“No Brasil, mistura nunca foi sinal de igualdade”. Entrevista com Lilia Moritz Schwarcz

Em entrevista à DW, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz diz que o país “nunca teve um apartheid na lei”, mas “praticou um apartheid por costume”. Em novo livro, ela analisa imagens que refletem o racismo na sociedade.

A entrevista é de Edison Veiga, publicada por DW, 21-10-2024.

Imagens sempre fizeram parte do universo acadêmico da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, professora na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. No recém-lançado livro Imagens da Branquitude: A Presença da Ausência, ela mostra como o racismo estrutural tornou, historicamente, a arte brasileira um conjunto de representações de uma sociedade essencialmente branca.

“Os artistas que reproduzem essas imagens trazem suas próprias representações. Então as imagens são muito significativas sobre os valores de uma época e sobre a produção de valores desta época”, comenta a historiadora.

Uma das obras trazidas por ela é o imponente quadro A Pátria, de 1918, do artista brasileiro Pedro Bruno (1888-1949). Na alegoria em que mulheres costuram a bandeira nacional e crianças representam a nascente República, o destaque está todo em pessoas brancas, como se o Brasil fosse um país sem negros ou indígenas.

“Por isso eu convoco os leitores e leitoras para ler imagens e pensar que elas não são ingênuas; elas produzem representação social, com impactos simbólico e concreto”, ressalta Schwarcz. “Basta ver que no Brasil a população negra não é uma minoria como nos Estados Unidos. É uma maioria, mas uma maioria minorizada na representação política, social, econômica e cultural também.”

Em entrevista à DW, Lilia Moritz Schwarcz fala ainda sobre a ideia da meritocracia, racismo e monumentos públicos.

Eis a entrevista.

Ao trazer o tema da branquitude por meio de imagens, o impacto acaba sendo maior? As imagens escancaram a realidade da discriminação?

Acredito plenamente nisso. Diante de uma imagem é muito difícil negar a realidade. Há uma bibliografia muito farta sobre o tema da branquitude, muito importante, mas o tema não havia sido analisado sob a perspectiva das imagens. Vivemos em uma civilização das imagens. As imagens nos interpelam o tempo todo. No entanto, tendemos a naturalizar as imagens.

O livro pretende tirar as imagens desse lugar confortável e trazer crítica às imagens. O objetivo é exatamente esse, trazer o tema tão difícil como a branquitude. Porque a negritude é uma afirmação de luta, uma afirmação social. Mas a branquitude é muito a negação. Pessoas brancas tendem a desconfiar da definição, não acompanhar a definição justamente porque não se reconhecem enquanto praticantes do racismo. Este não é um livro de acusação ou de denúncia moral. É um livro de constatação. Nesse sentido, as imagens são muito fortes.

Essas obras de arte são produções conscientes de registros discriminatórios ou elas simplesmente reproduziam o que era naturalizado naquele contexto e época?

Eu acho que nem uma coisa nem outra. Não digo que são produções conscientes para discriminar, mas também não acho que as imagens são só uma resposta a um contexto e uma época. Isso porque eu trabalho as imagens como reflexivas, ou seja, elas respondem a um contexto, mas elas também produzem o contexto no qual elas se inserem. Dito isso, não acho que há um caráter apenas manipulatório, apenas previsível das imagens. Não. Os artistas que reproduzem essas imagens trazem suas próprias representações. Então as imagens são muito significativas sobre os valores de uma época e sobre a produção de valores desta época. Nesse sentido, elas são conscientes, sim. Elas não são conscientes enquanto manipulação, mas são conscientes na medida em que elas oferecem uma janela, um espelho, para sua época.

Outra questão interessante trazida pelo seu livro é o caso de monumentos públicos que homenageiam conquistadores europeus. A senhora cita inclusive o caso da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, que foi incendiada por ativistas em 2021. Essas obras precisam ser retiradas ou ressignificadas?

Essa é a perspectiva do livro, eu mostro a diferença entre monumento e patrimônio. Monumento é uma escultura que fica perdida na cidade e patrimônio é quando a população coloca afetos e simbologia em cima desse patrimônio. No Brasil quase 100% dos monumentos são de [homenagens a] homens, e muitas vezes de homens colonizadores e violentos. Então eu não sugiro a derrubada dos monumentos. Mas eu sugiro vivamente que a população leia esses monumentos e produza monumentos e patrimônios alternativos, ou seja, para contar uma história, uma história menos colonial, menos europeia, menos masculina, menos sudestina, porque há um grande predomínio de São Paulo e Rio de Janeiro nessa história. E que contem histórias mais plurais.

Esses monumentos têm uma parte fundamental na afirmação desse tipo de história, uma história muito imperial e das elites, como se o povo não tivesse qualquer participação nesse destino brasileiro. Então eu sugiro a produção de outro tipo de monumento.

No livro, a senhora comenta que a ideia de meritocracia acaba naturalizando o monopólio branco dos espaços de poder. Isso é uma característica da sociedade brasileira?

Não acho que seja uma característica só da sociedade brasileira. Na Europa, há muitos exemplos desse tipo, exemplos de discriminação que mostram como as sociedades brancas acreditam que chegaram a esse lugar de privilégio a partir do próprio mérito. Essa seria uma versão atual da teoria evolucionista da superioridade de algumas raças sobre as demais. Hoje sabemos que a palavra mérito é uma nova versão do mito da democracia racial, porque ela naturaliza, estabiliza condições de privilégio e de poder que são construções históricas, políticas e sociais e que devem ser questionadas no sentido de produzir a reflexão.

É claro que o Brasil, que foi o último país a abolir a escravidão mercantil, teve escravizados em todo o seu território e não teve políticas de inclusão social no período do pós-abolição, traz mais à frente esse tipo de questão da meritocracia. Ou seja: este é o país que se construiu a partir da ideia do privilégio naturalizado das populações brancas. Basta frequentar restaurantes chiques, teatros e cinemas para ver que, durante muito tempo, só pessoas brancas frequentavam esses espaços. O Brasil nunca teve um apartheid na lei, mas de alguma maneira praticou um apartheid por costume. Essa situação foi mudando sobretudo com as políticas de afirmação positiva e com as políticas de cotas, que têm alterado esses ambientes durante tanto tempo intocados.

meritocracia é um discurso global das populações brancas europeias que justificam seu lugar de poder como um lugar de mérito, um lugar natural. O que não é.

Para uma boa parcela da população, segue prevalecendo a ideia de que “no Brasil não tem racismo”. A produção imagética do passado reforçou esse discurso?

Durante muito tempo o discurso da democracia racial e a ideia de que o Brasil não tem racismo foram dominantes no Brasil. Ouso dizer que isto está mudando. E ouso dizer também que a produção imagética teve um papel muito grande no sentido de reforçar essa convivência tão idílica, tão calma. É o que tento mostrar, como a ideia da mistura [racial] é uma ideia muito explorada pelos artistas europeus que vieram ao Brasil ou mesmo pelos artistas que foram financiados pela Coroa, pelo Império ou pelas elites republicanas. Por que isso? Porque é uma forma de evitar uma convulsão social no país, evitar discutir politicamente o fato de o Brasil ser o sexto país mais desigual do mundo e na camada mais pobre estarem sobretudo as populações negras e indígenas.

No Brasil, mistura nunca foi sinal de igualdade. Mas isso sempre foi vendido como imagem ideológica de Estado. Por isso eu convoco os leitores e leitoras para ler imagens e pensar que elas não são ingênuas; elas produzem representação social, com impactos simbólico e concreto. Basta ver que no Brasil a população negra não é uma minoria como nos Estados Unidos. É uma maioria, mas uma maioria minorizada na representação política, social, econômica e cultural também.

Nos agradecimentos do livro, a senhora comenta que “este não é um trabalho de natureza agradável”. Como leitor, posso dizer o mesmo: passar os olhos por essas imagens, com suas pertinentes explicações, muitas vezes me deixou enojado por essa história tão discriminatória. Espera que a obra seja recebida desta forma?

Muito obrigada por esta pergunta. O livro produz esse choque mesmo. Na [editora]  Companhia das Letras, os revisores e preparadores de texto sempre emitem uma avaliação do livro, e eles usaram o mesmo tipo de termo que você usa. Ou seja, que eles ficaram chocados, um pouco enojados, com as imagens, mas sobretudo ficaram chocados consigo próprios, pelo fato de eles não terem visto, terem passado por essas imagens e não terem lido essas imagens. Acho que o livro é bastante chocante, mas é necessário. Em geral, leitores têm me relatado que a partir de um certo momento eles e elas começam a perceber esses truques das imagens […] no sentido de consolidar, estabilizar uma situação que é muito violenta. Muitas vezes as pessoas pegam o livro e falam: “que livro lindo”. Eu sempre respondo: “não, lê mais um pouquinho para ver se ele é lindo ou não”.

Imagem: Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro (1827)

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