“Para além da eliminação imediata das vidas palestinas, a necropolítica israelense opera num contexto temporal mais amplo, naturalizando o extermínio, a expropriação, a dominação e a exploração. Isto resulta na criação de condições para uma morte lenta, através da fome induzida, da destruição sistemática do sistema de saúde em Gaza e da imposição de mortes prematuras. Além disso, são impostas condições ainda piores do que a morte, como a tortura brutal, que aprofundam o sofrimento dos palestinos”. A reflexão é de Xavier Villar, em artigo publicado por La Haine, com tradução do Cepat.
Uma das formas de analisar a situação na Palestina é com a ajuda do conceito de necropolítica, cunhado pelo teórico camaronês Achille Mbembe.
Num ensaio de 2003 e no seu livro Políticas da inimizade (N-1 Edições, 2021), de 2016, Mbembe descreve a formação de “mundos de morte”: espaços em que milhares de pessoas são submetidas a condições que lhes conferem o estatuto de “mortos em vida”.
Outra forma de explicar o conceito de necropolítica é a de um poder que tem a capacidade de matar através de uma série de medidas excepcionalmente brutais impostas aos palestinos e, agora, também aos libaneses.
Para além da eliminação imediata das vidas palestinas, a necropolítica israelense opera num contexto temporal mais amplo, naturalizando o extermínio, a expropriação, a dominação e a exploração. Isto resulta na criação de condições para uma morte lenta, através da fome induzida, da destruição sistemática do sistema de saúde em Gaza e da imposição de mortes prematuras. Além disso, são impostas condições ainda piores do que a morte, como a tortura brutal, que aprofundam o sofrimento dos palestinos.
Isto se traduz em viver em constante antecipação da morte, ou daquilo que se definiu como condições piores que a morte. O indivíduo colonizado vive esperando a degradação, a humilhação e o assassinato. O sujeito colonizado é caracterizado por essa condição de ser um morto em vida, conforme definido por Mbembe: um ser despojado da soberania sobre o próprio corpo e a vida. Esta vida é vivenciada como habitar uma câmara de tortura, dando à existência uma sensação avassaladora de ser pior que a morte. Da mesma forma, ser colonizado envolve viver em constante antecipação da possibilidade de que o próprio corpo seja violado ou subjugado por outro, pelo colonizador.
Esta política de morte não se dirige apenas aos palestinos vivos (e agora aos libaneses), mas mesmo os mortos estão sujeitos a esta visão que lhes nega a possibilidade de morrer devido à construção prévia que os despoja da sua humanidade e, portanto, da capacidade de morrer como humanos.
Existem centenas de testemunhos que indicam que os mortos palestinos são enterrados às pressas, sem ritos fúnebres adequados, muitas vezes em valas comuns. Nem mesmo os corpos enterrados foram poupados, pois as forças israelenses destruíram cemitérios, desenterraram sepulturas e até confiscaram corpos. Episódios semelhantes ocorreram em alguns equipamentos hospitalares, onde foram sequestrados corpos de pacientes falecidos.
A necropolítica dita quem vive e quem morre, procurando administrar as populações criando as condições de vida e de morte. Nesse sentido, os mortos também são “administrados” e divididos entre aqueles humanos o suficiente para morrer e aqueles que, como observado, não podem morrer de forma “normal”. A desumanização é tão extrema que “[é] como se a detenção da morte – negar que alguém morra ou fazer com que não morra – se tornasse um ato de desumanização [em si]: os palestinos nem sequer são suficientemente humanos para morrer”.
Evidentemente, a necropolítica baseia-se numa hierarquização da humanidade, característica do colonialismo, que diferencia entre aqueles que são considerados humanos e aqueles que são definidos como não-humanos ou insuficientemente humanos. Neste sentido, todos os genocídios são caracterizados porque os primeiros sinais da sua implementação aparecem na linguagem. As declarações de políticos sionistas no ano passado exemplificam este uso desumanizador do discurso: a categoria de “selvagem” é facilmente substituída por termos igualmente desumanizadores como “subumano”, “baratas”, “manifestação cancerígena”, “parasitas” ou “animais humanos”.
A política da morte, que Achille Mbembe definiu na sua obra, baseia-se na capacidade de decidir quais populações são completamente descartáveis. No caso do sionismo, o seu colonialismo de assentamento baseia-se na combinação de supremacismo branco (entendido como ideologia), fantasia da violência e sistema capitalista.
Esta rede de morte não visa apenas a eliminação física da população designada como descartável, mas também procura criar uma população que vive em constante estado de estresse e enfraquecimento, o que, dentro da fantasia sionista, impediria a sua resistência à opressão. Portanto, a necropolítica abrange também a ocupação mental e psicológica.
Outro aspecto fundamental da necropolítica é o que alguns especialistas chamam de “necroeconomia”. Isto é, a morte e as condições piores que a morte não só não se opõem ao mercado, senão que são complementares. Um exemplo claro desta relação entre a criação de populações destinadas à morte e o capitalismo é o projeto de construção de assentamentos em terras colonizadas pelo sionismo, ou a repetida narrativa de que Israel “fez o deserto florescer” para desenvolver uma indústria agroalimentar destinada à exportação, tudo baseado na ocupação, na eliminação e na opressão dos palestinos.
O complexo de morte que caracteriza a necropolítica se dá através da constante racialização de populações destinadas a viver em condições piores que a morte ou a sofrer uma morte prematura. Ao falar de “raça”, não se refere a fenótipos ou biologia, mas a uma tecnologia de gestão da diferença humana cujo objetivo principal é a produção, reprodução e manutenção da supremacia branca, tanto a nível local como global.
Tudo isto ajuda a compreender que a resistência à opressão colonial sionista não é apenas uma luta para evitar a eliminação física, mas também uma batalha para recuperar a soberania sobre os corpos e a capacidade de reumanização diante da brutalidade sionista, que só oferece a morte.
Politicamente, a resistência à necropolítica sionista implica imaginar novamente um mundo alternativo, no qual aqueles colonizados e brutalizados pela ocupação possam criar formas alternativas de ser, fazer e viver no mundo.
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Mulher palestina carrega criança na Faixa de Gaza após represálias de Israel aos ataques surpresa de Hamas — Foto: Mahmud Hams/AFP