Gaza é aqui: um poema de Fadwa Tuqan tra(du)zido para o sertão nordestino

Neste 29 de novembro, em que se celebra o Dia Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino, o Blog da Boitempo apresenta a tradução de um poema de Fadwa Tuqan, um dos maiores nomes da literatura palestina. Nesta versão da poeta pernambucana Adelaide Ivánova, “Hamza”, um homem qualquer de Gaza, torna-se “Raimundo”, o homem comum do Araripe. Em comum, eles têm “a dignidade com a qual falam e cuidam da sua terra” e a luta travada contra a opressão.

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Fadwa Tuqan é conhecida como “A poeta da Palestina” e “A grande dama da literatura palestina”. Ela nasceu em Nablus, em 1917, numa família de escritores. Estudou literatura em Oxford e foi reconhecida, ainda em vida, por sua poesia, tendo recebido diversos prêmios e homenagens. Sobre ela, o poeta libanês Abbas Beydoun escreveu:

“Fadwa foi uma poeta original, escrevendo a partir de suas próprias experiências e para seus falecidos irmãos, Ibrahim Tuqan, o poeta palestino mais famoso da época; e para seu segundo irmão, que morreu em um trágico acidente. Fadwa se levantou como uma Electra em luto entre dois irmãos mortos, carregando a dor da família, que podemos facilmente chamar de Palestina. A poesia veio a ela na imagem do destino palestino; em última análise, sua escolha de escrever poesia não foi tão importante quanto sua missão real, que caiu em algum lugar entre a de Joana d’Arc e Al-Khansa” — Al-Khansa foi uma poeta árabe do final do século VI.

“Hamza” é seu mais famoso poema e, ouso dizer, um dos poemas mais lindos produzidos em todos os tempos. Eu o traduzi como “Raimundo”. O texto conta a história de um homem comum na Palestina — um homem ao mesmo tempo como tantos outros, e extraordinário na sua honradez. Já falei mil vezes, tanto na nius como em outros textos, sobre como a resiliência e determinação do povo palestino, e a dignidade com a qual falam e cuidam da sua terra, me lembra demais a resiliência e determinação dos povos da caatinga, tanto no Agreste quanto no Sertão. Raimundo, obviamente, é meu avô, mas também não é. Poderia ser tantos outros Raimundos, nordeste afora, que resistiram aos despejos violentos provocados pelos latifundiários, antigamente chamados de coronéis, e pelos seus cães de guarda, a polícia, antigamente chamados de capangas.

Infelizmente eu não falo árabe, língua do texto original. Para minha tradução/transposição, usei como base as traduções para o inglês de Azfar Hussain e Michael Burch, com Patativa do Assaré, Permínio Asfora e vovô Raimundo na cabeça (sempre).

***

Raimundo

(Versão de “Hamza”, poema de Fadwa Tuqan, traduzido e “trazido” da Palestina para o sertão do Piauí, por Adelaide Ivánova)

Raimundo era um homem qualquer
Como tantos outros no meu povoado
Ganhava seu pão com trabalho braçal.

Quando o vi recentemente
Nossa terra ainda se vestia de preto, em luto,
E eu me senti derrotada.

Mas Raimundo-Um-Homem-Qualquer disse
“Comadre, nossa terra tem um coração que bate
e persevera, que suporta o insuportável, que guarda o segredo de mãos
e ventres. Nossa terra de onde brotam cactos e umbus também dá
à luz guerreiros. Nossa terra, comadre, é uma mulher”.

Os dias passam. Não vejo Raimundo em canto nenhum,
Mas sinto a barriga da terra sofrer. Aos 65 anos,
Raimundo é pesado para ela carregar.

“Toquem fogo na casa dele!”
Ouvi o coronel berrar
“E metam o filho dele no xilindró”.
O militar responsável por nosso povoado
Depois explicou que tal medida era necessária
Pra manter a ordem e o progresso,
Ou seja, foi por paz e amor!

Capangas armados cercaram a casa de Raimundo,
Como uma cascavel enrolada, pronta pro bote.

A porrada na porta veio com uma ordem de despejo
“Saia de casa agora!”
Mas, generosos, ofereceram um prazo:
“Tem uma hora pra evacuar!”

Raimundo abre a janela, bota a cara no sol e
Berra, confiante: “É nessa casa que eu e meus filhos vamos viver
e morrer, pelo Araripe”. A voz de Raimundo ecoou através do silêncio de morte.

Uma hora depois, conforme prometido, a casa de Raimundo
Foi demolida, os quartos voando pelos ares, estilhaço e caliça
Voam e voltam ao chão, enterrando uma vida inteira de memórias, trabalho, lágrimas
E um passado feliz.

Ontem eu vi Raimundo
Andado por uma das nossas ruas
Raimundo-Um-Homem-Qualquer estava
Como sempre esteve: inabalável em sua determinação.

Imagem: “Paisagem na Palestina”, de Henry Ossawa Tanner (1897-1899) – Imagem: WikiCommons.

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