Governo negocia com empresa ligada à espionagem de guerra, para integração digital do sistema de saúde. Movimentos alertam: há risco de dependência e colaboração com softwares que podem servir, inclusive, para rastreamento de imigrantes e genocídio em Gaza
Por Ana Vračar, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite, Outra Saúde
Trabalhadores da saúde e ativistas no Reino Unido estão intensificando sua campanha contra a Palantir, empresa americana de vigilância e dados. Enquanto isso, o governo de Keir Starmer prossegue com sua tentativa de envolver a notória firma na gestão de dados do Serviço Nacional de Saúde (NHS).
A Palantir conquistou espaço no NHS durante a pandemia de covid-19, obtendo contratos fora dos processos padrões de licitação e ganhando popularidade entre autoridades de saúde de alto escalão. A empresa, conhecida por sua participação em operações como as invasões lideradas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque e pela perseguição a migrantes sob o Departamento de Imigração e Alfândega dos EUA (ICE), rapidamente expandiu sua atuação no Reino Unido. Até o ano passado, havia conquistado um contrato de £330 milhões (417 milhões de dólares) para implementar a Plataforma de Dados Federados (FDP, na sigla em inglês), destinada a modernizar a gestão de dados médicos na Inglaterra.
Hoje, nem todas as instituições do NHS conseguem compartilhar os dados, devido a sistemas diferentes. Tanto os governos do partido conservador quanto os trabalhistas identificam esse como o principal motivo para gargalos no sistema de saúde, e confirmam que resolver o problema levaria a melhorias no atendimento. No entanto, organizações como Medact, Just Treatment e Corporate Watch alertam que confiar essa tarefa à Palantir pode aprofundar os problemas em vez de resolvê-los.
Da mesma forma, muitos especialistas em saúde destacam que a FDP poderia de fato tornar o NHS dependente da Palantir. Os sistemas da empresa são projetados para dificultar a extração de dados e tornar cara e complicada a integração com ferramentas analíticas que seguem o padrão do setor, obrigando os usuários a continuar utilizando-os. “O sistema da Palantir força as pessoas a usarem seus sistemas proprietários; e os custos de mudança [para o NHS] serão muito altos”, alertaram a Doctors’ Association e a Foxglove em um relatório de 2023.
O governo britânico está indo adiante com essa forma de expansão do setor privado no NHS, apesar dos alertas de especialistas e conselhos de que os resultados ficarão muito aquém das expectativas. Na verdade, algumas organizações do NHS que estão sendo forçadas a adotar a FDP sob a administração trabalhista afirmam que a nova plataforma pode resultar em perda de funcionalidade em comparação com os sistemas utilizados atualmente.
Embora haja consenso entre analistas de que o compartilhamento e o uso de dados dentro do NHS poderiam ser significativamente aprimorados, eles argumentam que essas melhorias podem e devem ser alcançadas por meio de iniciativas locais e regionais. Em contraste com o modelo hierárquico introduzido pela FDP, essas iniciativas se baseariam em sistemas e conhecimentos existentes, evitando transferir o controle para uma empresa com histórico de violações de direitos humanos.
As preocupações de que a FDP poderia tornar o NHS totalmente dependente da Palantir se intensificam pelos temores sobre o uso dos dados dos pacientes. Por ser um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, o NHS possui um conjunto de dados de saúde singular. Embora esses dados tenham um imenso potencial de fortalecer os serviços públicos, confiar sua gestão a parceiros corporativos apresenta grandes riscos. Por exemplo, eles poderiam ser explorados para fins como rastreamento e criminalização de imigrantes – uma prática utilizada sistematicamente para hostilizá-los no Reino Unido.
A Palantir se orgulha de encontrar novas aplicações para dados, especialmente para reforçar a dominação ocidental. Dado que o escopo completo da FDP permanece incerto, há uma grande preocupação de que os dados do NHS também possam ser explorados para aprimorar as ferramentas de vigilância da Palantir. Essas ferramentas já estão sendo utilizadas no genocídio em andamento de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza.
Os líderes da Palantir têm expressado abertamente seu apoio a Israel, alinhando-se publicamente com o governo de Benjamin Netanyahu, mesmo enquanto este prossegue com o assassinato de dezenas de milhares de palestinos. A empresa está ativamente testando – ou melhor, exibindo – seus modelos de inteligência artificial (IA) por meio dos ataques de Israel na Palestina e no Líbano. Isso indica uma intenção clara de monetizar ainda mais essas ferramentas, comercializando-as para outros estados que planejam empreender campanhas de violência.
Entregar os dados médicos do NHS à Palantir aprofundaria a cumplicidade do governo de Starmer com os crimes de guerra de Israel, alertam organizações de justiça em saúde. Tal movimento arrisca manchar a reputação do NHS, transformando seu conjunto de dados em uma ferramenta de opressão internacional, enquanto mina a confiança pública no sistema de saúde no país.
Muitos esperavam que uma mudança de governo, em julho [quando o Partido Trabalhista conseguiu vitória expressiva no parlamento e indicou o primeiro-ministro], significasse o fim da FDP. No entanto, “em vez de interromper, os trabalhistas aceleraram”, comentou a Just Treatment durante uma reunião do movimento “No Palantir in the NHS”, em novembro. Essa resposta reflete as prioridades do Partido Trabalhista em relação ao sistema público de saúde. “Se o governo estivesse buscando implementar reformas na forma como nossos dados são mantidos para melhorar os resultados de saúde e fortalecer o NHS, eles fariam isso de uma maneira que ampliasse a confiança pública e restaurasse o apoio dos serviços de saúde e dos trabalhadores da saúde para essas iniciativas”, afirmou a organização na reunião.
Em vez disso, o governo parece mais interessado em usar os dados nacionais de saúde para ganhos econômicos. Essa abordagem está alinhada com recomendações de consultores de políticas neoliberais, como os do Tony Blair Institute for Global Change, que recentemente defenderam o uso dos dados do NHS como forma de impulsionar a posição econômica do Reino Unido.
Embora a implementação da FDP esteja avançando, ativistas argumentam que ainda não é tarde para interrompê-la – especialmente se grupos locais intensificarem seus esforços. Eles enfatizam que, ao aumentar a pressão, trabalhadores da saúde e ativistas poderiam não apenas lutar pelo cancelamento do contrato da FDP com a Palantir, mas também exigir o término de todos os acordos com empresas cúmplices da ocupação de Israel. Embora a Palantir seja atualmente o foco principal, as organizações destacaram que essa campanha é apenas o começo, e pode servir como ponto de partida para ações mais amplas.