Estivemos à beira de mais uma ditadura?
Estaremos sempre, enquanto persistir a síndrome pós-Guerra do Paraguai. Homens armados se veem superiores aos desarmados. Se bem treinados, maior a sensação de superioridade. Enfileirados, uniformizados e afastados da convivência social, imaginam-se capazes de tudo. Pretendem-se gloriosos e subjugam os que lhes sustentam. Para o poder político, comandá-los é tarefa obrigatória. Ou comanda ou é submetido.
Os ânimos nos quartéis estão acirrados?
O clima é de apreensão sobre os desdobramentos das investigações. Há profundo mal-estar com a saraivada de denúncias e críticas desabonadoras. Corporações têm instinto de defesa: percebendo-se atacadas, tendem a se unir, não a se fragmentar.
Ocorrerão tentativas de intimidar a Justiça e o Comandante Supremo das Forças Armadas. É preciso enquadrar os oficiais da ativa e da reserva que extrapolem. Comandantes que não enquadrem os ativistas explícitos, estarão prevaricando.
Pode haver reações violentas?
Não creio. Sabem que perderão. Os militares aprenderam a planejar, a agir por “aproximações sucessivas”. Certamente, há pressões internas, mas nada que arranhe a cadeia de comando.
As corporações respeitarão a Justiça?
Vejamos como será o processo judicial. A Justiça tende a contemporizar. O “diálogo” desmoralizaria a Justiça e o poder político. Militar é preparado para obedecer, não para dialogar. Se não sentir firmeza na autoridade, buscará submetê-la.
O inquérito da PF atinge todos os responsáveis?
De forma alguma. Até agora, atingiu criminosos notórios, o que representa um grande feito. Villas Bôas, incentivador de baderneiros, ficou fora da lista. Comandantes de unidades que agasalharam golpistas em suas calçadas tem contas a prestar. Os que discursaram nos quartéis, nem se fale. Aguardemos o andamento do processo. Se o STF se intimidar, a porta do inferno continuará aberta.
O prosseguimento das investigações mostrará os comandantes de unidades militares que prevaricaram ao permitir acampamentos de sediciosos financiados por políticos e empresários, que também devem contas à Justiça.
Não proponho o aprisionamento de milhares de oficiais. Mas a análise das responsabilidades corporativas é imprescindível. Essa não é apenas tarefa da Justiça, mas do Parlamento e do Executivo, que só agirão pressionados pelo movimento democrático.
Por que Braga Netto, Heleno, Paulo Sérgio e Garnier não foram presos?
Não sei. Criminalistas sugerem que as autoridades agiram sem açodamento. A prudência pode ser imprudente. Esse caso é eminentemente político, não jurídico. Mexe com os pilares da República. O STF não conseguirá posar de “neutro” depois de, intimidado pelo twitter de um comandante golpista, ter prendido o maior líder do Brasil e fraudado uma eleição presidencial. O STF tem que defender o sistema democrático determinado pela Constituição.
Como afastar as corporações da política?
Cabe promover uma reforma militar, uma mudança nas estruturas orgânicas e funcionais das Forças Armadas. Implicaria passar em revista toda a aparelhagem de força do Estado, inclusive as polícias. É obra grandiosa, dificílima, mas indispensável à democracia e à proteção do Brasil contra inimigos estrangeiros. Requer alterações na Constituição e novas concepções de Defesa Nacional e Segurança Pública. O militar tem que conter o inimigo estrangeiro e a polícia tem que lidar com a cidadania.
Lula errou ao não promover oficiais mais novos?
O erro não foi esse. Não há clivagens geracionais significativas. Os mais modernos não se distinguem claramente dos mais antigos. O erro foi não assumir posição de comando, como manda a Constituição, e não respeitar a “verità effettuale”, como dizia Maquiavel. Em matéria de promoções e nomeações, o Comandante dobrou-se aos comandados. Não sinalizou autoridade.
Será necessária uma reforma no ensino militar?
Essa proposta é demasiado vaga. Não leva em conta as engrenagens específicas do ensino militar, que não é um profissional formado essencialmente em sala de aula, como nas universidades. Não basta que leia bons livros, amplie sua erudição, desenvolva sua capacidade reflexiva… A proposta de mudança dos currículos só faz irritar os comandantes. A formação do militar cabe ao militar, como a formação do médico cabe ao médico.
Como o militar é formado?
Entoando canções, praticando ordem unida, padronizando gestos, automatizando reações, uniformizando impulsos, celebrando efemérides, reverenciando símbolos, admirando lendas, cultivando o espírito de corpo… É inócua a proposta de revisão dos currículos militares. Mais importante seria suprimir obsoletismos dispendiosos, como os colégios militares, que alimentam o recrutamento endógeno. O fundamental, o indispensável, é mudar a concepção de Defesa Nacional.
Em que consistiria essa mudança?
Em primeiro lugar, na distinção constitucional da função militar. Forças Armadas devem servir para combater o inimigo externo. A Constituição precisa proibir que empunhem armas contra quem lhe sustenta, o povo brasileiro. Não cabe ao militar manter Lei e Ordem. Isso deve ficar com outras instituições.
A coesão dos brasileiros é o ponto central de uma Defesa respeitável. A expressão “Exército de Caxias” é deletéria. Caxias se fez reprimindo brasileiros. Comemorações da tentativa golpista de 1935 e do golpe de 1964 só contribuem para desunir os brasileiros.
A autonomia na produção de armas, equipamentos e prestação de serviços é outro fundamento de uma nova concepção de Defesa. Exército dependente de fornecedor estrangeiro torna-se satélite do fabricante. Vende a alma ao diabo. A indústria de Defesa deve ser desenvolvida em parceria com os vizinhos. A integração sul-americana é outra pilastra da Defesa do Brasil.
Essas mudanças são viáveis?
Se não acreditarmos em sua viabilidade, desistiremos da construção de um país democrático, soberano e desenvolvido. São viáveis, desde que orientadas por programa político consistente e respaldado pela sociedade. Nenhuma outra política pública pode ser mais complexa e abrangente do que a de Defesa. Sua transversalidade é absoluta. Afeta toda a máquina pública e a sociedade. Não cabe ao militar defini-la, como tem acontecido, em prejuízo da soberania popular.
Os “kids pretos” devem acabar?
É sandice pretender acabar com forças especiais. Seria reduzir a capacidade operacional das corporações. Militares preparados para atuar em situações extremas são indispensáveis. Todos os exércitos precisam de contingentes para agir instantaneamente contra agressores por meio de expedientes variados, inclusive o envenenamento de chefes.
Obviamente, cabe mantê-los sob estrito controle, assim como o conjunto das instituições militares. A autonomia corporativa é fundamental, mas com limites claros, senão o militar endoidece e se proclama “poder moderador”.
O uso de forças especiais contra brasileiros é covardia inominável. A cultura militar brasileira é assentada na ideia do enfrentamento de “inimigo interno”. Foi desenvolvida para garantir a Lei e a Ordem, não para eliminar agressor estrangeiro.
Cabe rever o recrutamento obrigatório e a manutenção de centenas de unidades militares espalhadas pelo território brasileiro. São dispendiosas e servem apenas para o controle da sociedade.
Como melhorar as relações civis-militares?
Essa expressão “relação civis-militares” é criação estadunidense visando melhorar o acatamento dos militares no meio civil. Pressupõe o entrosamento amigável e esconde a necessária subordinação do militar ao civil.
Mas é preciso atenuar a radicalidade da dicotomia civil-militar. O civil deve participar da Defesa Nacional.
A tal “família militar”, composta de milhões de brasileiros, sente-se agredida quando seus integrantes são vistos como criminosos. A maioria dos membros dessa família não se envolve em roubalheiras e ações tresloucadas. É gente preocupada com a sobrevivência, tem suas aspirações de classe média, preocupam-se com a educação dos filhos. Portanto, sofre com a degradação da imagem do militar.
Para o bem da democracia, é preciso evitar agressões gratuitas ao militar, um agente indispensável ao Estado. O importante é impulsionar responsavelmente o debate sobre o que fazer com o militar.
Múcio deve ser demitido?
José Múcio cumpre bem o papel que o Presidente lhe designou, de porta-voz das corporações. Caso Lula assuma o comando supremo das Forças Armadas, dispensará Múcio.
Por que as primeiras prisões foram anunciadas durante o G20?
Jânio de Freitas sugeriu que foi por medo. Se ele tiver razão, a repressão ao golpismo estará muito mal conduzida.
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Publicado originalmente na página do autor: https://www.facebook.com/manuel.domingosneto
Foto: Ricardo Stuckert