Controle de Gaza é estratégico: com avanço chinês, garante presença militar maior dos EUA. E conexão econômica entre Israel e a região do Golfo. Mas o tiro pode sair pela culatra – e despertar novas resistências e transformações políticas no Oriente Médio
Por Adam Hanieh, com tradução no Contrabando Editorial
A guerra genocida de Israel em Gaza gerou uma onda sem precedentes de protestos globais e de conscientização sobre a Palestina. Milhões de pessoas foram às ruas, acampamentos se espalharam por universidades mundo afora, ativistas corajosos bloquearam portos e fábricas de armas, e há um reconhecimento profundo de que uma campanha global de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel é necessária agora mais do que nunca. A força desses movimentos populares foi aguçada pela enorme atenção trazida pelo caso da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ) — um caso que destacou não apenas a realidade do genocídio israelense, mas também a intransigência dos principais estados ocidentais em permitir as ações de Israel na Faixa de Gaza e além.
Apesar dessa onda global de solidariedade à Palestina, o modo como a questão é debatida e enquadrada em geral revela diversas concepções errôneas. Muitas vezes, a política da Palestina é vista apenas através da lente de Israel, da Cisjordânia e de Gaza, ignorando as dinâmicas regionais mais amplas do Oriente Médio e o contexto global em que o colonialismo de povoamento israelense opera. Nesse sentido, a solidariedade com a Palestina em geral é reduzida à questão das massivas violações de direitos humanos e das contínuas violações do direito internacional por parte de Israel — os assassinatos, prisões e desapropriações que os palestinos experimentam há quase oito décadas. O problema com essa abordagem focada em direitos humanos é que ela despolitiza a luta palestina, deixando de explicar por que os estados ocidentais continuam a apoiar Israel de forma tão inequívoca. Quando a questão crucial do apoio ocidental é levantada, muitos apontam para um “lobby pró-Israel” operando na América do Norte e na Europa Ocidental como responsável — um ponto de vista falso e cujo desdobramento político é perigoso, errando na compreensão dos fundamentos na relação entre os estados ocidentais e Israel.
Meu objetivo com este artigo é apresentar uma abordagem alternativa para a compreensão da Palestina — uma pautada no papel central desempenhado pelo Oriente Médio e região mais ampla, à vista de nosso mundo centrado em combustíveis fósseis. Meu principal argumento é que o apoio inabalável dos EUA e dos principais estados europeus a Israel não pode ser compreendido fora desse contexto. Como colônia de povoamento, Israel tem sido crucial para a manutenção dos interesses imperiais ocidentais — em particular dos EUA — no Oriente Médio, desempenhando esse papel ao lado de outro pilar importante do controle dos EUA na região: as monarquias árabes ricas em petróleo, a Arábia Saudita em particular. O rápido desenvolvimento das relações entre o Golfo, Israel e os EUA são essenciais para entender o momento atual, dado o enfraquecimento relativo do poder global norte-americano.
Transformações pós-guerra e o Oriente Médio
Duas grandes mudanças globais definiram as alterações na ordem mundial nos anos imediatos posteriores à II Guerra Mundial. A primeira foi uma revolução nas matrizes energéticas do mundo: o surgimento do petróleo como principal combustível fóssil, substituindo o carvão e outras fontes de energia nas principais economias industrializadas. Essa transição de combustíveis fósseis ocorreu primeiro nos EUA, onde o consumo de petróleo superou o carvão em 1950, seguido pela Europa Ocidental e Japão na década de 1960. Nos países ricos representados na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o petróleo representava menos de 28% do consumo total de combustíveis fósseis em 1950; no final da década de 1960, detinha participação majoritária. Com sua maior densidade energética, flexibilidade química e transporte fácil, o petróleo impulsionou o capitalismo pós-guerra em expansão — sustentou uma variedade de novas tecnologias, indústrias e infraestrutura. Foi o início do que os cientistas denominariam mais tarde a “Grande Aceleração” — uma expansão massiva e contínua do consumo de combustíveis fósseis que começou em meados do século XX e que levou com inevitabilidade à emergência climática de hoje.
Essa transição global para o petróleo estava ligada a fundo com uma segunda grande transformação do pós-guerra: a consolidação dos EUA como a principal potência econômica e política. A ascensão econômica dos EUA começara nas primeiras décadas do século XX, mas foi a II Guerra Mundial que marcou a emergência definitiva dos EUA como a força mais dinâmica do capitalismo global, contra quem se chocava apenas a União Soviética e seu bloco aliado. O poder americano surgiu com base na destruição da Europa Ocidental durante a guerra, ao lado do enfraquecimento do domínio colonial europeu sobre grande parte do chamado Terceiro Mundo. À medida que a Grã-Bretanha e a França vacilavam, os EUA assumiram a liderança na construção da arquitetura política e econômica do pós-guerra, incluindo um novo sistema financeiro global baseado no dólar americano. Em meados da década de 1950, os EUA detinham uma participação de 60% na produção industrial mundial e pouco mais de um quarto do PIB global — além de 42 das 50 maiores corporações industriais do mundo.
Essas duas transições globais — a transição para o petróleo e a ascensão do poder americano — tiveram profundas implicações para o Oriente Médio. Por um lado, o Oriente Médio desempenhou um papel decisivo na transição global para o petróleo. A região tinha suprimentos abundantes do insumo, representando quase 40% das reservas comprovadas do mundo em meados da década de 1950. O petróleo do Oriente Médio também estava próximo de muitos países europeus, e os custos de produção eram muito mais baixos que em qualquer outro lugar do mundo. Quantidades aparentemente ilimitadas de petróleo de baixo custo do Oriente Médio poderiam, portanto, ser fornecidas à Europa a preços mais baixos que o carvão, ao mesmo tempo em que garantiam que os mercados de petróleo domésticos dos EUA permanecessem isolados dos efeitos do aumento da demanda europeia. O deslocamento da matriz de fornecimento de petróleo destinado à Europa para o Oriente Médio foi um processo em alta velocidade: entre 1947 e 1960, a participação do petróleo da Europa que vinha da região dobrou, passando de 43% para 85%. Isso não apenas possibilitou o surgimento de novas indústrias (como a petroquímica), mas também novas formas de transporte e de realização da guerra. De fato, sem o Oriente Médio, a transição para o petróleo na Europa Ocidental talvez nunca tivesse acontecido.
A maior parte das reservas de petróleo do Oriente Médio está concentrada na região do Golfo, em particular na Arábia Saudita e nos pequenos estados árabes da região, bem como no Irã e no Iraque. Durante a primeira metade do século XX, esses países foram governados por monarquias autocráticas apoiadas pelos britânicos (com a exceção da Arábia Saudita, que tinha independência formal do colonialismo britânico). A produção de petróleo na região era controlada por um punhado de grandes petrolíferas ocidentais, que pagavam rendas e royalties aos governantes desses estados pelo direito de extrair petróleo. Essas petrolíferas possuíam integração vertical, o que significa que não apenas controlavam a extração de petróleo bruto, mas também seu refino, transporte e venda pelo mundo. O poder dessas empresas era imenso, com um controle das infraestruturas de circulação do petróleo que lhes permitia excluir qualquer concorrente em potencial. A concentração de propriedade na indústria petrolífera superou em muito a observada em qualquer outra indústria; de fato, no final da II Guerra Mundial, mais de 80% de todas as reservas de petróleo do mundo fora dos EUA e da URSS eram controladas por apenas sete grandes empresas americanas e europeias — as chamadas “Sete Irmãs”.
Israel e a revolta anticolonial
Apesar de seu enorme poder, à medida que o Oriente Médio se tornava o centro dos mercados mundiais de petróleo nas décadas de 1950 e 1960, essas petrolíferas enfrentaram um grande problema. Como aconteceu em outras partes do mundo, uma série de movimentos nacionalistas, comunistas e de esquerda desafiaram os governantes apoiados pelo colonialismo britânico e francês, ameaçando desestabilizar a delicada ordem regional. Isso foi sentido ainda mais no Egito, onde o monarca apoiado pelos britânicos, o rei Farouk, foi deposto em 1952 em um golpe militar liderado por um oficial militar popular, Jamal Abdel Nasser. A ascensão de Nasser ao poder forçou a desmobilização das tropas britânicas lotadas no Egito e levou o Sudão a obter a independência em 1956. A soberania recém conquistada do Egito foi coroada com a nacionalização do Canal de Suez controlado pelos britânicos e franceses em 1956 — uma ação celebrada por milhões de pessoas em todo o Oriente Médio e respondida com uma invasão fracassada do Egito pela Grã-Bretanha, França e Israel. Enquanto Nasser tomava essas medidas, lutas anticoloniais cresciam em outras partes da região, com destaque à Argélia, onde uma guerra de guerrilha pela independência foi lançada contra a ocupação francesa em 1954.
Embora isso seja muitas vezes seja negligenciado hoje, essas ameaças a uma duradoura dominação colonial também foram sentidas nos estados ricos em petróleo do Golfo. Na Arábia Saudita e nas menores monarquias do Golfo, o apoio a Nasser era forte, e vários movimentos de esquerda protestaram contra a venalidade, a corrupção e a posição pró-Ocidente das monarquias governantes. As possíveis consequências disso se deram no vizinho Irã, onde um líder nacional popular, Muhammad Mossadegh, chegou ao poder em 1951. Um dos primeiros atos de Mossadegh foi assumir a direção da empresa de petróleo controlada pelos britânicos, Anglo-Iranian Oil Company (atual BP), na primeira nacionalização de petróleo no Oriente Médio. A nacionalização ressoou com força nos estados árabes vizinhos, onde o slogan “Petróleo árabe para os árabes” ganhou popularidade generalizada em meio ao clima anticolonial geral.
Em resposta à nacionalização do petróleo pelo Irã, oficiais de inteligência dos EUA e da Grã-Bretanha orquestraram um golpe contra Mossadegh em 1953, trazendo ao poder um governo pró-Ocidente leal ao monarca iraniano, Muhammad Reza Shah Pahlavi. O golpe marcou o início de uma onda contrarrevolucionária dirigida contra movimentos radicais e nacionalistas em toda a região. A derrubada de Mossadegh também revelou uma mudança importante na ordem regional: embora a Grã-Bretanha tenha desempenhado um papel importante no golpe, foram os EUA que lideraram o planejamento e a execução da operação. Foi a primeira vez que o governo dos EUA depôs um governante estrangeiro em tempos de paz, e o envolvimento da CIA no golpe foi um importante precursor das intervenções americanas posteriores, como o golpe de 1954 na Guatemala e a derrubada de Salvador Allende no Chile em 1973.
Foi nesse contexto que Israel emergiu como um grande bastião dos interesses americanos na região. Nos primeiros anos do século XX, a Grã-Bretanha foi a principal apoiadora da colonização sionista da Palestina, e após o estabelecimento de Israel em 1948, continuou a apoiar o projeto de construção do Estado sionista. Mas à medida que os EUA substituíram a dominação colonial britânica e francesa no Oriente Médio durante o período pós-guerra, o apoio americano a Israel emergiu como a peça central de uma nova ordem de segurança regional. O ponto de inflexão foi a guerra de 1967 entre Israel e os principais estados árabes, que viu o exército israelense destruir as forças aéreas do Egito e da Síria e ocupar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, a Península do Sinai (egípcia) e as Colinas de Golã (sírias). A vitória de Israel destruiu os movimentos de unidade árabe, de independência nacional e de resistência anticolonial que se cristalizaram com destaque no Egito de Nasser. Também encorajou os EUA a se tornarem o principal patrono de Tel Aviv, substituindo a Grã-Bretanha. A partir desse momento, os EUA começaram a fornecer a Israel, todo ano, bilhões de dólares em equipamentos militares e apoio financeiro.
A importância do colonialismo de povoamento
A guerra de 1967 mostrou que Israel era uma força poderosa que poderia ser usada contra quaisquer ameaças aos interesses americanos na região. Mas há uma dimensão crucial nisso que muitas vezes passa despercebida: o papel excepcional de apoio ao poder americano desempenhado por Israel possui relação direta ao seu caráter interno enquanto colônia de povoamento, fundada na contínua desapropriação da população palestina. Colônias de povoamento precisam trabalhar reforçando de forma contínua as estruturas de opressão racial, exploração de classes e expropriação e expoliação. Logo, são em particular sociedades altamente militarizadas e violentas, tendendo à dependência no apoio externo, garantindo seus privilégios materiais em um ambiente regional hostil.
Em tais sociedades, uma porção chave da população se beneficia da opressão dos povos autóctones e entende seus privilégios em termos racializados e militaristas. Por essa razão, as colônias de povoamento são parceiros muito mais confiáveis dos interesses imperiais ocidentais do que Estados fantoches “normais”.[1] É por isso que o colonialismo britânico apoiou o sionismo como um movimento político no início do século XX — e porque os EUA abraçaram Israel após 1967.
Claro, isso não significa que os EUA “controlam” Israel, ou que nunca há diferenças de opinião entre os governos dos EUA e de Israel sobre como essa relação deve ser sustentada. Mas a capacidade de Israel de manter um estado permanente de guerra, ocupação e opressão seria ameaçada de forma grave sem o apoio contínuo dos EUA (material e político). Israel, em troca, serve como um parceiro leal e um bastião contra ameaças aos interesses regionais norte-americanos.[2] Israel também atuou em escala global no apoio a regimes repressivos sustentados pelos EUA — desde o apartheid na África do Sul até as ditaduras militares na América Latina. Alexander Haig, secretário de Estado dos EUA sob Richard Nixon, uma vez colocou isso de forma direta: “Israel é o maior porta-aviões americano no mundo que não pode ser afundado, não carrega um único soldado americano e está localizado em uma região crítica para nossa segurança nacional.”[3]
A conexão entre o caráter interno do Estado israelense e o papel excepcional que desempenha para o poderio americano é semelhante ao papel que o apartheid sul-africano desempenhou para os interesses ocidentais em todo o continente africano. Existem diferenças importantes entre o apartheid sul-africano e o apartheid israelense — incluindo a participação predominante das populações negras da África do Sul na classe trabalhadora do país (ao contrário dos palestinos em Israel) — mas, como colônias de povoamento, ambos os países passaram a atuar como polos organizadores centrais do poder ocidental em suas respectivas regiões. Se examinarmos a história do apoio ocidental ao apartheid sul-africano, veremos os mesmos tipos de justificativas que vemos hoje no caso de Israel (e os mesmos tipos de tentativas de bloquear sanções internacionais e criminalizar movimentos de protesto). Esses paralelos se estendem ao papel de indivíduos específicos. Um exemplo pouco conhecido disso é uma viagem feita por um jovem membro do Partido Conservador da Grã-Bretanha à África do Sul em 1989, durante a qual ele argumentou contra sanções internacionais à África do Sul e defendeu porque a Grã-Bretanha deveria continuar a apoiar o regime do Apartheid. Décadas depois, esse jovem conservador, David Cameron, ao ocupar o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Reino Unido — foi um dos principais líderes mundiais a apoiar o genocídio de Israel em Gaza.
A centralidade do Oriente Médio para a economia global do petróleo dá a Israel um lugar mais pronunciado no poder imperial do que o apartheid sul-africano. Mas ambos os casos demonstram porque é tão importante pensar sobre como os fatores regionais e globais se cruzam com as dinâmicas internas de classe e raça das colônias de povoamento.
A integração econômica de Israel no Oriente Médio
O Oriente Médio tornou-se ainda mais relevante para o poder americano após a nacionalização das reservas de petróleo cru em grande parte da região (e em outros lugares) durante as décadas de 1970 e 1980. A nacionalização trouxe a um fim o longo controle direto do Ocidente sobre as reservas de petróleo no Oriente Médio (embora empresas americanas e europeias continuassem a controlar a maior parte do refino, transporte e venda global desse petróleo). Os interesses dos EUA na região, nesso contexto, giravam em torno de garantir o fornecimento estável de petróleo ao mercado mundial — denominado em dólares americanos — e garantir que o petróleo não fosse usado como uma “arma” para desestabilizar um sistema global organizado em torno dos EUA. Além disso, com os produtores de petróleo do Golfo agora ganhando trilhões através da exportação de petróleo cru, os EUA também estavam preocupados em particular com a forma de circulação desses chamados petrodólares pelo sistema financeiro global — uma questão central para a dominância do dólar americano.
Ao buscar esses interesses, a estratégia dos EUA se concentrou na sobrevivência das monarquias do Golfo, lideradas pela Arábia Saudita, como principais aliados regionais. Isso ganhou ainda mais importância após a derrubada, em 1979, da monarquia Pahlavi do Irã, que havia sido outro pilar dos interesses americanos no Golfo desde o golpe de 1953. O apoio dos EUA às monarquias do Golfo manifestou-se de várias maneiras — incluindo a venda de enormes quantidades de equipamento militar que transformaram o Golfo no maior mercado de armas do mundo, iniciativas econômicas que canalizaram a riqueza do petrodólar do Golfo na direção dos mercados financeiros norte-americanos, e uma presença militar permanente dos EUA que continua a ser a última garantia do domínio monárquico.
Um momento crucial na relação EUA-Golfo ocorreu com a Guerra Irã-Iraque, que durou entre 1980 e 1988 e é classificada como um dos conflitos mais destrutivos do século XX (até meio milhão de pessoas morreram). Durante essa guerra, os EUA forneceram armas, financiamento e inteligência para ambos os lados, vendo isso como uma forma de minar o poder desses dois grandes países vizinhos consolidando ainda mais a segurança dos monarcas do Golfo.
A estratégia dos EUA no Oriente Médio, então, passou a se basear em dois pilares principais: Israel, de um lado, e as monarquias do Golfo, do outro. Esses dois pilares permanecem o núcleo do poder americano na região hoje; houve, no entanto, uma mudança crítica na relação entre eles. A partir da década de 1990 até hoje, o governo dos EUA buscou unir esses dois polos estratégicos — junto com outros estados árabes importantes, como Jordânia e Egito — dentro de uma única zona que está ligada ao poder econômico e político dos EUA. Para que isso acontecesse com sucesso, Israel precisava ser integrado de forma mais ampla ao Oriente Médio — através da normalização de suas relações (econômicas, políticas, diplomáticas) com os Estados árabes. Mais importante ainda, isso significava eliminar os boicotes árabes formais a Israel que existiam há muitas décadas.
Da perspectiva de Israel, a normalização não era apenas permitir o comércio e os investimentos israelenses nos Estados árabes. Após uma grande recessão em meados da década de 1980, a economia de Israel mudou de setores como construção e agricultura, para uma ênfase muito maior em alta tecnologia, finanças e exportações militares. Muitas das principais empresas internacionais, no entanto, relutavam fazer negócios com empresas israelenses (ou dentro de Israel) devido aos boicotes secundários impostos pelos governos árabes.[4] Abolir esses boicotes era essencial para atrair grandes empresas ocidentais para Israel, permitindo que as empresas israelenses acessassem mercados externos, nos EUA e em outros lugares. A normalização econômica, em outras palavras, era tanto sobre garantir o lugar do capitalismo israelense na economia global quanto sobre o acesso de Israel aos mercados do Oriente Médio.
Para esse fim, os EUA (e seus aliados europeus) empregaram uma variedade de mecanismos a partir da década de 1990, visando impulsionar a integração econômica de Israel ao Oriente Médio mais geral. Um deles foi aprofundar reformas econômicas —abertura aos investimentos estrangeiros e aos fluxos comerciais que se espalharam com rapidez pela região. Neste ensejo, os EUA propuseram uma série de iniciativas econômicas que buscavam ligar os mercados israelenses e árabes entre si e, em seguida, à economia dos EUA. Um esquema-chave envolvia as chamadas Zonas Industriais Qualificadas (ZIQs) — zonas de manufatura de baixo custo estabelecidas na Jordânia e no Egito no final da década de 1990. Os produtos fabricados nas ZIQs (têxteis e vestuário em particular) tinham acesso livre de impostos aos EUA, desde que uma certa porção dos insumos envolvidos em sua fabricação viesse de Israel. As ZIQs desempenharam um papel inicial e decisivo na unificação do capital israelense, jordaniano e egípcio em estruturas de propriedade conjunta — normalizando as relações econômicas entre dois dos estados árabes que fazem fronteira com Israel. Em 2007, o governo dos EUA relatava que mais de 70% das exportações da Jordânia para os EUA vinham de ZIQs; para o Egito, 30% das exportações para os EUA foram produzidas em ZIQs em 2008.[5]
Além do programa ZIQ, os EUA também propuseram a iniciativa da Área de Livre Comércio do Oriente Médio, no inglês, Middle East Free Trade Area (MEFTA), em 2003. A MEFTA visava estabelecer uma zona de livre comércio abrangendo toda a região até 2013. A estratégia dos EUA era negociar com países individuais “amigos” usando um processo gradual de seis etapas que deveriam levar a um Acordo de Livre Comércio (ALC) pleno entre os EUA e o país em questão.
Esses ALCs foram projetados para que os países pudessem conectar seus próprios ALCs bilaterais com os EUA com os ALCs bilaterais de outros países, estabelecendo assim acordos em nível sub-regional em todo o Oriente Médio. Esses acordos sub-regionais poderiam ser ligados ao longo do tempo até que cobrissem toda a região.
Importante destacar que esses ALCs também seriam usados para encorajar a integração de Israel nos mercados árabes, com cada acordo contendo uma cláusula que comprometia o signatário à normalização com Israel, proibindo qualquer boicote às relações comerciais. Embora os EUA não tenham conseguido atingir sua meta de 2013 de estabelecer a MEFTA, a política impulsionou com sucesso uma expansão da influência econômica dos EUA na região, sustentada pela normalização entre Israel e os principais estados árabes. Nota-se que hoje os EUA têm 14 ALCs com países de todo o mundo, cinco dos quais são com estados do Oriente Médio (Israel, Bahrein, Marrocos, Jordânia e Omã).
Os Acordos de Oslo
No entanto, o sucesso da normalização econômica dependia, em última análise, de uma mudança na situação política que desse um “sinal verde” palestino à integração econômica de Israel ao Oriente Médio mais amplo. Aqui, o ponto de inflexão foram os Acordos de Oslo, firmado entre Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) sob os auspícios do governo dos EUA no gramado da Casa Branca em 1993. Oslo baseou-se com força em práticas coloniais estabelecidas nas décadas anteriores. Desde a década de 1970, Israel tentava encontrar uma força palestina que administrasse a Cisjordânia e a Faixa de Gaza em seu nome — um procurador palestino para a ocupação israelense que pudesse minimizar o contato diário entre palestinos e o exército israelense. Essas tentativas iniciais colapsaram durante a Primeira Intifada, uma grande revolta popular que começou (na Faixa de Gaza) em 1987. Os Acordos de Oslo puseram fim à Primeira Intifada.
Sob Oslo, a OLP concordou em constituir uma nova entidade política, denominada Autoridade Palestina (AP), que receberia poderes limitados sobre áreas fragmentadas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. A AP tem dependência total em financiamento externo para sua sobrevivência — em particular empréstimos, pacotes de ajuda e impostos de importação cobrados por Israel, a serem repassados depois à AP. Como a maioria dessas fontes de financiamento derivava, em última análise, de Estados ocidentais e de Israel, foi rápida a subordinação política da AP. Além disso, Israel reteve controle total sobre a economia e os recursos palestinos, assim como o movimento de pessoas e mercadorias. Após a divisão territorial de Gaza e da Cisjordânia em 2007, a AP estabeleceu sua sede em Ramallah, na Cisjordânia. Hoje, a AP é dirigida por Mahmoud Abbas.[6]
Apesar da forma como os Acordos de Oslo e negociações subsequentes são em geral apresentados, eles nunca foram sobre a paz e um caminho para a liberdade palestina. Durante Oslo a expansão dos assentamentos israelenses explodiu na Cisjordânia, o Muro do Apartheid foi construído e as intricadas restrições de movimento que hoje governam a vida palestina foram desenvolvidas. Oslo serviu para expulsar segmentos estratégicos da população palestina — os refugiados e os cidadãos palestinos de Israel — da arena política, reduzindo a questão da Palestina a negociações em torno de pequenos pedaços de território na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Mais importante, Oslo forneceu uma bênção palestina à integração de Israel ao Oriente Médio em geral, abrindo caminho para que os governos árabes — encabeçados pela Jordânia e Egito — abraçassem a normalização com Israel sob o guarda-chuva dos EUA.
Foi após Oslo que as restrições de movimento, barreiras, postos de controle e zonas fechadas militares que agora cercam Gaza surgiram. Nesse sentido, a prisão a céu aberto que é Gaza hoje é um produto do processo de Oslo: um fio direto conecta as negociações de Oslo ao genocídio que estamos testemunhando. É crucial lembrar disso à luz das discussões em andamento sobre possíveis cenários pós-guerra. A estratégia israelense sempre envolveu o uso periódico de violência extrema, combinado a promessas falsas de negociações, com apoio internacional. Essas duas ferramentas fazem parte do mesmo processo, reforçando a contínua fragmentação e desapropriação do povo palestino. Qualquer negociação pós-guerra liderada pelos EUA com certeza verá tentativas semelhantes de garantir a continuação da dominação israelense sobre as vidas e terras palestinas.
Pensando no futuro
A centralidade estratégica do Oriente Médio, rico em petróleo, no poder global americano explica porque Israel é agora o maior destinatário cumulativo de ajuda externa dos EUA no mundo, embora seja classificado como a 13ª economia mais rica do mundo em PIB per capita (mais alto que o Reino Unido, Alemanha ou Japão). Também explica o apoio bipartidário a Israel entre as elites políticas dos EUA (e do Reino Unido). De fato, em 2021 — sob a presidência de Trump e antes da guerra atual — Israel recebeu mais financiamento militar externo dos EUA do que todos os outros países do mundo combinados. E, crucialmente, como mostra o último ano, o apoio americano vai muito além do apoio financeiro e material, com os EUA atuando como o último respaldo na defesa política de Israel na arena global.[7]
Essa aliança americana com Israel, como vimos, não é incidental à espoliação do povo palestino, mas na verdade se fundamenta nela. É seu caráter de colônia de povoamento que deu a Israel um papel tão desproporcional no fortalecimento do poder dos EUA em toda a região. É por isso que a luta palestina é um elemento tão importante para impulsionar mudanças políticas em todo o Oriente Médio — uma região que agora é a área de maior polarização social, desigualdade econômica e conflitos bélicos no mundo. Também é por isso que a luta pela Palestina está ligada de forma intima aos sucessos (e fracassos) de outras lutas sociais progressistas na região.
O eixo central dessas dinâmicas inter-regionais continua a ser a conexão entre Israel e os estados do Golfo. Nas duas décadas que se seguiram aos Acordos de Oslo, a estratégia dos EUA no Oriente Médio continuou a enfatizar a integração econômica e política de Israel com os estados do Golfo. Um grande passo à frente nesse processo ocorreu com os Acordos de Abraão de 2020, que viram os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein concordarem em normalizar as relações com Israel. Os Acordos de Abraão abriram caminho para uma ALC entre os Emirados e Israel, assinada em 2022, a primeiro ALC de Israel com um Estado árabe. O comércio entre Israel e os EAU superou US$ 2,5 bilhões em 2022, ante apenas US$ 150 milhões em 2020. Sudão e Marrocos também desenvolveram acordos semelhantes com Israel, impulsionados por relevantes incentivos americanos.[8]
Com os Acordos de Abraão, cinco países árabes agora têm relações diplomáticas formais com Israel. Esses países abrangem cerca de 40% da população de todo o mundo árabe e incluem algumas das principais potências políticas e econômicas da região. Mas uma questão crucial ainda permanece: quando a Arábia Saudita se juntará a esse clube? Embora seja impossível que os Emirados e o Bahrein pudessem ter concordado com os Acordos de Abraão sem o consentimento da Arábia Saudita, o Reino Saudita até agora não normalizou formalmente os laços com Israel — apesar de uma infinidade de reuniões e conexões informais entre os dois estados nos últimos anos.
Em meio ao genocídio atual, um acordo de normalização entre a Arábia Saudita e Israel é sem dúvida o principal objetivo do planejamento dos EUA para o momento pós-guerra. É muito provável que o governo saudita concorde com tal resultado — e até já tenha indicado isso ao governo Biden — desde que receba algum tipo de sinal verde da AP em Ramallah (talvez relacionado ao reconhecimento internacional de um pseudoestado palestino em partes da Cisjordânia). Existem, é claro, obstáculos significativos para esse cenário, incluindo a recusa contínua dos palestinos em Gaza em se renderem e a questão de como Gaza será administrada após o fim da guerra. Mas o plano atual dos EUA de uma força multinacional árabe assumindo o controle da Faixa, liderada por alguns dos principais estados normalizadores — Emirados, Egito e Marrocos — conectado, ao que tudo indica, à normalização entre Arábia Saudita e Israel.
Unir os estados do Golfo e Israel é cada vez mais relevante para os interesses dos EUA na região, dadas as rivalidades acentuadas e tensões geopolíticas emergentes em nível global, em particular com a China. Embora não exista outra “grande potência” que esteja prestes a substituir a dominância americana no Oriente Médio, houve um declínio relativo na influência política, econômica e militar dos EUA na região nos últimos anos. Uma indicação disso são as crescentes interdependências entre os estados do Golfo e a China/Ásia Oriental, que agora vão muito além da exportação de petróleo bruto do Oriente Médio. Nesse contexto — e dado o papel duradouro desempenhado por Israel para o poder americano — qualquer processo de normalização conduzido pelos EUA ajudaria a reafirmar a primazia americana na região, servindo em potencial como uma alavanca relevante contra a influência chinesa.
Apesar das discussões em andamento sobre cenários pós-guerra, os últimos 76 anos demonstraram repetidas vezes que as tentativas de apagar de forma permanente a resistência e a perseverança palestina falharão. A Palestina agora se encontra na vanguarda de um despertar político global que supera qualquer coisa vista desde a década de 1960.
Diante dessa maior conscientização sobre a condição palestina, nossa análise deve ir além da oposição imediata à brutalidade de Israel na Faixa de Gaza. A luta pela libertação palestina está no centro de qualquer desafio eficaz aos interesses imperiais no Oriente Médio, e nossos movimentos precisam de uma melhor compreensão dessas dinâmicas regionais mais amplas — em particular o papel crucial das monarquias do Golfo. Também precisamos de uma compreensão mais profunda de como o Oriente Médio se encaixa na história do capitalismo fóssil e nas lutas contemporâneas por justiça climática. A questão da Palestina não pode ser separada dessas realidades. Nesse sentido, a extraordinária batalha pela sobrevivência travada pelos palestinos hoje na Faixa de Gaza representa a linha de frente da luta pelo futuro do planeta.
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*Traduzido do inglês do site Mondoweiss por Mateus Forli
Adam Hanieh é Professor de Economia Política e Desenvolvimento Global no Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos, da Universidade de Exeter. Seu livro mais recente, Crude Capitalism: Oil, Corporate Power, and the Making of the World Market, será lançado pela Verso Books em setembro de 2024.
[1] Para uma elaboração e documentação mais aprofundadas dos pontos abordados nesta seção, consulte meu próximo livro, Crude Capitalism: Oil, Corporate Power, and the Making of the World Market (Verso Books, 2024).
[2] Os regimes fantoches árabes — como os atuais Egito, Jordânia e Marrocos — enfrentam repetidas ameaças de movimentos políticos dentro de suas próprias fronteiras e são sempre forçados a acomodar-se e responder a pressões vindas de baixo.
[3] A curiosa fonte para essa citação aparece em um artigo escrito pelo ex-embaixador israelense nos EUA, Michael Oren, intitulado “The Ultimate Ally” (O Aliado Supremo).
[4] Boicotes secundários significavam que uma empresa com investimentos em Israel, como a Microsoft, enfrenta exclusão dos mercados árabes.
[5] Discussões adicionais sobre as Zonas Industriais Qualificadas (ZIQs), a Área de Livre Comércio do Oriente Médio (MEFTA) e a economia política da normalização de Israel podem ser encontradas em Adam Hanieh, Lineages of Revolt: Issues of Contemporary Capitalism in the Middle East (Haymarket Books, 2013), especialmente nas páginas 36–38.
[6] Em 2006, as eleições para o Conselho Legislativo Palestino foram vencidas de forma convincente pelo Hamas, que conquistou 74 das 132 cadeiras em disputa. Um governo de unidade nacional foi formado primeiro entre Hamas e Fatah, o partido palestino governante que controla a Autoridade Palestina (AP). No entanto, esse governo foi dissolvido pelo Fatah após o Hamas tomar o controle da Faixa de Gaza em 2007. Desde então, autoridades separadas existem em Gaza e na Cisjordânia.
[7] Existem também muitos outros tipos de apoio além da ajuda militar e financeira direta — por exemplo, os EUA fornecem bilhões de dólares em garantias de empréstimos a Israel, o que permite a Israel tomar empréstimos a custos mais baixos no mercado mundial. Israel é um dos seis países no mundo a receber essas garantias na última década (Ucrânia, Iraque, Jordânia, Tunísia e Egito são os outros).
[8] No caso do Sudão, os EUA concordaram em fornecer um empréstimo de US$ 1,2 bilhão e remover o país de sua lista de patrocinadores estatais do terrorismo (embora o acordo de normalização ainda não tenha sido ratificado). No caso do Marrocos, os EUA reconheceram a soberania marroquina sobre o Saara Ocidental em troca da normalização do país com Israel.