula soube manter os principais pilares que provocaram uma adesão ao bolsonarismo do ponto de vista da população despolitizada que vota muito mais em função da condição econômica, com os programas de renda a pleno vapor e produzindo efeitos positivos no mercado interno.

IHU – Em 1º de janeiro de 2023, Lula subiu ao Planalto de mãos dadas com pessoas representantes de minorias políticas, entre pessoas negras, mulheres, indígena e pessoa com deficiência. Como a política de Lula III tornou a famosa foto na rampa do Palácio do Planalto démodé?

Moysés Pinto Neto – Eu não diria “démodé”, porque, se formos tomar esses termos, essas pautas continuam produzindo a “estética” do governo. Mas, em termos efetivos, pode-se dizer que o governo Lula III segue a cartilha do que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, ou seja, mantém uma agenda alinhada com o neoliberalismo no plano “distributivo” e uma política inclusiva do ponto de vista do “reconhecimento”. Veja que com isso não estou repetindo a crítica aos “identitários” promovida pela velha esquerda e a nova-velha esquerda que gostaria de voltar ao socialismo, à identidade de classe, entre outras coisas. Tomo o diagnóstico de Fraser simplesmente como uma descrição do status quo: não é que feminismo, pensamento queer, pensamento negro ou indígena necessariamente nos conduza a um liberalismo identitário, só que é esta a via que nesse momento está sendo seguida.

Vou citar três exemplos:

1) não há uma articulação das políticas para a população negra com algumas das suas principais pautas, como o desencarceramento e o controle da violência policial;

2) não há nenhum debate acerca da remuneração do trabalho reprodutivo, pauta demandada pela crítica feminista ao capitalismo;

3) muitas populações indígenas, como inclusive os ianomâmis, caso emblemático do início do mandato, seguem sob forte ataque de garimpeiros, fazendeiros, grileiros e jagunços.

Ministras como Anielle [Franco] e Sonia [Guajajara] têm pouca centralidade nas decisões políticas estruturais. Nem vou entrar no mérito de compreensões mais radicais, como o próprio significado de “desenvolvimento”, mas pautas objetivas não chegam nem perto do debate promovido pelo governo. As minorias estão sendo tokenizadas para legitimar um plano que não as coloca como protagonistas.

IHU – Em um artigo publicado em Outras Palavras [A arapuca do lulismo e sua saída possível], você comenta sobre o Centrão Tecnocrático em comparação ao que intitulou de “Centrão Picaretão”. Quais as diferenças entre eles e até que ponto ambos são a versão século XXI da Arena?

Moysés Pinto Neto – O “Picaretão” é a Arena. Esse segmento vem sendo longamente favorecido pela imprensa, na medida em que está enrolado até os ossos com corrupção, mas pouco ou nada se investiga. Em vez disso, costuma-se destacar o caráter fisiológico do seu funcionamento e transforma-se a análise política em política de recados. Se é certo que o Picaretão é fisiológico, é também certo que sua posição ideológica não é de centro, mas de direita, às vezes até extrema-direita (Bolsonaro, lembremos, já declarou que “sempre foi Centrão”), e os interesses que são defendidos ali estão diretamente relacionados com as oligarquias rurais e urbanas brasileiras. O Picaretão é o testa de ferro do capital, tanto porque suas manobras opacas estão constantemente favorecendo os interesses dos mais poderosos – como fundos de investimento, latifundiários, planos de saúde, companhias de seguro, empresas de infraestrutura, associações médicas, oligarquias jurídicas – quanto porque eles próprios, enquanto representantes de famílias com ascendência dominante sobre os territórios locais que os elegem, são “coronéis” espalhados pelo Brasil todo. Ademais, não existe mais diferença entre “Alto Clero” e “Baixo Clero”: desde Eduardo Cunha, o Baixo Clero tomou o Congresso, com apoio da mídia tradicional para derrubar o PT, e o Alto Clero morreu de inanição – como o demonstra o fim do PSDB e a aposentadoria de políticos tradicionais como José Sarney, Pedro Simon e José Serra. O próprio Aécio Neves se converteu em Baixo Clero.

O “centro tecnocrático”, por outro lado, é o centro verdadeiro. Ou seja, ele representa a perspectiva de conciliação entre direita e esquerda, entendendo-se como um ponto equidistante entre socialismo e capitalismo. Como a “terceira via” de Giddens e Blair, pretende equilibrar programas sociais com meritocracia, lucro com responsabilidade social, livre mercado com reconhecimento de minorias. É o pensamento hegemônico na mídia, ainda que esteja havendo, por parte do jornalismo paulista, uma inflexão para a direita conservadora (digamos que a Folha e o Estadão estejam cada vez mais parecidos). Sua crença é de que é possível separar a técnica e a ideologia, frear a polarização e racionalizar a política.

O problema é que não há postura mais em crise hoje que o centro: embora os jornalistas, economistas e cientistas políticos estejam todos os dias querendo ensinar a esquerda como se deve conversar com os pobres, quem realmente não consegue se comunicar com os pobres são eles. Lula se comunica com os pobres, e quando o faz é chamado de “populista”, os jornalistas costumam dizer que “é para seu discurso”. Seu mundo é marcado por uma racionalidade do Mercado – que é tratado como uma entidade infantil e impessoal, cheio de vontades inexplicáveis – mas ao mesmo tempo incapaz de ser sujeitado a um escrutínio político. Seu papel aí é, inclusive, encobrir esse caráter político.

Há dois anos Lula governa e os diagnósticos do Mercado são cada vez mais estapafúrdios. NINGUÉM soube explicar por que o Banco Central subiu os juros, mas todo mundo sabe, e não pode dizer, que foi um cabo de força em torno de “expectativas”, isto é, um confronto político não em torno de dados futuros amparados em esquemas técnicos obtidos por meio de uma racionalidade calculatória (como se vende), mas uma disputa em torno de projeto político e do papel do Estado nele. O Mercado pode ser composto de uma infinidade de agentes, dos “Tubarões” às “Sardinhas”, mas a realidade que poucas pessoas (os “faria limers”) têm um poder assimétrico, porque a regra não é 1:1 da democracia, mas relacionada com a acumulação de riqueza. Se ouvirmos essas pessoas, veremos que se radicalizaram politicamente e não têm interesse de compor com o governo, mesmo que isso signifique perder dinheiro. Portanto, como ocorre em geral no mundo, “the Centre cannot hold”, o Centro não se sustenta mais, a crise é dele mesmo, é seu modelo que está produzindo a dissidência fascista.

IHU – Quais são as principais conquistas e derrotas do atual governo Lula?

Moysés Pinto Neto – A principal conquista é a manutenção das políticas sociais e ter interrompido o mandato de Bolsonaro. Entre as derrotas, eu citaria muitas, mas principalmente ter colocado panos quentes na punição dos militares pelo 8/1, assumindo uma versão semelhante a dos governos Lula anteriores. Não ter aproveitado o timing para promover uma reforma estrutural no Exército foi desperdiçar uma chance histórica, como ocorreu em 2013 e agora, novamente, com as queimadas e a fumaça espalhadas pelo Brasil.

IHU – Até que ponto o PT, encarnado em figuras como Rui Costa, Dilma Rousseff e Haddad, está preso ao século XX e, com isso, às agendas desenvolvimentista e neoliberal?

Moysés Pinto Neto – O próprio PT sabe disso. O resultado das eleições municipais mostrou com clareza. O PT não tem uma perspectiva clara sobre o trabalho de plataforma, que hoje é a forma tendencialmente dominante, e ainda se baseia no imaginário trabalhista do século XX, que cada vez mais é rechaçado pela população pobre. Coloca-se dinheiro em empresas como a Taurus, a fim de promover o “desenvolvimento industrial”, para agradar a ala desenvolvimentista e seus sonhos chineses, enquanto, de outro lado, mantém-se um front de alinhamento com o mercado financeiro para evitar que os índices econômicos saiam de controle.

Além disso, em diversas áreas, o neoliberalismo está presente não só em termos de política de gastos, mas como ethos, tal como ocorre, por exemplo, na educação. As duas perspectivas seguem dominantes: tecnocracia industrialista, iwannabechina, de um lado, e social-liberalismo de políticas sociais fortes e manutenção do equilíbrio fiscal, de outro. Não há, por exemplo, uma “política ecológica” clara. Nem qualquer perspectiva de escaparmos do imaginário do carbono, como a defesa entre os petistas da exploração de petróleo na Foz do Amazonas demonstra.

IHU – Na Realpolitik é possível escapar das armadilhas do presidencialismo de coalisão sempre voltadas a favorecer as elites financeiras, monocultoras e políticas ou estamos irremediavelmente condenados ao fim do mundo?

Moysés Pinto Neto – (Risos). Não sei. Não há dúvida que Lula está com uma margem pequena de manobra, devido ao conservadorismo popular e seus braços cada vez maiores no Congresso. Mas só existe a Realpolitik, odeio essa imagem normativa de uma utopia edênica para a qual se vai “caminhando”. A Realpolitik está sempre baseada num certo jogo de forças. E, se é assim, você tem que lutar para fazer convergir forças a seu favor, aproveitá-las. O governo Lula não vem fazendo nem uma nem outra: nem utiliza seus diversos campos organizados, como os partidos e os movimentos sociais, para produzir uma agitação social capaz de contrabalançar a força da extrema-direita (a gestão Gleisi Hoffmann é uma catástrofe para o PT); nem, de outro lado, aproveita as chances quando elas aparecem. Quando, por exemplo, o Brasil foi coberto de fumaça, era o momento de uma entrada mais agressiva da pauta ecológica. No entanto, o governo ficou, literal e metaforicamente, apenas apagando incêndios.

IHU – Como a esquerda entende os pobres? Que gestos e ações indicam essa compreensão?

Moysés Pinto Neto – Não creio que haja uma resposta monolítica a isso. Mas diria que há pelo menos duas tendências: a que diz que os pobres têm nada a oferecer para a esquerda e a que diz que a esquerda não tem nada para oferecer aos pobres. Na primeira, critica-se a alienação, a imbecilidade de adotar uma perspectiva política que vai contra seus próprios interesses. É o problema do “pobre de direita”. Como pode o pobre amar seu opressor? Então a resposta vai variar entre a simples desilusão ou o xingamento, como em geral ocorre nas redes sociais, ou em atribuir a alguém – os pastores, a mídia, a classe média – a idiotização do pobre (o que, bem ou mal, é um xingamento indireto).

No outro polo, temos a posição invertida, a autocrítica da esquerda, que vai desde pesquisas que saem do campo social e criticam a redução da complexidade – por exemplo, entre os evangélicos – até perspectivas de esquerda radical que partem de um déficit de programa na esquerda. Sinceramente, fico oscilando entre ambas, porque de algum modo me parece que há algo aí perturbador: é óbvio que atacar as pessoas a que se quer beneficiar soa arrogante e narcísico, mas, de outro lado, simplesmente tomar as pessoas como detentoras de interesses legítimos que não são compreendidos pela esquerda pode ser condescendente e até paternalista. O que é paradoxal, já que são os últimos que justamente buscam atribuir agência aos pobres.

IHU – Na era dos coaches, influenciadores e pauperização radical do discurso político, como a esquerda pode comunicar clara e eficientemente seus princípios de equidade econômica e social sem parecer um professor universitário falando?

Moysés Pinto Neto – Sinceramente, como professor universitário me sinto impotente para responder (risos). Mas digamos assim: entendo que a esquerda sempre esteve muito presa no iluminismo e na proposta de emancipação enquanto desencantamento e autonomia. Esses dias vi um vídeo do Haddad em que defendia algo do gênero, em defesa do iluminismo e da ciência – e me parece que o uspianismo vai muito por aí, e nossa esquerda é tremendamente uspiana e paulistocêntrica. Eu diria que é preciso ir na direção contrária: se o nosso problema é o afeto, é preciso voltar aos mitos. O que vem sendo pensado acerca do encantamento por pessoas como Nego Bispo, Luiz Antonio Simas, Victor Galdino, Morena Mariah, Aílton Krenak, entre outros, a meu ver tem mais capacidade de conectar as pessoas. Mas para isso será necessário promover também um “desembraquecimento” desse segmento, porque, infelizmente, a apropriação Leblon-Tropicalista (antes que me interpretem mal, amo Caetano Veloso) é o que soa mais elitista, afetado, hipócrita e arrogante entre a periferia. O que os americanos chamam de “White guilty”, que dá origem ao “politicamente correto” e hoje chamado de “cultura woke”, tem um gosto podre na boca de que quem é obrigado a mastigar.

Precisamos de movimentos politicamente incorretos, capazes de se conectar pelo afeto que está ligado à errância, menos ligados a nomenclaturas e terminologias academicistas que a posturas afetivas no dia a dia, uma ecologia da ação, uma pragmática da aliança. Quem de nós quer ser candidato a santo? No Brasil, talvez isso seja bem traduzido na ideia de que a esquerda é do “amor”, enquanto a direita, do “ódio”. Mas quem não tem seus dias de ódio? Não aprendemos com Freud que estamos bem mais para a ambivalência do que para o puro amor? É preciso olhar mais para as “pedrinhas miudinhas” do dia a dia, reencantá-las, contar novamente esses mitos e seus valores (a solidariedade, a amizade, o companheirismo, a diversão, o apoio mútuo), mas também a revolta, a raiva, mesmo o desespero (gosto da linha que tem saído, por exemplo, de que, contra a “resiliência”, também é bom às vezes desistir ou fracassar apenas), que contrastam com a artificialidade do modo de vida neoliberal (com suas harmonizações faciais, dietas da moda e performances infindáveis) e a paranoia delirante do imaginário fascista. Estamos muito preocupados com os programas, mas, antes de qualquer problema, nos falta tesão.

IHU – De que ordem é o desafio de colocar em pauta e, mais ainda, fazer avançar temas como transição energética, proteção ambiental e demarcação de terras indígenas?

Moysés Pinto Neto – É o grande desafio da nossa época, não? Como fazer com que um país que perdeu a vergonha passe a se responsabilizar? O bolsonarismo, e o fascismo, tanto popular quanto, principalmente, na elite, é uma grande estratégia de desresponsabilização. A gestão da pandemia, no final, foi isso. Ninguém é responsável por nada. Pablo Marçal publica um documento falso e, bem, “eu não sou responsável, só repassei”. A vergonha é um afeto heterônomo. Ela vem de fora. Levinas dizia que ela aparece quando o sujeito se infla e, diante do Outro, recua – justamente em função da vergonha. E diferente da culpa, que é um remoer interno, a vergonha é algo da ordem do exterior. O que chocou no bolsonarismo foi exatamente a perda da vergonha das pessoas. É isso que eles chamam de “liberdade”. Aliás, não por acaso a vergonha também tem um caráter estético, e a “liberdade” deles é baseada num figurino ridículo, cafona, de extremo mau gosto. Também não por acaso essa liberdade é sempre uma imunidade diante da lei, das regras, do Estado. Para que seja possível enveredar por essas pautas, que são a nossa chance de “adiar o fim do mundo”, precisamos voltar a ter vergonha – o que significa, em outras palavras, que precisamos voltar a nos considerar responsáveis.

IHU – Que tipo de plano poderia substituir o paradigma desenvolvimentista e neoliberal que orienta Lula III?

Moysés Pinto Neto – Infelizmente, não tenho uma fórmula. Mas sei que, se reunirmos os conhecimentos ancestrais indígenas, africanos e afro-brasileiros, as experimentações feministas e ecológicas, os movimentos geossociais como MST, MTST e Teia dos Povos, e ainda colocarmos juntos para conversar pessoas que vêm de campos da biologia, geologia, antropologia, urbanismo, filosofia, direito, entre tantos outros, talvez sejamos capazes de sonhar de outras maneiras. Certamente, teremos que contar novas ou antigas estórias, de modo diferente, buscando o engajamento afetivo, conectando as pessoas de modo pragmático, promovendo o “envolvimento intensivo” com o ambiente, entre nós, com outros seres não humanos, para pensar juntos como construir um modelo de país que não se baseie na colonização, no saque, na depredação, como é o Brasil hoje. Isso não se faz construindo asfalto sobre uma terra nullius, como pensa a extrema direita, mas tampouco como se houvesse uma terra vazia pronta a ser preenchida por engenheiros do futuro, como pensam os modernos, tanto na direita neoliberal (com seus projetos digitalistas) quanto pela esquerda desenvolvimentista (com seus projetos industrial/edenistas). Terá que haver uma negociação entre mundos, mas ela pode ser bem mais democrática e diversa do que vem ocorrendo hoje.

IHU – Há ainda futuro para pensarmos um projeto que seja capaz de fazer frente ao fascismo vigente em uma parcela não desprezível da sociedade brasileira?

Moysés Pinto Neto – Posições políticas não são algo da ordem do imutável. Não raro, contra a ideia de que viveríamos um momento fascista, alguém diz: “ah, mas você fala como se 45% dos brasileiros fossem fascistas”, e não raro a isso se segue uma crítica à polarização ou aos erros da esquerda. Mas o problema aqui é o verbo “ser”. A produção de subjetividade está sempre em movimento, somos atravessados por tendências que estão em disputa o tempo todo, ninguém simplesmente “é” tal ou tal coisa. Justamente, quando falamos que alguém “é” alguma coisa, de modo positivo ou negativo, estamos flertando com o dogmatismo e quiçá com algum tipo de totalitarismo futuro. Que as pessoas hoje estejam encontrando seu desejo com o fascismo, não é uma condenação final a nos tornarmos o “Conto da Aia” ou “1984”, mas tampouco isso significa que a realidade é uma geleia em que as coisas não têm forma. Hoje, as coisas estão assim. O desejo se encontrou, se engatou, no agenciamento fascista. Mas não necessariamente ele permanecerá ali. Enquanto alguém que busca pensar isso, o que tento fazer é mapear esse agenciamento e entender quais são as máquinas que se acoplam umas nas outras a fim de permitir sua viralização. Por exemplo, as máquinas da música sertaneja, da caminhonete possante, da caixa de som que toca mais alto, do dinheiro na bolsa, da cultura gospel da prosperidade, da branquitude, que produzem um agenciamento Agro. Existem caminhos que podem desativar essas máquinas e ativar outras. O fascismo é muito poderoso, porque agencia muita coisa, mas não é indestrutível.

IHU – Qual o papel da sociedade civil na mobilização de uma agenda que não seja apenas estancar a sangria dos direitos sociais, mas de garantir avanços na agenda da esquerda?

Moysés Pinto Neto – Todo. Mas para isso, é preciso que os agentes políticos com o poder da caneta consigam dar eco às demandas. O fantasma de 2013 está aí: escolheram ignorar as ruas e as demandas das ruas, por exemplo em relação ao transporte, e a revolta caiu no colo da direita e, depois, da extrema direita. Hoje, a esquerda tem medo das ruas. As ruas são dos bolsonaristas. Por que será? Pode-se dizer que as estruturas estéticas da militância da esquerda – o carro de som, os discursos chatos, as bandeiras – sejam bem pouco entusiasmantes para a juventude e a população em geral. Mas é mais que isso: você não sai dia e noite na rua para perder ou ser ignorado. Você quer ter alguma esperança de que suas demandas sejam escutadas. Se Lula é refém da “Frente Ampla” e cada vez mais dá espaço aos tecnocratas do centro, por que os partidos, que não estão sujeitos ao controle governamental (ao menos teoricamente…), não começam a convocar um movimento?

Em 2013, tudo começou com algumas dezenas, que se transformam em centenas, milhares e milhões. O medo é que a direita se aproveite para desestabilizar o governo. Que estamos sentados sobre um arranjo frágil. É verdade. Mas esse arranjo frágil pode ser nossa última chance. Depois de Lula, o que virá? Sabemos que o Presidente tem um carisma excepcional, mas e depois? Hoje, são os fascistas que controlam o Congresso. Se o outro lado tem receio de ir para as ruas, como vai se organizar para enfrentá-lo? Há uma aposta muito ruim do Lula, que vem desde a Dilma, que passa pela ideia de fazer um bom governo e passar o bastão para algum tecnocrata do PT. Há vários candidatos no ministério. Mas será que ele, ou ela, aguenta o tranco? Já vimos o que aconteceu com Dilma. Um político de esquerda sem base social é um político de direita sem poder. Por isso, sim, a sociedade civil é decisiva, e só ela pode confrontar o poder burocrático e oligárquico do Congresso, mas para isso ela precisa ser convocada, valorizada, pautada. Nada disso está acontecendo.

IHU – Tal como diria um de nossos mais frutíferos pensadores contemporâneos, Ailton Krenak, como adiar o fim do mundo?

Moysés Pinto Neto – Os mundos têm fim, a questão é se esse fim significa uma disseminação ou um extermínio. Hoje, nosso fim do mundo é de extermínio. Ele já está com seu fim decretado, porque será impossível manter as coisas como estão com as mudanças climáticas. Gosto do lema “Outro fim do mundo é possível”, assim como do “adiar”, que remete não a um mundo infinito no tempo, mas uma certa suficiência provisória (“adiar”). Para mim, a questão é atrelada à suficiência. Distribuir o que já se tem mais e melhor, e saber reconhecer quando já é o bastante. Entender que não se trata de um limite objetivo, espécie de muro que não se ultrapassa, e sim um certo lidar com a finitude que não mira um ideal inalcançável, mas sabe lidar com um presente que, com defeitos e qualidades, vale a pena.

Moysés Pinto Neto (Foto: Arquivo pessoal)

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