A monotonia das paisagens agrícolas. Por Ricardo Abramovay

“Revolução Verde” centrou-se na melhoria de sementes e agrotóxicos. Mas seu “sucesso produtivo” leva à redução da biodiversidade. E se for possível outro modelo para o campo, a partir do resgate de florestas e de pesquisas voltadas à adaptação das culturas a ambientes naturais?

em Outras Palavras

A busca incessante de produtividade para a obtenção de alimentos, ao longo da história humana, modificou os ecossistemas aquáticos e terrestres, reduzindo a diversidade de espécies e o tamanho das plantas e dos animais. A massa média do corpo dos mamíferos cresceu na proporção de um para 800 ao longo dos últimos 65 milhões de anos, mas declinou subitamente (na escala temporal geológica, bem entendido), a partir da presença dos hominídeos na África, 125 mil anos atrás. É igualmente impressionante a queda no tamanho dos animais aquáticos, sobretudo com a introdução da pesca mecanizada.

O crescimento global da produção agropecuária abre caminho a um trade-off cujo enfrentamento é urgente e para o qual as soluções ainda engatinham: o empenho em aumentar a produtividade reduz a diversidade das espécies e, com isso, agride a própria estabilidade dos ecossistemas, cada vez mais comprometida pela monotonia das paisagens agrícolas, como mostra artigo publicado neste mês na Nature Ecology&Evolution. Florestas ou pastagens diversificadas são substituídas por ecossistemas simplificados e compostos por plantas comestíveis menores, de rápido crescimento e ciclo mais curto. Os rendimentos aumentam, mas ao mesmo tempo, promovem mudanças fundamentais na bioestrutura dos ecossistemas.

É claro que as interações bióticas nas culturas agrícolas e no manejo de animais jamais serão compostas por redes tão complexas como as existentes nos ambientes naturais. Mas a monotonia das paisagens agrícolas, das espécies genéticas que compõem a oferta de proteínas animais e da própria alimentação (com o peso crescente dos ultraprocessados), esta tríplice monotonia responde pelo que hoje vem sendo chamado de custos ocultos do sistema agroalimentar cujo montante, se tivesse expressão mercantil, superaria tudo o que a humanidade paga para se alimentar, como bem mostrou o State of Food and Agriculture da FAO/ONU, de 2023, com base no que a literatura especializada chama de True Cost Accounting (contabilidade dos custos verdadeiros).

Trabalho recente de Rattan Lal (https://shorturl.at/4QVkf), o mais consagrado e premiado especialista em solos da atualidade, mostra que na raiz desta monotonia está o fato de que as inovações promovidas pela Revolução Verde a partir da segunda metade do século 20 foram centradas basicamente na melhoria das sementes (“seed-centric” é a expressão que ele usa). O sucesso produtivo destas inovações é inegável: entre 1961 e 2023, a população global aumentou 2,46 vezes e a produção de cereais subiu 3,3 vezes. A produção por unidade de solo ocupada pela agricultura subiu de forma expressiva, desacoplando, em termos relativos, produção e terra (cada unidade de terra oferecendo maior quantidade de produtos).

Mas o “sementocentrismo” (seed centric) destas inovações supõe o uso em larga escala de fertilizantes químicos (pelos quais os potenciais produtivos das sementes podem se materializar) e de agrotóxicos (indispensáveis diante do ataque das diferentes agressões a que a homogeneidade das paisagens abre caminho). O uso de fertilizantes nitrogenados, entre 1961 e 2023, aumentou, globalmente, 9,1 vezes, o de fósforo, 5 vezes, o de potássio 4,8 vezes e o de agrotóxicos 5,2 vezes. Diferentemente do que acontece com o solo, cada unidade de produto é obtida com o uso crescente de agroquímicos.

E é importante lembrar que, em 2023, das nove fronteiras planetárias além das quais a natureza vai deixando de oferecer os serviços ecossistêmicos dos quais a vida depende, seis já foram ultrapassadas. Entre elas estão os fluxos biogeoquímicos alterados pelo uso em larga escala de nitrogênio e de fósforo, conforme mostra trabalho recente do Stockholm Resilience Centre.

Tanto o artigo da Nature como o de Rattan Lal alertam que não existe solução única nem bala de prata para este problema. Mas eles convergem em duas direções básicas. A primeira consiste em ampliar globalmente a superfície florestal. Dos 5,2 bilhões de hectares voltados globalmente à agropecuária, metade deveria ser devolvida à natureza até 2100, propõe Rattan Lal.

Mas não basta proteger, regenerar e ampliar as áreas naturais se a monotonia persistir nas superfícies voltadas à agropecuária. É fundamental que a pesquisa agronômica se transforme, migrando da atual ênfase na tríade sementes/fertilizantes químicos/agrotóxicos para a adaptação das culturas a ambientes naturais favoráveis ao seu desenvolvimento e ao emprego de bioinsumos para a saúde do solo e o fortalecimento das plantas. Esta é a base da regeneração dos solos hoje degradados e, com isso, da capacidade de estes solos (e suas árvores e plantações) armazenarem carbono numa escala que poderá atrair créditos voltados a esta finalidade.

O próprio parâmetro de remuneração da atividade agropecuária terá que deixar de se apoiar exclusivamente na venda dos produtos e incluir tanto o fortalecimento da biodiversidade, como a captação de gases de efeito estufa. Sistemas agrícolas com paisagens heterogêneas e diversidade de culturas ampliam os rendimentos, por sua capacidade de ampliar a polinização, o carbono no solo e reduzir os choques decorrentes das variações ambientais.

Estas transformações são incontornáveis em virtude dos impactos dos eventos climáticos extremos nos ambientes monótonos que marcam a agricultura atual e dos problemas de saúde pública trazidos pela homogeneidade genética das criações animais, baseadas no uso em larga escala de antibióticos, vetores importantes da resistência global aos medicamentos antimicrobianos, uma das mais importantes preocupações atuais da Organização Mundial da Saúde. Além disso, os insumos representam custos que correspondem a parte cada vez maior do valor produzido na agropecuária.

O Brasil já domina muitas das tecnologias que estão na base da urgente transformação ecológica de sua agricultura. É certamente o maior consumidor mundial de bioinsumos. Não há missão maior para a pesquisa e a inovação que a de aprofundar os caminhos pelos quais a diversidade passará a ser a marca de nosso sistema agroalimentar.

Foto: Climatefieldview/Reprodução

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