O desprezo pela vida é a política de Guilherme Derrite. Por Paula Nunes

No blog da Boitempo

No dia 6 de novembro de 2024, o Morro São Bento, em Santos, mais uma vez amanheceu chorando. Uma operação policial na noite anterior fez duas vítimas fatais: Gregory, de 17 anos, e Ryan, de 4 anos. Se as balas perdidas não acertassem sempre os mesmos corpos, poderia-se dizer que foi uma trágica coincidência o fato de que, meses antes, em 9 de fevereiro do mesmo ano, o pai de Ryan, Leonel, de 36 anos, tenha sido assassinado pelo mesmo aparato policial no mesmo morro, no contexto da Operação Escudo/Verão. Em apenas um ano, Beatriz, mãe de Ryan e viúva de Leonel, perdeu o marido e o filho para a violência policial.

Quando questionado por mim na reunião da Comissão de Segurança Pública e Assuntos Penitenciários da ALESP, o Secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, respondeu a uma parlamentar eleita com a atribuição de fiscalizar as ações do Poder Executivo que “nenhum policial estava feliz com a morte de uma criança”, que não faria “palanque político com a morte de uma criança” e que eu fazia “vitimismo barato”. A fala do secretário foi recebida com o estranhamento necessário pelos veículos de imprensa e com indignação pelos movimentos sociais de defesa dos Direitos Humanos. Afinal, diante dos dados da violência policial no estado de São Paulo, como é possível que o responsável pela atuação das forças de segurança estatais alegue “vitimismo” ao ser questionado sobre tamanha tragédia?

Importa dizer, inclusive, que quatro dias após a execução de seu filho, a mãe de Ryan alegou em entrevista que nenhum representante do governo estadual a tinha procurado, seja para prestar solidariedade, seja para propor alguma medida concreta de reparação por uma perda, em realidade, irreparável. Pelo contrário, durante todo o cortejo do corpo no Morro São Bento, assim como no enterro de Ryan, houve presença ostensiva da Polícia Militar, que intimidou familiares, amigos e moradores. Essa é a solidariedade oferecida pelo governo do estado de São Paulo?

Desde que assumiu o governo do estado, Tarcísio de Freitas nunca escondeu qual seria o tom de sua política de segurança pública. Escolheu para chefiar a pasta o Deputado Federal licenciado Guilherme Derrite, cujo currículo dizia exatamente qual seria seu comportamento no comando das polícias. Uma matéria da Revista Piauí demonstrou que Derrite foi parte da Rota e deixou a tropa de elite da Polícia Militar após operação que resultou na morte de seis pessoas. Em uma entrevista para um canal do YouTube, o Secretário disse o que motivou sua saída da Rota: “porque eu matei muito ladrão. A real é essa, simples. Pá!”. Provavelmente essas não são as únicas mortes que constam na ficha de Derrite, já que em certidão apresentada ao TSE para concorrer às eleições de 2022 consta sua investigação em outros seis inquéritos policiais, com ações que resultaram em dez mortes. O secretário já foi investigado por dezesseis homicídios. Mas há mais que merece ser dito: um homem condenado a 102 anos de prisão declarou em depoimento à Defensoria Pública ser parte de um grupo de extermínio na cidade de Osasco batizado de “Eu Sou a Morte”, cujas operações eram de conhecimento do Derrite, à época membro do 14º Batalhão da PM. Segundo ele, “tudo o que a gente ia fazer avisava o Derrite. Ele tinha comando total“.

Toda a atuação política de Guilherme Derrite é voltada à valorização da atuação dos policiais militares de forma indiscriminada, o que ocorre desde as suas constantes declarações que tratam os agentes policiais como vítimas em operações conduzidas por eles, até a tentativa de ampliar o poder da Polícia Militar no registro de ocorrências, usurpando a atribuição da Polícia Civil. Sua condução da secretaria é absolutamente corporativista.

Há, no entanto, uma grande diferença entre a posição política do secretário e a das pessoas e movimentos sociais que verdadeiramente defendem a vida: os dados que ele apresenta como eficiência de gestão em segurança pública, para nós, representam vidas interrompidas pela violência policial.

A presença de Guilherme Derrite à frente da Segurança Pública encerrou um ciclo de aproximadamente dois anos de redução da letalidade policial no estado de São Paulo, o que só tinha sido possível a partir da instalação de câmeras corporais (bodycam) nas fardas dos policiais militares. Diferente do que agitava em campanha eleitoral, a gestão Tarcísio não acabou com as câmeras corporais, mas alterou substancialmente o seu uso. Em edital anunciado pelo governo do estado em meados de 2024, a principal mudança foi a extinção da gravação ininterrupta, de modo que os próprios policiais podem escolher em que momento acionam ou não a gravação das ocorrências. A licitação também reduziu o tempo de armazenamento das imagens, o que pode dificultar o acesso às gravações e, portanto, a utilização das imagens como prova, em razão do tempo em que uma investigação ou um processo criminal são realizados. A justificativa da secretaria foi orçamentária, mas a lei orçamentária aprovada pela ALESP previu R$ 328 bilhões para a pasta de Segurança Pública em 2024 — a maior da história, com um aumento de 3,3% em relação ao ano anterior. Os contratos vigentes para o uso das câmeras corporais totalizaram R$ 96.384.135,00 em 2023, o que representa menos de 1% do total de gastos empenhados pela Polícia Militar e menos de 0,5% do orçamento das polícias do estado, segundo dados da Plataforma JUSTA.

O desprezo da gestão da Secretaria de Segurança Pública pelo controle da atividade policial já surtiu o efeito esperado por eles. Levantamento do Instituto Sou da Paz  demonstrou que as mortes cometidas por policiais em serviço aumentaram 78,5% entre janeiro e agosto de 2024, com crescimento do índice em praticamente todas as regiões do estado. Se consideradas apenas as pessoas negras (pretas e pardas), a letalidade policial registrada sobe para 83,8%. Não é surpresa nenhuma, mas é necessário dizer que o percentual de vítimas negras da letalidade policial em São Paulo atingiu, nos primeiros oito meses de 2024, o maior índice dos últimos seis anos.

Na mesma toada, o relatório Pele Alvo, produzido pela Rede de Observatórios de Segurança, analisou os dados da segurança pública em todo o país e verificou que as mortes causadas pela polícia, já no ano de 2023 — primeiro ano de mandato do novo governo —, haviam aumentado 21,7%. Dentre as vítimas, 66,3% eram pessoas negras, e 52,3% estavam na faixa etária entre 12 e 29 anos.

A Operação Escudo/Verão, na Baixada Santista, iniciada em julho de 2023 e encerrada em maio de 2024, vitimou 84 pessoas e deixou evidências de execução sumária e tortura. É a operação mais letal no estado de São Paulo desde o Massacre do Carandiru. Todas essas violações foram documentadas em um relatório colaborativo produzido por entidades de direitos humanos que estiveram nos territórios em que as operações aconteceram e colheram depoimentos de testemunhas e familiares de vítimas. Um dos casos que chama mais atenção é exatamente o de Leonel, pai de Ryan. Leonel usava muletas para tudo e, de acordo com relatos da família, não conseguia andar sem elas, e muito menos atirar. Há vasta documentação sobre sua condição, já que ele era beneficiário do Benefício de Prestação Continuada (BPC) há mais de uma década.

Quando questionado em coletiva de imprensa sobre esse alto índice, Derrite disse: “eu nem sabia”. Tarcísio, por sua vez, declarou: “pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí”.

Depois da morte de Ryan, a Secretaria anunciou o “reforço policial” na Baixada Santista. Mais de 84 mortes não são suficientes para parar a violência policial, a morte de uma criança de 4 anos não é suficiente para parar a violência policial, uma mãe perder o marido e o filho no mesmo ano não é suficiente para parar a violência policial e a presença ostensiva da polícia no velório de uma criança assassinada por seus próprios agentes não é suficiente para parar a violência policial. Eles, que se dizem defensores da vida, desprezam a vida e a morte dos nossos. Nós, por outro lado, não descansaremos até que absolutamente todas as vidas tenham o mesmo valor nessa sociedade.

Paula Nunes é Deputada Estadual com a Bancada Feminista do PSOL na ALESP, advogada criminalista, defensora de Direitos Humanos, e mãe da Flora. Publicou o capítulo “Sobre Junho de 2013 e o movimento negro brasileiro contemporâneo” na coletânea Junho de 2013: a rebelião fantasma, organizada por Breno Altman e Maria Carlotto.

Foto: Guilherme Derrite e Tarcísio de Freitas. Reprodução Facebook

 

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