Leia na íntegra a carta assinada por 60 organizações e movimentos sociais de todo o Brasil
Araguatins, município localizado na região norte do Tocantins, tem como seu fundador Vicente Bernardino Gomes, que chegou na região em 1868, trazendo trabalhadores escravizados que havia adquirido como pagamento de uma dívida, entre eles: Julião Barros, Sarafina Benedita Batista e seu filho Henrique Julião Barros – respectivamente, bisavós e avô paterno de Salvador Batista Barros, falecido griô (ancião) da comunidade quilombola da Ilha de São Vicente. O fragmento dessa história está registrado no livro “De São Vicente a Araguatins: Cem anos de história”, escrito e publicado em 1970 por Leônidas G. Duarte. Depois da abolição da escravatura, em 1888, os ex-escravizados receberam a terra como doação e começaram a povoar o território, formando o quilombo Ilha de São Vicente. Desde então, a família Barros ocupa ancestralmente a ilha, território de convívio de diferentes gerações.
Em 2010, a comunidade sofreu um despejo ilegal. No mesmo ano, a comunidade recebeu, da Fundação Cultural Palmares, a certificação de autodefinição como remanescentes de quilombo. Em seguida, o Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – passou a dar andamento às ações de identificação histórica, antropológica da comunidade, que culminou na titulação definitiva. A luta pela regularização do quilombo se tornou conhecida internacionalmente há mais de 20 anos, a partir do trabalho da liderança quilombola Fátima Barros, que ancestralizou, mas inspirou a defesa de direitos quilombolas em todo o país.
De acordo com o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT da Constituição Federal, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos”. Dessa forma, em 20 de novembro de 2023, o presidente Lula entregou ao quilombo Ilha de São Vicente o Título de Concessão de Direito de Uso sobre a Terra. Cinco dias depois, o título foi entregue dentro do próprio território, sendo dedicado aos ancestrais que morreram sonhando com a regularização. O documento entregue por Edmundo Costa, superintendente do Incra no Tocantins, informa que a comunidade quilombola é a única responsável legal pelo território.
O quilombo foi reconhecido pelo Governo, mas parte da população araguatinense, embasada em comportamentos de autoridades regionais, tem insistido em desrespeitar a história desse povo. O prefeito de Araguatins, Aquiles da Areia, incentiva o desrespeito contra o quilombo ao negar e duvidar da história da comunidade e reproduzir informações falsas por diversas vezes. Em entrevista para uma rádio de Araguatins no dia 14 de novembro, ele afirmou que o quilombo se formou em 2023 e disse que deseja fazer uma estrada dentro da comunidade, sem nenhuma consulta, para facilitar o acesso, sendo que os quilombolas têm o rio como via. Além disso, o prefeito tem um discurso que encoraja pessoas não quilombolas a permanecerem no território mesmo findando o prazo de desintrusão determinado pelo Incra. A saída das pessoas não quilombolas é uma determinação legal que garante o bem viver da comunidade quilombola.
O território da Ilha de São Vicente é de usufruto exclusivo dos quilombolas e isso precisa ser respeitado. Conforme o prazo de desintrusão delimitado pelo INCRA, os não quilombolas têm menos de um mês para sair do território. Em meio ao Mês da Consciência Negra, é importante que se conscientizem sobre a importância de fazerem cumprir a Lei, o está postulado na Constituição Federal e o que está sendo orientado pelo INCRA. Apesar da legitimidade da luta por direito quilombola, a comunidade sempre sofreu ataques racistas, algo que se intensificou após a titulação do território, e também ameaças de morte, crimes que ferem a dignidade humana. Isso ocorre porque há anos pessoas não quilombolas têm tido expectativas em possuir lotes dentro do quilombo, incentivadas por autoridades públicas que alimentam falsas esperanças a partir de argumentos inconstitucionais.
A presente Carta vem a público trazer a Memória da Luta de Fátima Barros e dos outros ancestrais do quilombo Ilha de São Vicente, diante do atual contexto histórico, expressar apoio, solidariedade e força à comunidade quilombola da Ilha de São Vicente. As falsas narrativas e todo ataque racista contra o território representam ameaças não apenas à população quilombola, mas também a outras tantas lutas, territórios e comunidades habitantes no Tocantins. Todo o direito à terra e ao Bem Viver para o povo quilombola! Que neste Mês da Consciência Negra possamos acompanhar boas notícias para o Quilombo Ilha de São Vicente! Estamos com vocês.
Assinam essa carta em apoio e solidariedade à comunidade quilombola da Ilha de São Vicente, as seguintes entidades, movimentos sociais e instituições:
- Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ
- Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins – COEQTO
- Comissão Pastoral da Terra – CPT Nacional
- Comissão Pastoral da Terra – CPT Araguaia Tocantins
- Articulação de Mulheres Negras e Quilombolas do Tocantins – Alagbara
- Movimento Estadual de Direitos Humanos do Tocantins
- Comissão Memória de Fátima Barros
- Conselho de Promoção da Igualdade Racial – CEPIR
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -MST – Nacional
- Conselho Indigenista Missionário Goiás / Tocantins CIMI GO/TO
- Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
- Articulação de Luta pela Terra e Defesa dos Territórios no Tocantins
- Articulação Agro é Fogo
- Coletivo de Juventude Quilombola Griôs Aprendizes
- Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM Brasil
- Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM Tocantins
- Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão
- Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente CEDECA/TO
- Marcha Mundial das Mulheres/ Núcleo Lélia Gonzalez
- Coletivo Dandaras do MATO – Mulheres Negras feministas do Maranhão e Tocantins
- Coletivo Feminista de Mulheres Negras do Tocantins- Ajunta Preta
- Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
- Movimento Quilombola do Maranhão-MOQUIBOM
- Coalizão Negra por Direitos
- Via Campesina Brasil
- Movimento dos Atingidos por Barragens -MAB
- Movimento Negro Unificado – MNU/TO
- Articulação dos Povos indígenas do Tocantins – ARPIT
- Articulação Tocantinense de Agroecologia (ATA)
- Coletivo Nacional de Juventude Negra – ENEGRECER
- Coletivo Kizomba
- Federação Nacional das Associações Quilombolas – FENAQ
- Rede de Psicologia e Povos da Terra
- Rede BrCidades
- Associação de Desenvolvimento e Preservação dos Rios Araguaia e Tocantins – ADPRATO
- Associação União das Aldeias Apinajé PEMPXÀ
- Coletivo Julho das Pretas – Karen Luz
- Associação Negra Cor de Araguaína ANCA
- Teia dos Povos de São Paulo
- Alternativa para a Pequena Agricultura no Tocantins – APATO
- Movimento Nacional de Luta pela Moradia do Pará – MNLM PA
- Centro de Direitos Humanos de Araguaína
- Centro de Direitos Humanos de Cristalândia/Regional
- Centro de Direitos Humanos de Formoso do Araguaia
- Centro de Direitos Humanos de Palmas
- Centro de Direitos Humanos de Porto Nacional
- Centro de Educação Popular – Estadual / Palmas
- Comsaúde- Porto Nacional e Palmas
- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -MST – Palmas e Estadual
- Escola de Ativismo
- Instituto Art’Afro e Direitos Humanos – Miracema
- Kolping de Palmas/TO
- Atrato – Associação das Travestis e Transexuais do Tocantins
- Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia da região PA e AP
- UNEGRO
- Associação do Povo Ãwa -APÃWA-TO
- Associação Brasileira de Psicologia Social – Abrapso Nacional
- Associação Brasileira de Psicologia Social – Abrapso Regional Norte
- Associação Brasileira de Psicologia Social – Núcleo Abrapso Miracema-Palmas
- Coletivo Ação Libertária (Bauru/SP)
- Instituto Zé Claudio e Maria – IZM
- Coletivo Baobá
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Foto: Olayinka Babalola via Unsplash.com / MPF