Licença voluntária: útil aos povos ou à indústria?

Mecanismo é promovido como alternativa menos drástica à “quebra de patente” – mas seus benefícios são menores do que parecem. Caso brasileiro é exemplar: mesmo com acordo de licença voluntária, país paga 20 vezes o preço internacional de remédio para HIV

Por Susana van der Ploeg e Carolinne Scopel*, para a coluna Saúde não é mercadoria, em Outra Saúde

O que é uma licença voluntária? O que é uma licença compulsória? Para responder a ambas as perguntas, primeiro é preciso entender o que são patentes. Afinal, esses mecanismos só existem porque há um sistema de propriedade intelectual. As patentes são títulos de propriedade que concedem direitos exclusivos a seus detentores, impedindo terceiros de fabricar, usar, vender ou importar o produto patenteado.

Esse privilégio de exclusividade é válido por 20 anos, inúmeras vezes se estendendo para mais por meio da estratégia de depósito de inúmeros pedidos de patentes para um mesmo produto (evergreening). Os possíveis concorrentes são impedidos de atuar no mercado durante o tempo de proteção estabelecido. Quando se aplicam a medicamentos e tecnologias de saúde, as patentes priorizam os interesses privados sobre o bem público, limitando o acesso a tratamentos e, potencialmente, colocando vidas em risco.

O sistema de propriedade intelectual passou por uma grande transformação em 1994 com a criação do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS), que estabeleceu padrões mínimos a serem seguidos por todos os países membros da Organização Mundial do Comércio. A grande mudança foi a inclusão da proteção para produtos e processos farmacêuticos. Nesse sistema, os detentores de patentes controlam a oferta de seus produtos e definem seus preços. A exclusividade conferida pelas patentes permite que as empresas farmacêuticas pratiquem preços elevados, bloqueiem a concorrência no mercado e explorem as necessidades essenciais das pessoas.

Entretanto, mesmo dentro desse sistema que gera profundas desigualdades ao redor do mundo, existem salvaguardas de saúde pública para minimizar esses impactos e proteger o interesse público: a licença compulsória é uma delas, enquanto a licença voluntária não é.

Diferenças decisivas

A licença compulsória é uma ação que permite que o Estado autorize a produção de um medicamento patenteado sem o consentimento do titular da patente, com o objetivo de minimizar os efeitos nocivos das patentes sobre o acesso a medicamentos. Embora seja muitas vezes chamada de “quebra de patentes”, a licença compulsória não se trata de uma violação, já que a patente segue sendo reconhecida e o titular recebe royalties, que são uma remuneração paga ao proprietário para que aquele produto possa ser explorado e comercializado. A licença compulsória é uma medida legítima e lícita. Não há uma subversão ao sistema, não é fugir das regras — ela é parte das regras.

Diversos países em diversas situações fizeram uso de licenças compulsórias, tais como os Estados Unidos da América (EUA), Canadá, Itália, Malásia, Tailândia, Moçambique, Índia, entre outros. Esse mecanismo só foi utilizado uma única vez no Brasil, em 2007. O caso envolveu o medicamento efavirenz, que era utilizado por 38% das pessoas vivendo com HIV em tratamento no Brasil. Desde o final de 2006, o governo vinha tentando negociar com a empresa titular da patente, que apresentou propostas de redução do preço insatisfatórias. A saída adotada pelas autoridades acabou sendo o licenciamento compulsório, o que beneficiou a população.

Em contrapartida, a licença voluntária é um acordo entre o titular da patente e um terceiro, permitindo a produção e comercialização do medicamento sob determinadas condições. Esse acordo é firmado por meio de um contrato entre o detentor da patente (licitante) e outras empresas (licenciados), estabelecendo os termos sob os quais uma versão genérica de um medicamento patenteado pode entrar no mercado por fornecedores alternativos, podendo impor limitações territoriais sobre onde e para quem o produto pode ser vendido, controlar o fornecimento de ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) e definir preço e demanda, além de impor outras restrições. É “voluntária” porque depende do interesse e decisão do detentor da patente. Interesse este que não é voltado para atender a saúde dos povos, e sim garantir seus negócios.

As licenças voluntárias podem ser assinadas bilateralmente entre produtores ou podem ser intermediadas, como acontece com as licenças realizadas por meio do Medicines Patent Pool (MPP, cujo nome pode ser traduzido por algo como “Banco comum de patentes de remédios”) – uma organização internacional criada em 2010 e apoiada pela Unitaid. Esta, por sua vez, é outra organização internacional da área do acesso a medicamentos, criada em 2006 por diversos países, entre eles o Brasil. Apesar de ser fundador da Unitaid, o Brasil tem sido sistematicamente excluído das licenças intermediadas pelo MPP.

O revelador caso do dolutegravir

Um dos recentes acordos de licença voluntária intermediado pelo MPP é voltado para a produção e comercialização do dolutegravir (DTG). o DTG é um medicamento fundamental no combate ao HIV/Aids, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como tratamento de primeira e segunda linha para todas as populações desde 2019. Aprovado em 2013 pela Food and Drug Administration (FDA), agência sanitária dos Estados Unidos, o dolutegravir não é mais um medicamento novo, mas ainda está sob proteção patentária em diversos países.

Em 2014, o DTG foi objeto de uma licença voluntária intermediada pelo MPP entre a empresa GSK/ViiV e produtores de genéricos, que buscou permitir a produção genérica do dolutegravir a preços reduzidos para pelo menos 95 países. As vendas fora dos países estabelecidos no contrato são permitidas onde a venda de uma versão genérica não infringe uma patente existente: é o caso de países em que uma licença compulsória foi emitida. Há previsão ainda do direito de combinar DTG com outros antirretrovirais (ARV) e desenvolver novas combinações em dose fixa. Os termos desta licença voluntária são públicos e podem ser encontrados aqui.

O Brasil foi excluído deste acordo de licença voluntária, assim como de todos os outros no âmbito da MPP, sob a justificativa de ser considerado um país de “média renda”. A definição de “renda média per capita” para justificar a exclusão do Brasil de várias licenças ignora a desigualdade econômica interna do país e afeta diretamente os usuários do SUS, que em sua maioria são pessoas em situação de vulnerabilidade. Além disso, a métrica desconsidera também os índices epidemiológicos, já que o Brasil tem o maior número de pessoas vivendo com HIV da América do Sul e uma taxa de novas infecções de 40 mil pessoas por ano.

Apesar da exclusão do Brasil do acordo mencionado anteriormente, em 2020, outro acordo de licença voluntária foi assinado bilateralmente entre o laboratório público Farmanguinhos e a GSK/ViiV. Este acordo de transferência de tecnologia foi denominado como Aliança Estratégica de longo prazo. De fato, sua vigência segue até 2029, muito além da principal patente do medicamento, que expira em 2026 no Brasil. Entretanto, à diferença do acordo firmado com a MPP, os termos deste são desconhecidos. O processo de formação dessas parcerias público-privadas nem sempre é transparente ou bem regulado. Sem uma governança adequada, há o risco de que essas alianças se tornem um mecanismo para um favorecimento contrário ao interesse público. Não há mecanismos robustos de monitoramento e avaliação das alianças formadas, sendo difícil medir os resultados reais das parcerias em termos de inovação, desenvolvimento econômico e benefícios sociais.

Falta de transparência pesa no orçamento

A falta de transparência das licenças voluntárias é preocupante especialmente quando elas envolvem instituições públicas como os laboratórios públicos oficiais (no Brasil, Fiocruz, Butantan, etc). Todos os pedidos de acesso à informação sobre os contratos, feitos pelo GTPI/Rebrip, foram negados com base em cláusulas que estabelecem a confidencialidade das informações trocadas entre as instituições. A negativa do acesso às informações contidas nos contratos frequentemente são justificadas com alegações de que as licenças voluntárias contêm informações comerciais confidenciais ou segredos comerciais. Mas, em contraste com essas alegações, todos os acordos de licenciamento assinados pelo MPP são publicados na íntegra e isso não parece ter causado nenhum dano competitivo ou comercial.

A coexistência de diferentes tipos de acordos sobre os mesmos produtos, com alguns acordos mantidos em sigilo, torna difícil identificar as opções reais de acesso para determinado país, como ocorre com o dolutegravir. Isso também pode deixar alguns produtores presos a acordos menos favoráveis, mesmo quando existem termos mais vantajosos. A exclusão dos acordos de licenciamento voluntários internacionais e a concessão de patentes imerecidas força o Brasil a assinar contratos de transferência de tecnologia com condições ruins para o povo brasileiro.

Em 2023, o Ministério da Saúde do Brasil adquiriu 201 milhões de comprimidos de DTG e 10,8 milhões de comprimidos da combinação do dolutegravir com outro fármaco, a lamivudina (DTG/3TC), totalizando aproximadamente R$ 946 milhões, o que equivale a cerca de 52% do orçamento destinado à aquisição de medicamentos antirretrovirais no mesmo ano. O preço unitário do comprimido de DTG comprado pelo Ministério da Saúde foi de R$ 4,40. Comparado aos preços de mercado internacionais — hoje, pela OPAS, o preço do dolutegravir é de R$ 0,22 — o Brasil paga 20 vezes a mais do que deveria.

Este preço exorbitante e injustificadamente alto reforça a demanda por maior transparência nos termos do contrato de transferência de tecnologia entre a GSK/ViiV e Farmanguinhos. O alto preço pago pelo governo brasileiro compromete o orçamento público, ameaça a sustentabilidade do programa nacional de HIV e ilustra o impacto negativo dos monopólios patentários, muitas vezes imerecidos, na política pública de saúde e no acesso a medicamentos.

Licença voluntária: entrave à saúde pública

Além disso, e não menos importante, a presença de acordos de licenciamento voluntário impede a utilização da licença compulsória enquanto salvaguarda de saúde pública, já que uma justificativa da impossibilidade de emissão de licença compulsória do dolutegravir no Brasil foi a existência de uma licença voluntária em vigor – a aliança estratégica entre Farmanguinhos e GSK/ViiV. Ou seja, essas duas medidas não são somente diferentes, mas por vezes chegam a ser concorrentes no objetivo de garantir menores preços, acesso aos tratamentos e a sustentabilidade do sistema de saúde.

Esse caso recente revela como o Brasil, ao conceder monopólios farmacêuticos, coloca-se como refém da Big Pharma, com contratos secretos e decisões que beneficiam mais o setor privado do que a saúde pública. O futuro exige mais transparência, ações governamentais corajosas — como a licença compulsória já usada anteriormente — e uma vigilância ativa para impedir abusos que prejudicam milhões de brasileiros.

À medida que novos tratamentos surgem no horizonte, como o caso do lenacapavir, o Brasil deve aprender com o passado e agir de forma diferente, recusando-se a ser refém das gigantes farmacêuticas. Mais uma vez, o Brasil foi excluído da licença voluntária internacional recentemente anunciada pela Gilead para a produção do genérico do lenacapavir. A licença compulsória poderia remover a barreira patentária desse medicamento no país, possibilitando maior acesso à produção. Transparência, justiça e saúde pública devem ser as prioridades, e não os lucros bilionários de transnacionais farmacêuticas.

*Susana van der Ploeg é advogada, mestre em Direito e Inovação pela UFJF, doutoranda em Direito e Atividades Econômicas pela UERJ, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.

Carolinne Scopel é farmacêutica, doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e consultora farmacêutica do GTPI.

Foto: Léo Ramos Chaves/Instituto Butantan

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